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A minha experiência com o luto ou Os 7 primeiros meses sem Ela

Pego o papel e lá me pergunta o estado civil. Escrevo “viúvo”. Que palavra estranha, não me veste bem. Ainda não me acostumei e nem sei se vou me acostumar. Gosto mais das palavras “sozinho” ou “solitário” (tenho consciência que são palavras com significados diferentes), que não são uma representação verdadeira da minha atual realidade, mas elas me parecem palavras mais próximas do que sinto dentro de mim. Estou cercado de pessoas maravilhosas, como meus filhos, meus pais, família e amigos. Portanto não estou solitário, nem sozinho… mas estou.

Eu passei a maior parte da vida fazendo planos e construindo sonhos… sempre mirando um futuro que nunca chegou e nem nunca chegará. Os meus futuros imaginados se foram com a partida de minha amada, e não tenho vontade de pensar em um novo futuro para substitui-los. Parece que o futuro deixou de ter a importância que já teve no passado. O que importa agora é o presente. Me parece que, mais do que sonhar, é hora de realizar.

“Morte” e “Luto” foram palavras que nunca dei a devida importância. Talvez por nunca ter vivido uma experiência real e profunda que me fizesse refletir sobre isso. Sinto até vergonha de falar dessa forma, mas preciso ser sincero comigo mesmo. No entanto, há quase quatro anos, a minha esposa foi diagnosticada com um câncer severo e o fim eminente se colocou na minha frente, como um muro colossal, parecendo ser impossível de ser ultrapassado. A partir daí, a palavra “morte” surgiu gigantesca diante de mim, provocando uma mudança de direção na minha vida.

A finitude, a morte, nos transformou. Ao longo do tratamento da minha amada, vivendo uma verdadeira montanha-russa, eu e ela fomos impelidos a repensar as coisas. Uma das perguntas mais emblemáticas apareceu na nossa frente: o que é morrer? E com essa pergunta, não respondida, surgiu uma segunda ainda mais complexa: O que acontece depois da morte? Esses questionamentos nos levaram para o mundo da espiritualidade, o que nos trouxe paz, resignação e, principalmente, indícios de respostas.

Ao longo do tratamento, eu tinha consciência de que a morte nos rondava. Mesmo nos dias de maior esperança e sucesso do tratamento, eu convivia com a possibilidade das coisas virarem e tudo mudar no dia seguinte. É como se caminhássemos em um lindo dia de sol e céu azul, tendo uma sombra sempre atrás da gente, independentemente para onde iríamos. O caminho, o sol e o céu eram a vida e a esperança. Enquanto a sombra era a morte, sempre à espreita, nos perseguindo e se fazendo visível. Passei a conviver com a sombra, todos os dias, horas e minutos. Deixamos de ser uma dupla e passamos a ser um trio: Mauro, Regina e a sombra da morte. Parece ser melodramático e sombrio, mas foi isso exatamente que senti ao longo do tempo, com algo nos acompanhando o tempo todo.

A minha amada partiu em 28 de fevereiro de 2020. O sol e céu azul foram sumindo e tudo virou sombra e escuridão. Eu entrei em uma caverna gigante. Ironicamente, por mais que tivesse tentado me preparar para esse dia, e a doença da Regina me deu tempo para isso, confesso que eu não estava preparado para entrar nessa caverna, e muito menos para percorrê-la.

Enquanto a minha amada estava viva, eu nunca me permiti pensar muito sobre o dia seguinte à sua partida. Quando me pegava iniciando um pensamento nessa linha, eu tratava de afastar porque me fazia pensar que eu estava antecipando alguma coisa. E agi assim até o dia de sua partida.

Passei os primeiros meses seguintes à sua morte convivendo com um embate dentro de mim. Senti dificuldades em lidar com a perda da pessoa que mais amo no mundo. Minha sensação é que a vida havia perdido o sentido. Surgiram perguntas dentro de mim: qual é o meu novo propósito de vida? Por que eu existo? Tudo veio acompanhado com uma mistura de sentimentos que não eram comuns para mim, como raiva, angústia, uma inquietação imensa… uma sinalização de que eu era um ser humano perdido.

