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Breguíssimo

Uma das primeiras coisas que fiz, após a partida da Regina, foi substituir as minhas antigas playlists no Spotify por playlists completamente novas, com músicas desconhecidas por mim. Isso, de alguma forma, foi um estratagema para não estimular o despertar de emoções pela falta de minha amada. Acho que tem dado certo, mas isso não evita alguns escorregões, como o que aconteceu há algumas semanas.

Eu estava incomodado por ter montado novas playlists somente com músicas norte-americanas e instrumentais. Não havia nada com músicas brasileiras. Então decidi montar uma playlist com músicas brasileiras, com músicas que tocam meu coração, independentemente do estilo e de qualquer preconceito. Como estou viajando muito de carro, criei essa playlist com o nome “Para cantar no carro”. A playlist foi crescendo e vi que, sem querer, eu fui incluindo muitas músicas “bregas”, mas eu estava decidido a não me preocupar com isso, até porque isso não tem nenhuma importância. Isso é preconceito bobo. Logo eu resolvi mudar o nome da playlist para “Breguíssimo”. Achei divertido.

A primeira vez (e única) que decidi ouvir a playlist, e cantar dentro do carro, foi retornando da casa dos meus pais para a minha casa. Trata-se de uma viagem de quase 60 minutos, portanto perfeita para curtir e “cantar” aquela playlist. Eu estava sozinho dentro do carro, aumentei o volume e dei o play.

Começaram a tocar músicas como “Na rua, na chuva, na fazenda”, “A Lua e Eu”, “As dores do mundo” e “Como vai Você”. Entendeu por que chamei a playlist de “Breguíssimo”?

Eu comecei a cantar as músicas, enchendo os pulmões, me sentindo no palco de um grande estádio, enquanto atravessava a serra da Grajaú-Jacarepaguá, no Rio. Com o passar das músicas, um fenômeno começou a acontecer: eu comecei não somente a cantar, mas também a interpretar, a pensar na letra de cada música cantada. E, ao pensar na letra, eu comecei a conectar as histórias das músicas às minhas histórias com a minha amada Regina.

A cada música, a lembrança da Regina surgia forte na minha mente, acompanhada de recordações e momentos que vivi com ela. O que era a alegria de cantar alto dentro do carro, começou a se transformar em uma saudade imensa. No ponto alto da serra, quando a subida se transformou em descida, aconteceu o grande momento, ao tocar a música “Os Amantes” – letra e música de Luiz Airão, cantada por Daniel. Olha o “Breguíssimo” em seu clímax!

Eu cantava alto e as lágrimas começaram a cair. O que me tocava mais profundamente era a estrofe “Meu amor. Ah se eu pudesse te abraçar agora. Poder parar o tempo nessa hora. Pra nunca mais eu ver você partir.”

As lágrimas eram acompanhadas de profunda tristeza. Eu me sentia arrasado. Impulsivamente eu desliguei o equipamento de som do carro para tentar romper a espiral sombria. Ao mesmo tempo, dentro de mim, algo dizia que a música havia aberto a tampa de algo que eu vinha tentando abafar (ou controlar) nos últimos meses. E que, naquele momento, eu devia deixar a tampa abrir, aceitar o momento e não sublimar a dor.

A experiência do “Breguíssimo” dentro do carro, naquele dia, foi um alerta para mim. Dias depois, eu ainda me sentia confuso. Foi quando me lembrei que, dias antes, eu havia assistido uma apresentação de Lucy Hone, chamada “3 secrets of resiliente people”, realizado no TEDxChristchurch (tem legendas em português). Nesse TED, a palestrante apresenta estratégias e comportamentos de pessoas resilientes. A terceira estratégia, chamada “Isso está me ajudando ou me machucando?”, me foi muito importante. Ela diz para nos questionarmos o tempo todo: “A maneira como estou pensando ou agindo nesse momento está ajudando ou prejudicando o meu esforço para lidar com a minha situação?”

Assistir essa palestra de poucos minutos me abriu os olhos para determinados comportamentos que eu estava tendo, que não me ajudavam, e sim me prejudicavam. Eram comportamentos auto detratores, que não necessariamente estavam me fazendo bem. Dizendo de outra forma: uma espécie de auto sabotagem. São vários exemplos. Eis um deles: ver rotineiramente fotos da Regina, que na essência alimenta a minha saudade melancólica. Eis outro exemplo: borrifar a casa com o aromatizador que a Regina tanto gostava. O cheiro delicioso na casa é o cheiro de antigamente, que inevitavelmente, me leva para o passado.

