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Os 3 primeiros meses sem Ela

Dias atrás, confidenciei a um amigo que eu estava pensando em escrever um artigo com o título “Os 3 primeiros meses sem Ela”. Ele me respondeu: “Sem a IBM?”. Eu ri, porque na verdade nem tenho pensado no meu último emprego, porém tenho trocado mensagens com amigos de lá que ainda tenho muito afeto e admiração. Confesso que o trabalho não tem feito falta. É zero mesmo!

O “sem Ela” é sem a minha amada Regina, que partiu no último dia de fevereiro, cuja história eu já contei no artigo “Em busca de um propósito”. Aliás, a publicação desse artigo provocou uma avalanche de histórias e sentimentos. Foram milhares de pessoas (milhares mesmo!) entrando em contato comigo através de mensagens privadas pelas mídias sociais, escritas, gravadas e até alguns poucos vídeos. Tais mensagens me fizeram descobrir que a minha história não é incomum. Nesse minuto, existe um número incrível de pessoas passando por situações tão ou mais difíceis que a minha, buscando caminhos, procurando apoio e aprendendo a andar na corda bamba, sem tempo para treinar.

Não tem sido fácil esses primeiros meses sem Ela. As mensagens das pessoas me dão conforto, mas estou consciente que o real caminho para paz e resignação está apenas dentro de mim. É essa a jornada que estou vivendo agora.

Quando escrevi aquele artigo, eu me posicionei dizendo que talvez aquele fosse o meu último artigo no LinkedIn e no meu blog. Surpreendentemente muitas pessoas me pediram para que eu continue escrevendo. De alguma forma, elas viram valor naquele artigo e/ou em conteúdos anteriores que tenho publicado ao longo do tempo. A conversa, então, é se continuarei escrevendo publicamente. E esse texto funciona como uma resposta para essa questão.

Nos dias seguintes ao falecimento da minha amada eu me senti muito desorientado. Pessoas que interagiram comigo nas primeiras semanas se surpreendiam ao encontrar um ser humano calmo, equilibrado e sociável. A verdade é que apenas por fora eu estava de bem com a vida, centrado e racional. Por dentro eu me sentia um ser destruído, amargurado, indignado, com raiva por ainda não entender o motivo da Regina ter passado por tudo aquilo.

Desde a partida da minha amada que estou escrevendo compulsivamente, todos os dias. Já são mais de 300 páginas registrando o que se passa na minha mente e coração, denunciando as curvas da minha montanha russa de sentimentos e reações. É uma viagem profunda na alma, com momentos intuitivos e emocionais, mas também com muitos instantes onde sou extremamente racional. Enfim, as páginas estão repletas de confidências e devaneios.

Nesses textos, quase sempre estou conversando com a Regina. Tudo isso tem funcionado como uma catarse, mas também como uma terapia. Isso é bom, porque além de desafiar a minha mente, o exercício de escrever ajuda a ordenar ideias, denunciar dores e identificar oportunidades. Enfim, me parece impossível parar de escrever. Preciso disso como um remédio. Tudo que venho escrevendo não é somente uma evidência da minha evolução como ser humano, mas um “flash” do que se passa na cabeça de uma pessoa atormentada, que está saindo do escuro e vivendo dias cada vez mais claros. Trato esses cadernos pessoais com um tesouro.    

Cabe dizer que eu já venho fazendo o exercício de escrever há muito tempo. Desde o início da descoberta da doença da Regina, em janeiro de 2017, que venho registrando tudo em cadernos. As equipes médicas que cuidaram dela sabem muito bem desse comportamento. O pretexto inicial era ter registro de todos os atendimentos, exames, procedimentos, remédios, reações, internações, cirurgias, emergências, sessões de quimioterapia, de radioterapia, etc. Ou seja, tudo que se passava era anotado por mim em um registro histórico profundo e organizado. Mas logo os cadernos foram muito além disso, foram ficando densos e confusos, tornando-se um diário da nossa jornada de vida ao longo do tratamento e evolução da doença, denunciando as gangorras de nosso entusiasmo e desesperança, misturadas com doses de medicamentos e registros de febre, batimentos cardíacos, noites de insônia e crises de dor… esperanças e desesperanças. São 5 cadernos, aproximadamente 800 páginas. Decidi passar uma faixa de papel neles para mantê-los fechados e não sei se algum dia, na vida, voltarei a abri-los. Para abrir terei que rasgar essa faixa de papel e pensar muito bem o que significa abrir esse baú. Mas os cadernos estarão sempre comigo.