Foram meses difíceis, convivendo com o confinamento social devido a pandemia, e heroicamente tentando encontrar respostas para as minhas perguntas, dúvidas, inquietações e questionamentos de vida. Vivi em reclusão com meus pais e um dos meus filhos. Eu vivia calado, quieto por fora, mas transtornado por dentro. Acontecia uma tempestade dentro de mim. As poucas pessoas que falavam comigo me diziam que eu estava bem, mas transparecer isso fazia parte do meu plano para me deixarem quieto e não me incomodarem. Não era uma questão de parecer forte, e sim uma questão de sobrevivência. Olhando para trás agora, eu acho que consegui equilibrar os pratos e atravessar bem a primeira fase da tormenta.

A espiritualidade me ajudou muito, e continua me ajudando. Aprendi que existem palavras mais corretas para expressar a morte, como desencarne, passagem, partida e outras. Gosto muito da palavra “partida”, que passei a adotar cotidianamente. Mas a palavra “morte”, que é dura porque representa interrupção e finitude, é a verdadeira sensação dentro de quem perdeu uma pessoa querida. A morte está intimamente conectada com a sensação de que algo foi arrancado de você, de algo irrecuperável, de algo que nunca mais vai retornar. Por isso, muitas vezes, a palavra “morte” ecoa forte dentro de mim e não é abandonada.

Passei a descarregar a minha tempestade mental escrevendo em cadernos, que se transformaram em centenas de páginas, denunciando um ser inquieto e questionador de sua existência a partir de agora. Eu já escrevia antes da partida dela, porém de forma irregular. A partir de sua partida essa atividade se tornou intensa e acalentadora do meu coração.

A palavra “luto” surgiu na minha frente mais recentemente. O luto tem significados e desdobramentos diferentes para cada pessoa. Tenho aprendido isso na prática, por meio das milhares de mensagens e emails que tenho recebido a partir dos textos que publiquei no LinkedIn e no meu blog. De alguma maneira, a minha história vem tocando muitas pessoas, que também vivem seus dramas e transformações pessoais através de suas perdas e dilemas.

Ao longo do tempo, lendo e ouvindo centenas de histórias pessoais que recebi, eu fui entendendo o caminho que eu estava trilhando. O mais importante foi entender que o luto é um processo. Também aprendi que o luto é individual, diferente em intensidade e sentimentos para cada pessoa, portanto não existe fórmula ou receita. Enfim, cabia a mim entender o meu luto. O exercício de autoconhecimento passou a ser fundamental.

Em julho as coisas começaram a mudar. Fiz uma viagem solitária, transformadora, que foi o marco para um processo de mudança. Comecei a sentir o sol nas minhas costas, os dias ficaram mais claros, a esperança voltou ao meu coração e algumas possíveis respostas começaram a surgir para as minhas perguntas.

A sombra, em vez de estar atrás de mim, passou a estar na minha frente. A sombra da morte transformou-se na sombra da perda. Eu podia vê-la, passei a encará-la de frente. A vontade de viver voltou com mais força, bem como a necessidade de entender o que se passava comigo, como rolava a tempestade acontecendo dentro da minha cabeça. Definitivamente eu estava vivendo o luto e eu precisava entender mais profundamente o que era isso. Pela primeira vez eu tomei a iniciativa de aprender a respeito.

Acho que o meu luto se divide entre antes e depois de ouvir o episódio “66 – Sobre lidar com perdas”, do podcast Autoconsciente, de Regina Giannetti. É um episódio curto, de apenas 30 minutos, porém impactante e esclarecedor. Esse podcast abriu a minha mente e deu uma pauta substanciosa para meu autoestudo. O programa tem tanto conteúdo que eu já ouvi várias vezes, e ainda vou ouvir mais vezes. Tenho uma eterna gratidão por Regina Giannetti, mesmo sem conhecê-la pessoalmente. Recomendo não somente esse episódio, mas todos os episódios do podcast Autoconsciente, porque eles são alimentos para nossa alma, amplificando nossa consciência e reflexão.

