Nos últimos anos evoluiu o papo de que as agências de propaganda estão perdendo espaço junto aos anunciantes. Falar em “perder espaço” é algo vago, mas com certeza a relação entre agências e anunciantes se transformou. Me incomoda a conversa de que as marcas estão valorizando menos a criatividade, subjugando o trabalho das agências e que ocorre a comoditização de várias atividades ligadas a marketing e comunicação. Essa afirmação solta precisa ser contextualizada. O cenário vai muito além disso.
O campo de jogo não é mais o marketing de anos atrás. Hoje, temos um marketing completamente distinto, implicando em uma forma de jogar bem diferente do passado, que exige novas equipes, jogadores com novas competências, qualidades e capacidades.
Pense na seleção brasileira da década de 70, com Pelé e tudo. Como ela se sairia nos tempos de hoje, enfrentando um futebol com mais força física e velocidade? Podemos sentir saudades do bom futebol de antigamente, mas assistir a uma partida do Barcelona contra o Real Madri é sempre um espetáculo.
Enfim, as marcas estão buscando coisas muito além do escopo tradicional provido pelas agências de propaganda.
Cabe a observação de que essa sensação de “perda de espaço” não é exclusiva das agências. Empresas, de todos os setores e geografias, sofrem a mesma coisa. Estamos todos enfrentando novos concorrentes, novos modelos de negócio, novas expectativas dos consumidores e clientes, enfim, vivemos a cada dia nos defrontando com um novo intruso em nosso jardim, encapuzado, invadindo sorrateiramente nosso território e conversando com nossos clientes mais fiéis. O pior é que os clientes estão gostando disso e deixando a porta entreaberta.
Eu devorei a edição 1756 de aniversário do M&M, onde o tema principal foi “O futuro da criatividade”. E, mais uma vez, me deparei com intermináveis discussões de que o diferencial criativo das agências está sendo negligenciado pelos anunciantes, que muitos deles tratam marketing como commodity e que existe um embate sério entre agências e consultorias.
No momento em que vivemos, onde ganhar relevância é uma briga diária, mais do que nunca a criatividade é importante. A questão é que os elementos e o processo criativo mudaram. Como disse Fabio Fernandes, da F/Nazca S&S, em sua entrevista para Luiz Gustavo Pacete, do M&M: “No passado, se fazia propaganda de forma muito mais romântica. Se produzia com o cliente, colocava no ar e não tinha ideia das consequências. Não havia pesquisa tão precisa ou feedback tão rápido como agora. Evidente que, nesse contexto, é mais difícil criar, porque sua consciência te chama muito mais vezes. Você tem avisos o tempo todo e isso precisa estar no consciente do profissional de criação. O consumidor está vendo no Facebook, no YouTube, amando, odiando e compartilhando”.
Uma mudança também flagrante é a exigência de uma maior conexão da criatividade ao negócio do anunciante. Isso exige uma relação diferente das agências com as marcas, uma cumplicidade maior, uma forma distinta de conversar, determinar objetivos e medir. Criatividade e resultados de negócio necessariamente caminham juntos, inseparáveis. Podemos estar falando de construção de marca ou de geração de demanda, ou qualquer outro macro objetivo, não importa, mas a expectativa imposta aos CMOs dentro das empresas está bem diferente de um passado recente. Estamos falando de performance. Não dá para fugir desse papo, mesmo que essa seja uma conversa chata, de perguntas sem resposta, de propostas difíceis de mensurar e de discussão impiedosamente racional.
No painel sobre criatividade no último Wave Festival in Rio, Igor Puga, do Santander, fez uma colocação muito pertinente: “Precisamos ter uma concepção mais clara do que é criatividade”. E ele evoluiu dizendo que a indústria não construiu um conjunto de metodologias próprias para mensurar o quanto a criatividade contribui para o ROI das empresas, por isso, os anunciantes hoje pressionam as agências para justificar se o custo da criatividade se paga. “Não há um grau de investimento sério, profundo, para ter uma conversa relevante do quanto a criatividade mexe no ROI ou na ponta”, acrescentou Puga. Mesmo com toda essa indefinição, os líderes de marketing das empresas reconhecem que uma criação altamente inovadora e engajadora pode gerar um efeito no aumento das métricas, inclusive em áreas não mapeadas. Isso torna a discussão ainda mais complexa para responder a pergunta de Igor: “Quanto a criatividade empenhada num projeto vai mexer na ponta do negócio?”
No mesmo painel, Daniela Cachich, da PepsiCo, desafiou a audiência: “Falta coragem aos anunciantes. Falta coragem para apostar em projetos que, às vezes, não conseguimos mensurar muito bem; existem coisas que não são mensuráveis. Os anunciantes estão se escondendo atrás das métricas”. Eu entendo o ponto da Dani, com certeza ocorrem casos em que as métricas são usadas como argumento para inviabilizar um projeto mais ousado. Por outro lado, hoje está sendo bem mais desafiador justificar o investimento de cada real que fazemos em marketing. Uma questão fundamental nessa discussão é como criar mecanismos que nos ajudem a medir o valor e a contribuição da criatividade aos negócios. Ainda nessa discussão, Igor colocou um ponto para pensar: “Podemos alcançar grandes pulos de ROI em marketing muito além do que podemos fazer dentro da fronteira da publicidade e comunicação”. É por isso que surgem novos provedores de serviços específicos, que começam a ganhar mais relevância dentro da operação de marketing das marcas. Falarei sobre isso mais para frente.