A partida da Regina ocorreu quase que simultaneamente com a minha saída do trabalho, essa combinação criou um momento único na minha vida. Eu vivia com uma agenda insana, sem tempo para nada, com um nível elevado de pressão e ansiedade. De repente, de forma radical, os meus dias passaram a ser sem agenda, sem trabalho, sem emails, sem telefonemas, sem reuniões, sem demandas, sem hora para acordar, nem para dormir… sem nada. Mas isso não foi tudo que perdi. Eu também perdi o beijo de bom dia com gosto de cama, perdi o passar de mão no cabelo ralo dela sofrido pela doença, perdi seu carinho, de cuidar e ser cuidado pela pessoa que mais amo no mundo.

Acabou o senso de urgência. Acabaram-se as obrigações. Ganhei um vazio enorme a ser preenchido por mim. Passei a fazer as coisas na velocidade que desejo. Eu sou o soberano decisor das prioridades. A lista é minha, unicamente minha.

Acabou a sensação de encarar o relógio como um cronômetro, onde cada minuto passado era um minuto a menos de vida com a Regina. Não tenho mais a rotina diária de olhar o relógio para administrar os remédios, acompanhar o controle da febre e ajustar os alarmes. Agora o relógio gira indefinidamente para frente, sem alarmes, sem interrupções. Deixei de lutar contra o tempo. Ele não é mais meu inimigo. Esse tempo que tenho para mim, que eu não tinha antes, é o segredo de tudo. Ele precisa ser meu aliado. Infelizmente eu não consigo acelerar o tempo, independentemente do meu desejo de já viver o futuro. Eu preciso viver a jornada, até porque será a jornada que vou viver que construirá o meu futuro.

O tempo tem um significado diferente para mim agora. Preciso aprender a viver sem pressa.

Nessa questão de tempo, a pandemia criou uma situação. A pandemia me fez ficar confinado em casa com meus pais e um dos meus filhos, e isso criou uma janela no tempo. O confinamento obrigatório me lembra o filme “O feitiço do tempo” (Groundhog Day), em que o personagem principal fica preso numa armadilha temporal, que o faz reviver o mesmo dia várias vezes, repetidamente. É assim que estou me sentindo hoje, vivendo um loop diário sem fim. Me sinto hoje entre o meu passado recente e o meu futuro distante, que nunca virá enquanto o confinamento não terminar.

O confinamento em casa é perverso. Todos os cantos da casa, os sons, o cheiro, o ar, até a porta que range, tudo me faz lembrar da minha amada. Ela está em todos os lugares. Sobreviver a esse período dentro de casa é uma maratona de resiliência, uma espécie de teste diário da capacidade de lidar com minhas emoções. Mas estou ficando cascudo e, tal qual o personagem do filme, eu já descobri que essa prisão temporal é uma oportunidade para me desenvolver melhor como pessoa, me dando condições singulares para planejar o futuro que desejo.

Minha mudança de vida me transformou de executor para pensador. Estou realmente pensando muito… e pensando muito sobre o pensar, o que parece confuso. Antes eu pensava o tempo todo nos outros, no que os outros iriam pensar de mim em função das minhas atitudes, escolhas e comportamento. Eu convivia com uma pesada carga de me justificar perante as pessoas, além de uma obrigação latente de me fazer presente, ganhar eminência e ser reconhecido.

Hoje faço um esforço enorme para me livrar do vício, ainda existente na mente, de que preciso me posicionar frente às pessoas, como por exemplo publicar coisas nas mídias sociais. Estou mudando a minha cabeça. Será que eu preciso disso mesmo? Por que? A resposta eu já sei: eu não preciso. O que preciso é investir em mim. Tenho que me concentrar nas atividades que vão beneficiar diretamente a minha saúde física, mental e espiritual. Isso é unicamente o que importa.

Nos últimos anos eu fui um ser humano servidor, em múltiplas dimensões. Vivi o tempo todo servindo os outros, cuidando dos outros e ouvindo os outros. Foi assim no trabalho e no lado pessoal. Tenho a sensação de que a minha vida sempre seguiu para direções empurradas ou puxadas pelas pessoas, onde o meu desejo quase sempre ficava em segundo plano. E, cabe dizer, que nos últimos tempos eu vivi o propósito de servir a minha amada, de cuidar dela, integralmente. Agora tudo passou. Está na hora de me servir, de me curtir. A questão é que eu ainda não sei fazer isso. Preciso me descobrir, me conhecer, ter clareza de quem eu sou depois desses últimos anos… e, principalmente, de quem quero ser. Estou vivendo esse momento agora, consciente de que esse é o meu momento.

Eu preciso ser o alvo de minhas decisões, mesmo não sabendo muito bem como fazer isso. Estou diante de uma oportunidade de ouro.

Nas primeiras semanas após a partida da Regina, eu passei o tempo todo pensando nela, de forma recorrente, quase em loop. A saudade era tão intensa, que as vezes sentia dor física, parecia que eu tinha corrido uma maratona de tantas dores no corpo que eu sentia. Eu descobri que a saudade pode ser boa, mas também pode ser muito dolorosa. Saudade demais não faz bem.