Aprendi no podcast que o luto é um processo, que surge (e é necessário) a partir de perdas emocionais que vivemos ao longo da nossa existência. A partida de um ente querido, o fim de um relacionamento, a demissão de um emprego, a falência de um negócio, todos esses são exemplos de mudanças que desestruturam a nossa vida, e representam perdas, sob o ponto de vista emocional.

O luto envolve fases, sentimentos, recheados de altos e baixos, de angústia e esperança. Ele gera um sentimento de terra arrasada, criando enormes vazios em nosso coração, parecendo que algo foi tirado de nós e nunca será reposto novamente. A sensação é de devastação, de falta de esperança e de que a vida não vale mais a pena. No entanto, por mais que possa parecer improvável, é possível construir coisas lindas ao redor desses escombros.

O luto é a resposta emocional à perda. O podcast analisa esse processo natural da vida, suas fases e como lidar com os sentimentos. A abordagem tem por base o fabuloso trabalho realizado pela psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross, que identificou cinco fases do luto: a negação e isolamento, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação. Essas fases não formam um roteiro, porém representam estados de espírito que as pessoas apresentam, e não tem ordem para acontecer. Na realidade, os sentimentos vão mudando ao longo do processo do luto, ao passar do tempo, muitas vezes se misturando.

O importante é entender que o luto tem momentos diferentes. E nós precisamos reconhecer esses momentos para acolher os nossos sentimentos, e viver o processo do luto com mais naturalidade. Acolher os sentimentos é se permitir sentir, é entrar em contato consigo mesmo e expressar livremente o que estamos sentindo, ainda que privadamente. E isso, de forma inconsciente, foi algo que pratiquei desde o início de minha jornada.

David Kessler, psicólogo especializado em luto, deu continuidade aos estudos da Elisabeth Kublr-Ross e acrescentou uma nova fase no processo do luto: encontrar um sentido. Essa seria a sexta fase do luto, somando-se às cinco fases no modelo desenvolvido pela psiquiatra. Curiosamente, esse foi o sentimento mais forte que surgiu dentro de mim no dia seguinte à partida da Regina. Eu fiquei sem saber qual era o sentido da minha vida a partir da ausência de minha amada. Qual seria o propósito de minha existência? Tudo perdeu a razão e a motivação. Por que continuar vivendo? Faço essa pergunta para mim até hoje.

Culpa, vergonha, arrependimento, auto aversão… as pessoas têm medo de entrar em contato com suas perdas e de vive-las intensamente. Ocorre uma profusão de sentimentos, com a clara sensação de que nunca mais vamos parar de chorar e de se lamentar. Mas o tempo ajuda a essa fase passar. Enfim, o luto precisa de tempo.

Eu li o livro “Sobre a morte e o morrer” de Elizabeth Kubler-Ross, onde ela apresenta as fases do luto. A partir do relato e entrevistas com pacientes terminais, a autora analisou o impacto da proximidade da morte em doentes condenados, alguns moribundos, bem como as dificuldades e as necessidades das famílias desses pacientes. É um olhar psiquiátrico, mas também muito humano e solidário das agonias e frustrações que envolve o morrer. Me perdoe pela grosseria do que vou dizer, mas o livro é uma porrada, é um forte soco no estômago. Muito mais do que o luto, o livro fala sobre a morte, o ato de morrer, e tudo que isso desperta dentro da mente humana. O livro da Elizabeth me deu novos elementos para responder a pergunta fundamental, que citei no início desse texto: o que é morrer?

O outro livro (que está na minha lista de leitura, mas ainda não li), é “Findind Meaning (the sixth stage of grief)” de David Kessler, onde ele fala sobre a sexta fase do luto: encontrar um sentido.