Outro tema que complica toda essa conversa é o arrocho na remuneração das agências. Para esse assunto, só tenho uma resposta: “Bem-vindo ao clube”. A pressão por fazer mais com menos toca todo mundo, ninguém se salva, talvez os monopólios consigam sobreviver melhor a essa pressão. Aqui, entra outro fenômeno que é a expansão do marketing dentro das empresas. Antigamente a publicidade era quase onipresente no marketing das empresas, drenando quase a totalidade dos recursos, investimentos e atenção dos CMOs. Hoje o quadro é distinto: o papel dos CMOs cresceu, a missão de marketing dentro das empresas ganhou tentáculos e novos desafios, a publicidade está tendo que dividir espaço na agenda dos CMOs que ganharam mais responsabilidades e prioridades… e tudo isso com o mesmo dinheiro que as empresas destinavam para marketing. Ou seja, o dinheiro que antes ia quase integralmente para publicidade, também tem que ir para outras atividades. Enfim, a briga por cada real em marketing ficou mais dura e o dinheiro precisou ser esticado.
Trabalho em marketing há mais de 20 anos, o que me permite olhar tudo isso com um olhar crítico e fundamentado. De toda a discussão que rola, o que mais tira o sono das agências é a entrada de players que não são do ramo da publicidade, invadindo o seu negócio. Alguns desses entrantes não são novos, já pertenciam ao ecossistema da propaganda, mas ganharam corpo e relevância ao longo do tempo, deixando o papel de coadjuvantes e ocupando espaço na agenda dos anunciantes. Outros são realmente novos entrantes e aí o bicho pega. Um dos invasores que mais perturbam as agências são as chamadas consultorias, como IBM, Accenture, PwC e Deloitte.
A afirmação de que as consultorias estão invadindo o marketing é algo muito questionável. Não existe propriamente uma invasão. O que existe é uma nova demanda vinda dos anunciantes que poucas agências conseguem entregar. Surgiu uma oportunidade que antes não existia, que as agências não conseguiram identificar e ocupar, portanto, a janela de oportunidade ficou entreaberta para novos entrantes. Essa expansão do marketing das marcas engloba a necessidade de implantação e integração de novas ferramentas de marketing, no provimento de experiências únicas e personalizadas com elementos tecnológicos que os consumidores e clientes estão exigindo de suas marcas prediletas, na adoção massiva de big data e muitas outras atividades.
A visão simplista de que as consultorias e outros entrantes estão concorrendo ou roubando negócios das agências precisa ser aprofundada. Esse pessoal não atua nas áreas de publicidade e criatividade, como fazem com excelência as agências de propaganda. Na verdade, as consultorias complementam e potencializam as capacidades de criação e oferecimento de valor aos anunciantes, ou seja, a maior parte dos serviços prestados pelas consultorias é diferente daqueles entregues pelas agências. No entanto, é fato que ambas estão competindo por verbas que, muitas vezes, saem da mesma linha no orçamento do cliente.
As agências de propaganda, de forma geral, para proteger os seus territórios e crescer o portfólio de serviços oferecidos, começaram a diversificar os seus negócios para áreas que não dominam ou detêm profundo conhecimento. Isso implicou em investimentos, complexidade operacional, estruturas mais pesadas, e, talvez, uma distração na sua melhor competência, que é a excelência na criação. Eu não estou absolutamente certo a respeito dessa última afirmação, porque acho que as grandes agências ainda continuam fazendo um excepcional trabalho criativo. Eu estou plenamente de acordo com a declaração de Bob Hoffman, autor do blog Ad Contrarian: “Consultorias podem oferecer aos clientes melhor estratégia, empresas de dados e análises de performance podem oferecer aos clientes melhores números, empresas de tecnologia podem oferecer melhores serviços tecnológicos. Mas ninguém pode oferecer melhores ideias criativas do que as agências de propaganda”. Eu acredito integralmente nessa afirmação.
O último estudo da Martec.com, publicado em 2016, apontou a existência de 3.874 empresas no mundo que são provedoras de soluções tecnológicas para marketing. Foi um crescimento de 87% em relação ao ano anterior. Essas não são consultorias, mas sim fornecedores de serviços e ferramentas tecnológicas cujos clientes-alvo são agências e anunciantes. De acordo com a Martec.com, as cinco principais categorias, por número de soluções, são: Sales Automation, Enablement & Intelligence (220); Social Media Marketing & Monitoring (186); Display & Programmatic Advertising (180); Marketing Automation & Campaign/Lead Management (161) e Content Marketing (160). Existem fornecedores de nicho, mas também grandes players tecnológicos globais, como IBM, Adobe, Google, SAP, Salesforce, Oracle e Microsoft. Esse é um mercado completamente promissor, em constante expansão, e as agências não devem ver a maior parte dessas empresas como adversários ou concorrentes, mas sim como aliados importantes, complementares aos seus serviços, capacidades e inovação.