Comecei a fazer um exercício de me observar, por mais difícil que isso possa parecer. Depois de tudo que passei, o meu instinto era deixar a vida me levar, mas saquei que eu estaria me sabotando se continuasse daquele jeito. A partir de um determinado momento, quase que institivamente, eu passei a prestar mais atenção em meu comportamento e em pequenas atitudes de minha parte. Com o passar dos dias fui me descobrindo, aprendendo os gatilhos e as armadilhas de minha mente.

Eu não sei muito bem o que aconteceu dentro de mim, mas atualmente estou muito mais emotivo, mais sensível a pequenas coisas. Sinto lágrimas nos olhos, uma desestabilização, em situações do cotidiano. Algumas vezes sinto necessidade de me isolar para conviver sozinho com essa sensibilidade mais apurada. A emoção a flor da pele está muito evidente para mim. Pequenas coisas acontecem na minha rotina que me provocam intensas emoções e conexões. São pensamentos inesperados, as vezes profundos e fortes, que emergem de uma situação qualquer.

Ontem eu ouvi “The Great Gig in the Sky” do Pink Floyd. Eu estava caminhando na praia, diante de um céu e mar de azul cristalino. Imediatamente aquela música me tocou na alma. A voz feminina, intensa, sombria, quase agonizante, me fez imaginar a Regina tentando se libertar de seu sofrimento, tentando encontrar uma saída, pedindo socorro, diante de um fim cada vez mais próximo. A música me fez sair do presente e ir para outra dimensão, fazer uma viagem, explodindo algo represado dentro de mim, mexendo na minha gangorra de sentimentos.

Hoje, quando vejo casais caminhando na rua, imediatamente penso em nós dois. Penso que nunca mais andarei de mãos dadas com ela. O mesmo acontece quando vejo mulheres. Em todas as mulheres eu vejo a Regina. Mulheres jovens e idosas, eu sempre vejo algo da Regina nelas. Pode ser o caminhar, o cabelo, o olhar, o sorriso, a roupa que estão usando, de alguma forma todas me fazem lembrar algo da minha amada. Esse comportamento é completamente inadequado, sinto vergonha até ao contar, por isso estou treinando a minha mente para não entrar nesse jogo, e já progredi muito. 

Eu tentei me testar vendo o filme “18 Presentes”, recém disponibilizado na Netflix. É um filme italiano que conta a história de uma mulher que possui uma doença incurável e terminal, descoberta no meio de sua primeira e única gravidez. Ela decide que deixará 18 presentes para sua filha, para cada um ser entregue em cada aniversário, até a filha chegar aos 18 anos de idade. Tragicamente a mulher morre no dia do parto. Assisti o filme em um fim de tarde de domingo. No meio do filme eu já era um ser destruído, dilacerado pela história e pela minha mente.

O filme mexeu com alguma coisa dentro de mim, que despertou uma angústia profunda. Eu fiquei completamente transtornado e desestabilizado. Aquilo me vez voltar no tempo e resgatar a memória da Regina nos piores momentos de sua jornada, os seus últimos dias de vida, as nossas despedidas, as noites sem fim nos hospitais e a desesperança completa por não encontrar uma saída em nosso beco sem saída. O auto teste de assistir esse filme (e eu vi até o final, me segurando em um fiapo de equilíbrio) me fez ver que o meu equilíbrio emocional ainda está andando no fio da navalha. Basta uma leve brisa para eu cair no abismo.

Nas últimas semanas eu estou desenvolvendo a arte de dirigir os meus pensamentos, permitindo criar condições para ter um dia mais prazeroso, driblando instintos e inseguranças, trabalhando os gatilhos mentais e buscando rotinas para treinar a minha cabeça. Estou anotando todas essas coisas no meu caderno, como um diário de uma mãe que descreve o desenvolvimento de seu filho, o primeiro banho e a primeira sopinha.

Eis um exemplo de como driblei a minha mente. Recorrentemente o meu pensamento da Regina me trazia imagens dela nas últimas semanas de vida, sofrida pela doença e tristeza. A minha cabeça teimava em reduzir a minha vida com ela nos tempos mais difíceis de tratamento, esquecendo das décadas que vivemos e que construímos uma linda história de vida. Para combater isso, eu passei a organizar as milhares de fotos digitais que tenho dela desde o nosso namoro. Sempre fui um fotógrafo compulsivo em fazer fotos da família, das viagens, dos momentos cotidianos e da Regina. Tenho milhares de fotos digitalizadas. Todas lindas. O trabalho de organizar as fotos me fez ver e rever a minha amada desde adolescente, jovem, vibrante e linda. Também me fez rever a nossa história de vida e conquistas, tudo que passamos e realizamos. Eu passei semanas dedicando horas diárias nessa atividade de organização das fotos. No final do processo, eu havia treinado a minha mente para fixar as imagens de uma Regina linda, feliz, tendo uma vida plena comigo, família e amigos. Hoje, quando penso na Regina, pulam na minha cabeça dezenas de imagens dela de outros tempos, linda e feliz com a vida.