Desde o início que encaro o luto como uma “batalha” mental individual. Não gosto da palavra batalha, mas na falta de outra palavra melhor, termino por usa-la. Enfim, sou eu contra eu mesmo. A forma como eu penso, determina a maneira como sinto e vivo a vida. Os problemas, os dilemas, as ilusões, as soluções, a paz de espírito… tudo está dentro da minha cabeça.

Acho que vou fazer um post contando o que fiz para combater a inevitável espiral de dor, ou o que fiz e continuo fazendo para adoçar o meu processo de luto. Olhando para trás, eu vejo que muitas iniciativas minhas, realizadas de forma intuitiva, acabaram sendo fundamentais para avançar no luto com saúde e paz de espírito, estando de bem com a vida, resignado, sorrindo e feliz com a minha existência.

Também pode valer a pena fazer um outro post listando os principais conteúdos que consumi (livros, filmes, TEDs, podcasts, vídeos, blogs, etc) a respeito do luto e da morte, especialmente ao redor do câncer, que me ajudaram muito a entender o que estou passando. Hoje eu me sinto mais esclarecido e consciente, mas confesso que muito do que consumi (e ainda consumo) de conteúdo me exigiu frieza e equilíbrio. Me sinto impelido a montar (e compartilhar) essa lista como agradecimento às muitas mensagens carinhosas e de apoio que recebi, e que continuo recebendo.

Cabe dizer que eu nunca procurei soluções fáceis ou cartilhas de como lidar com o luto. Meu objetivo sempre foi entender o luto, o que está por trás disso. E, junto com o luto, trazer luz sobre a morte, sobre a finitude humana, me ajudando a entender o que passei antes, durante e que estou passando depois da partida da Regina. Esse melhor entendimento endereça uma pergunta dolorosa que não sai da minha cabeça ao longo do meu luto, e que nunca vou ter a resposta: ao saber da morte que se aproximava, o que a Regina sentiu, pensou e gostaria de falar comigo, mas nunca falou?

A minha amada foi maravilhosa, me poupando de seu sofrimento e angústias, tirando o melhor do que a vida nos proporcionava, encontrando luz e vida, mesmo nos momentos mais difíceis e sombrios da doença. A pergunta que citei não é meu único incomodo. A minha mente carrega alguns paradoxos. Uma das maiores lamentações que tenho é que a Regina não está aproveitando o melhor Mauro de todos os tempos. Estou me tornando um ser humano melhor. O irônico disso tudo é que a principal razão de minha mudança foi tudo que passei, vivi e aprendi com a doença dela e sua partida. É um conflito muito grande para mim. A vivência de sua partida está me fazendo um ser humano melhor, mais generoso, mais espiritual e mais sensível, mas ela não está comigo usufruindo disso. Ou está? A minha espiritualidade diz que ela está do meu lado, de alguma forma, vivendo tudo isso ao meu lado.

A busca do entendimento do luto e da morte me trouxe paz e respostas. Aprendi que vivo um processo que é impossível de ser evitado ou manipulado. Passei a imaginar o luto como uma sucessão de ondas que não param de arrebentar na minha praia. O tempo tratará de fazer essas ondas diminuírem de tamanho e frequência, mas é impossível fingir que elas não estão lá, porque elas vêm uma atrás da outra.

Entender o luto, como os fatos e momentos se conectam, as armadilhas que rondam a minha cabeça, o livre arbítrio, o caminho para a paz de espírito, tudo isso têm sido um aprendizado para mim. Sinto que estou em um caminho desconhecido, mas não é mais um caminho escuro e sombrio como era antes. Agora estou em um caminho iluminado, bonito, quente, onde a cada curva se descortina uma paisagem linda e cheia de possibilidades. Estou em paz e feliz. As vezes vem uma chuva, mas logo o sol aparece forte. Sigo em frente, como um peregrino.