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A minha viagem de 60 anos

Eu “peguei” a estrada ainda desconfiado da minha viagem solitária. Eu não estava certo se iria curtir, apesar de estar convencido que eu faria de tudo para tornar essa viagem um marco para o meu novo ciclo de vida. Eu não me planejei para ir a lugares sofisticados, exóticos ou distantes, e muito menos ter dias de agenda cheia. A ideia era fazer uma viagem de paz, “easy going” e relaxante.

Pela primeira vez na minha vida eu não fiz um planejamento detalhado do que iria fazer em cada local. Apenas escolhi duas cidades: Vassouras e Rio das Flores, no interior do Estado do Rio de Janeiro, no conhecido Vale do Café. Fiz as reservas nas pousadas, determinei o número de dias em cada uma delas, olhei o caminho a ser feito pelo google maps, e parti.

A minha mente não estava propriamente atenta aos destinos, mas sim aos caminhos. Eu não parti preocupado em visitar as atrações principais nas cidades, mas sim o que estava ao redor. Deixei que o imprevisível determinasse a maior parte dos meus dias. Viajei com o espírito de curtir os detalhes, as pequenas experiências e imprevistos, aqueles quase imperceptíveis, dando tempo a eles, dando espaço para eles preencherem o meu tempo e se tornarem mais relevantes nos meus passeios. Em outras épocas de minha vida esses pequenos acontecimentos seriam irrelevantes… eu nem daria bola.

Conto abaixo quatro situações que ilustram essa minha viagem de pequenas experiências do cotidiano.

Perto de Rio das Flores, em uma das minhas caminhadas em uma estrada vicinal, me deparei com um rapaz no acostamento da via, tendo ao lado de 3 gaiolas penduradas nos galhos de uma árvore. Ao lado delas, também pendurada, havia uma placa escrita em garrancho: Vende-se. Vi que dentro de cada gaiola havia um pássaro. Aquilo me incomodou. Pensei comigo: quem hoje em dia prende pássaros para vender? Eu perguntei o preço e ele respondeu que o preço era 100 reais por cada pássaro. Negociei e ele fez o preço total de 250 reais pelos 3 pássaros. Eu disse a ele que só tinha 200 reais em dinheiro vivo. Ele aceitou a minha oferta final. Retirei o dinheiro da mochila, em notinhas amassadas de 50 reais, bem dobradinhas. Ele recebeu as notas e colocou no bolso. Eu fui nas gaiolas e abri as portinholas. Em segundos, todos os pássaros voaram para a natureza. Ele me olhou e disse: “Se eu soubesse que faria isso, eu não teria vendido para o senhor”.

Na RJ-135, quase chegando na BR-393, eu estava dirigindo o meu carro, curtindo uma música indie, apreciando as paisagens das grandes fazendas nas laterais da estrada, quando me deparei com um caminhãozinho parado no canto da estrada. Engatada, atrás do caminhão, havia uma carretinha transportando 4 ou 5 bois (ou vacas, não sei!). Não havia ninguém dentro do caminhão. Olhei com atenção e vi que um rapazinho estava a uns 10 metros distante da beira da estrada, dentro do mato, cortando capim com um facão. Parei atrás do caminhão, saí do carro e fui falar com o rapaz. Perguntei se ele precisava de alguma ajuda, ele respondeu que não, porém complementou dizendo que o gado que transportava estava agitado dentro da carreta. Então ele decidiu parar a viagem para cortar capim, de forma a alimentar os animais com algo, ocupá-los e acalma-los. Falei com ele que eu poderia ajudá-lo. Ele foi no caminhão e me trouxe um facão. Ele disse que aquele era um facão de cortar cana. Fiquei ali quase 30 minutos com ele, dentro do mato, cortando capim. Conseguimos encher a caçamba de capim. Eu nunca havia tocado em um facão de meio metro. Passei os dias seguintes com as mãos cortadas e com coceira constante. Sorte que eu estava de calça e camisa de manga comprida. Adorei fazer aquilo.