Fiz vários outros exercícios de mente que não merecem ser citados aqui, mas talvez valha a pena contar mais um. A minha saída do emprego me provocou uma reflexão sobre a minha vida profissional. O meu futuro depende de meu conhecimento, experiência, crenças e desejos. O fato é que hoje me sinto despreparado para qualquer nova atividade profissional. De alguma forma, eu sentia (e ainda sinto) dentro de mim uma necessidade enorme de aumentar minha autoestima, mostrar para mim mesmo que eu ainda consigo fazer coisas, que tenho algo ainda de bom para oferecer para as pessoas e organizações. Nessa busca de aumento de autoestima, me pareceu que fazer uma revisão do meu passado profissional seria muito importante. Por isso decidi refazer o meu blog maurosegura.com.br que é um blog pessoal. Fazer isso seria uma forma de rever a minha carreira e mexer com meu orgulho. Aprendi wordpress, em dois dias, e comecei a redesenhar o blog por conta própria. Em quase três semanas eu revisei todo o blog, ajustei e inseri conteúdos, vídeos e podcasts. Fiz viagens no tempo revendo todo o conteúdo que produzi, mostrando para mim o que tenho de conhecimento e experiência profissional. Tudo isso me fortaleceu e me fez sentir que sou ainda um profissional de valor. Minha autoestima foi elevada. O blog é um belo portifólio do “mauro profissional”, do que ele fez, faz, pensa, viveu e conhece.

Nessas últimas semanas tenho feito muitas outras coisas orientando a minha vida e disciplinando a minha mente. Faço caminhadas diárias de 10 quilômetros, com isso perdi 7 quilos de peso. Ando no calçadão da praia, mas não apenas para me exercitar, mas também para curtir, sentir o sol na cara e agradecer por estar ali naquele momento. Estou lendo, ouvindo e vendo coisas que me provoquem a conversar comigo mesmo, que me levem a dialogar com partes de mim que eu nunca alcanço, que me estimulem a sair da área de conforto e me modifiquem como ser humano. Por isso estou atrás de conteúdos e temas totalmente diferentes do que sempre consumi. É um esforço fazer isso, porque o cérebro sempre me leva para o lugar comum.

Estou fazendo um exercício diário de desapego das coisas que acumulei a vida toda. Eu não posso deixar que o meu passado me empurre para o futuro, e sim que eu visualize o futuro que desejo e seja puxado por ele. Somente assim eu caminharei por novos caminhos em vez de me manter em caminhos já conhecidos. Faço um esforço constante para abrir minha cabeça e meu coração para ouvir pessoas diferentes. A atual fase de confinamento social é uma oportunidade para isso, porque existe uma profusão de “lives” nas mídias sociais, uma oferta imensa de conteúdo vinda de todos os lados, o que me permite entrar em área diferentes, conhecer novas cabeças e desafiar meus conceitos e preconceitos.

O trabalho no meu blog, a obsessão pelas caminhadas, a organização das fotos, o planejamento do Caminho de Santiago de Compostela, o planejamento de várias outras viagens, a dedicação de horas diárias para leitura de livros, a substituição radical das antigas playlists no meu Spotify por playlists completamente diferentes, tudo isso e mais são estratagemas para que eu possa surfar melhor a onda da minha fase atual. Mas o fato é que, mesmo assim, ainda convivo com a dor da partida da minha amada. Aprender a lidar com a minha nova realidade tem sido uma viagem, recheada de aprendizados. E eu preciso estar aberto, nunca fechado, para minha transformação.

A cada dia me sinto mais forte e entusiasmado com a vida, seguindo tudo que a Regina me ensinou em tantos anos vivendo juntos. Com certeza os momentos mais difíceis já passaram. Já me sinto resgatado do poço. Sinto, a cada dia que passa, um novo alvorecer, uma vontade crescente de viver a vida e transformar os meus próximos anos na fase mais formidável da minha vida. Me sinto forte! Os meus segredos, a forma como estou lidando com o meu dia a dia, os planos de futuro, os meus embates mentais, inseguranças, descobertas, fortalezas, pequenas estratégias e atitudes diárias, tudo isso estão nos meus cadernos. Talvez, um dia, quem sabe, no futuro isso possa virar algo a ser compartilhado. Por agora, sou apenas eu e as folhas em branco.