É como algo que já escrevi em outro texto anterior: tudo ainda está muito sensível, parece aquele rio que, quando do pisamos no fundo, a areia levanta e transforma o rio limpo em um rio turvo. Ouvir “Breguíssimo”, ver diariamente fotos da minha amada e borrifar a casa com o aroma que ela tanto gostava são exemplos de pisar no fundo do rio e levantar a poeira fina.

Aos poucos fui identificando vários pensamentos, atitudes e comportamentos que poderiam estar mais prejudicando do que ajudando. E comecei a tratar de corrigi-los, ou até eliminá-los. Confesso que não é fácil, pois alguns deles viraram hábitos. A maioria deles carrega uma enorme carga de bons sentimentos e recompensas emocionais, mas lá no fundo também são detratores do meu bem estar.

Como exercício coadjuvante disso tudo, eu fico tentando descobrir os gatilhos mentais que disparam tais comportamentos. Um desses gatilhos é o nosso carro. Toda vez que entro no carro, olho para a poltrona ao meu lado e lembro da Regina. Foi nesse carro, nos últimos dois anos, que tantas vezes tive a Regina ao meu lado, levando-a para o seu tratamento, para as situações de emergência, quanto para passearmos, viajarmos e nos divertimos. Definitivamente o carro é um gatilho da lembrança dela. Por isso que decidi trocar de carro ainda nesse mês. É a forma que encontrei para interromper esse gatilho mental. A casa é outro super gatilho, mas me desfazer da casa é mais complexo e difícil que trocar de carro. Enfim, tudo é um aprendizado contínuo.

Na mesma palestra do TED citada acima, Lucy afirma que muitas pessoas acreditam que demonstrar força, resiliência e dignidade é a forma de estancar as feridas e suportar as adversidades, escondendo o que está realmente sentindo. Isso é completamente falso. A verdade é que ser resiliente também consiste na capacidade de aceitarmos as nossas vulnerabilidades, sejam elas quais forem. E saber pedir apoio e ajuda no momento que precisamos.

Ontem eu li um singular e precioso artigo de Laércio Albuquerque, presidente da Cisco Brasil, onde ele relata um auto reconhecimento de suas vulnerabilidades e o seu quase “burnout”. A sua história é o exemplo real daquilo citado no TED pela Lucy Hone, ou seja, é um caso verdadeiro de resiliência e superação. Não é ficção. Eu já era fã de Laércio, agora sou ainda mais. Sua história é impactante e desmonta a imagem de executivo super humano, inabalável e insuperável. Ao descobrir e reconhecer suas vulnerabilidades, ele tratou de agir para tratá-las e buscar o equilíbrio essencial. Por mais incrível que possa parecer, a sua história o tornou ainda mais forte e admirável.

Não por acaso, a história de Laércio é muito próxima da história que eu mesmo vivi em 2016, antes até da descoberta do câncer da Regina. Eu vivi uma experiência própria muito marcante na minha vida, uma espécie de pré-burnout. Parecia que o corpo estava me dando um aviso: “cuide-se, porque caso contrário eu vou entrar em colapso”. Aquilo me provocou um repensar de minhas atitudes e rotinas diárias. Fui muito sincero naquele artigo que publiquei. Recebi mensagens e conselhos de amigos dizendo que eu estava me “despindo” exageradamente em meu depoimento. Segundo eles, um executivo de empresa não deveria mostrar vulnerabilidades e fraquezas daquele jeito, pelo contrário, deveria mostrar força, foco e determinação. Curiosamente, essas mensagens não formam a maioria dos feedbacks que recebi. A maioria se identificou profundamente com a minha experiência, apreciou a minha franqueza e, principalmente, gostou da forma como agi para lidar com tudo aquilo. Aquele meu artigo fui dos melhores depoimentos que já dei na vida. Chamei de “Eu e meu burnout: o dia que quase entrei em colapso”.

E pensar que tudo isso foi despertado após ouvir o “Breguíssimo”. Saber interpretar os sinais vindos da mente e do coração é uma capacidade que venho desenvolvendo nos últimos meses. O período sabático tem sido fundamental para isso. Sem o período sabático, seria impossível. Apesar de uma parte de mim ainda querer ouvir a playlist, o meu lado racional inibe o meu lado emocional, sem margem para testes.

Hoje a playlist “Breguíssimo” está lá no meu spotify, passo por ela a procura de outras playlists, olho, o meu dedo ameaça, mas não ouso dar o play. Nem mesmo hoje, quando se aproxima o dia 28 de outubro de 2020, data que completa 8 meses de partida da minha amada.

Estou na querida Paraty, de onde escrevo e publico esse texto.