Em um dos trajetos eu tive que cruzar a pequenina Porto das Flores, uma cidadela localizada na divisa de Rio com Minas, nas margens do Rio Preto. Na “quase” única rua da cidade, deserta de pessoas, um cachorrinho se postou na frente do meu carro e não me deixou passar. Parei o carro no meio da via e fiquei esperando que ele se movimentasse. Ele estava imóvel, encarando o carro, o rabinho parado. Até fiz uma foto. Eu não sabia o que fazer. A rua de paralelepípedos estava completamente deserta, não havia ninguém para entrar em cena e mudar a situação. Eu também fiquei encarando o amiguinho de 4 patas, mas dentro do carro. Após intermináveis 5 minutos, ele andou um pouquinho para o lado e eu aproveitei para passar com o carro na brecha que surgiu. Me deu uma vontade enorme de descer e fazer um carinho no cachorrinho, mas fiquei receoso. Ao passar por ele, olhei pelo retrovisor, e lá estava ele sentado no meio da rua, novamente com seu olhar acompanhando o carro se afastando. Ele foi o único ser vivo que vi na cidade.

Visitei a cidadezinha de São José das Três Ilhas, uma pequena joia do período colonial, localizada no sul de Minas Gerais. Só é possível chegar lá por estrada de terra. A população é de 250 habitantes, sendo a grande maioria idosos. Quando eu cheguei na cidade, vi pouquíssimas pessoas na rua principal. E todas me olhavam com expressão séria e estranha, com olhar reprovador. Em nenhum momento alguém demonstrou qualquer afeição ou simpatia pelo turista singular, andando no calçamento de pedra. Só mais tarde, quando saí da cidade, é que soube que a entrada de turistas na localidade estava proibida por conta da pandemia. Eu estando lá, em um local formado por idosos, agia como um potencial transmissor de coronavírus para os moradores locais. Me senti muito mal por ter visitado a cidade naquelas condições, demonstrando ignorância e insensibilidade de minha parte. Independentemente disso, a igreja matriz e o casario da cidade são impressionantes, quase impossível de acreditar que aquilo existe de verdade.

Foram muitas pequenas experiências, como as descritas acima, que transformaram essa viagem de 7 dias em algo especial. Eu realizei essa viagem como uma forma bacana de celebração do meu aniversário, mas também como um escape para esquecer um pouco a ausência de minha amada.

Depois da partida da Regina, eu pensei muito no que faria no dia 15 de julho de 2020, data do meu aniversário de 60 anos. Em determinado momento, eu encasquetei que passaria o meu aniversário sozinho, mas em algum lugar bonito, no meio da natureza e, de alguma forma, próximo do céu. E foi assim que aconteceu: passei a manhã de 15 de julho no Mirante Imperial, em Vassouras, que é um lugar lindo, enorme, no topo de um morro, com muito verde ao redor e bem alto. Por sorte, o tempo estava feio, nublado, com ameaça de forte chuva, vento cortante e muito frio. Foi essa “sorte” que me permitiu passar horas sozinho no topo daquele lindo morro, no meio da natureza, com um visual incrível e perto do céu. Foi um momento de paz e reflexão. Tenho essa experiência como o grande momento da viagem. Ahhhh, e não choveu.

A verdade é que, ao longo da viagem, a saudade da minha amada só aumentou, em vez de diminuir. Em muitos momentos pensei em como seria a viagem se a Regina estivesse comigo. Por diversas vezes senti falta dela… para conversar, para sorrir e receber um sorriso de volta, para decidir se virava na próxima esquina para esquerda ou para direita. Me dei conta de conversar com ela em pensamento, quase o tempo todo.

Dentro de mim, de alguma forma que não sei explicar, eu ainda a tenho perto de mim o tempo todo. E, de forma involuntária e espontânea, sem me dar conta, ainda tenho até hoje o costume de deitar no lado direito da cama, preservando o lado esquerdo para a minha amada. Foi assim em todos os dias da viagem.