Se a vida das agências está difícil, é bom dizer que a vida dos anunciantes também não está fácil não. Um amigo próximo, CMO de um grande banco, comentou comigo que além de tudo que ele já faz, ele agora virou um grande integrador. Rotineiramente, ele tem que chamar todos os seus principais parceiros/fornecedores de marketing e colocá-los todos juntos numa única sala para organizar as coisas. Antigamente, ele lidava somente com a agência de propaganda, mas hoje trabalha com um número grande de provedores de serviços de marketing, o que exige uma incrível capacidade de integração e coordenação de toda essa turma. Ele também comentou que num determinado momento teve a expectativa de que a agência de propaganda, sua principal parceira de marketing e negócios, assumisse essa posição de integradora e liderasse esse novo “desenho” de marketing, mas ao longo do tempo a agência não encarou esses provedores como aliados, mas sim como inimigos ou intrusos que buscavam entrar em seu território. O fato é que o papel da agência nessa nova composição de parceiros não alcançou o que o CMO esperava. Em vez de a agência ver uma oportunidade, viu uma ameaça.
O fato é que o conceito de criatividade se expandiu. A criatividade não vem apenas de uma ideia genial, que continua sendo importante e deve ser valorizada, mas criatividade é hoje um exercício coletivo, de diversidade, de complementaridade de ideias, conhecimento e competências. Aquela ideia do cara sozinho numa sala, onipotente, já não funciona mais. Criatividade pode ser uma combinação de novas experiências, envolvendo adoção de novas tecnologias, novos processos, novas formas de relacionamento com os clientes, enfim, é algo extremamente dependente de diversidade de conhecimento e pontos de vista. Como afirmou o Igor Puga no painel do Wave, a arquitetura de informação, a experiência do cliente, os processos, muitas vezes afetam muito mais o ROI do que o título, a mensagem e o roteiro de uma campanha criativa que recebeu prêmios de todos os lados. A maior parte dessas atividades está intimamente conectada à adoção de tecnologia digital. Portanto, no mundo atual, as agências precisam se conectar profundamente a essas ferramentas e instrumentos, que evoluem na velocidade da luz. E a melhor forma de se conectar a elas é se associando aos novos players entrantes no mercado. Se imaginarmos que estamos diante de novas tecnologias explosivas, como internet das coisas e inteligência artificial, aí o cenário fica bem mais complexo.
Tenho uma experiência pessoal que ilustra bem esse momento de mudança que vivemos. Recentemente, IBM e Ogilvy desenvolveram um projeto muito inovador em parceria com a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Basicamente, os visitantes do museu podem conversar com obras de arte selecionadas através de uma tecnologia de computação cognitiva, tendo por base o sistema Watson. A ideia e o conceito criativo vieram de um excepcional trabalho da Ogilvy. Tal conceito foi ampliado em sucessivas discussões da Ogilvy com a IBM e com a equipe da Pinacoteca. Ou seja, a ideia original ganhou corpo, cresceu e chegou ao desenho final por conta de equipes com perfis e conhecimentos completamente distintos e especializados. Essa complementaridade e disposição de buscar uma criação colaborativa é que permitiu chegarmos a um projeto completamente pioneiro e disruptivo. Aqui, entraram “a ousadia e a coragem pelo risco” mencionadas pela Dani Cachich, somadas à “criatividade além do marketing tradicional” citada pelo Igor Puga. E, colocando mais molho nessa conversa, trata-se de um projeto onde o ROI não está conectado a uma geração específica de demanda, mas sim a posicionamento de marca e expansão do conhecimento público do que é computação cognitiva e inteligência artificial. O projeto só foi possível pela parceria concreta de equipes multidisciplinares. Esse é um exemplo evidente do novo processo criativo demandante nos dias de hoje.
Vivemos um mundo diferente do marketing. As empresas têm novas expectativas do trabalho executado por seus CMOs, que por sua vez esperam mais de seus parceiros. Somente o crescimento do market share das empresas e a superação de suas metas financeiras e de negócios é que vão permitir que essas mesmas empresas continuem e até aumentem seus investimentos em marketing e comunicação. Portanto, é hora de as agências falarem mais de negócios, performance e resultados tangíveis. As agências não devem ser apenas parceiras de marketing, mas parceiras de negócio, parceiras de sangue. Que tal começar a deixar de chamar seus clientes de anunciantes?
Ahhh… e para terminar esse longo devaneio, compartilho uma frase de um amigo CMO dita num café com conversa acalorada: “A discussão não é as agências versus as consultorias, mas sim as agências com as consultorias”.