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2ª Consagração do Santo Daime: sombras, trevas e escuridão

Sábado, dia 05/10/2024.


O dia está lindo, muito quente e céu azul.


São 12h45. Chego no Ashram para a minha segunda consagração do Santo Daime. Vim de carro. Estou sozinho.


O Ashram lembra um santuário, está localizado em uma grande chácara, no interior de Goiás, cercado por mata e animais, integrado à natureza nativa do cerrado. É um lugar especial, repleto de paz, perfeito para alimentar corpo e alma.


Ashram é um centro espiritual que tem como propósito o desenvolvimento espiritual

através de práticas como orações, meditação, retiros de autodesenvolvimento,

workshops, trabalhos e festivais espirituais. A palavra “ashram” vem

do sânscrito aashraya, que significa "proteção".


Aqui, nessa narrativa, intencionalmente omitirei algumas informações, especialmente nomes e dados específicos para preservação de todos.


A minha primeira e única experiência com o Santo Daime ocorreu há um ano e meio atrás, nesse mesmo Ashram e com a mesma Madrinha que conduzirá a cerimônia de hoje. Aquela foi uma experiência maravilhosa e transformadora, de elevação espiritual e várias descobertas, que já contei aqui no blog em detalhes. Vale ler o artigo “A minha experiência com o Santo Daime” antes de seguir aqui, lá eu conto tudo. A minha experiência prévia foi a grande responsável por me trazer para essa nova vivência.


Naquele dia da minha primeira consagração, Valéria foi comigo e também se consagrou, porém a experiência dela foi muito diferente da minha. O que aconteceu com ela foi intenso, repleto de dor e medo, inibindo o seu desejo de retornar para uma nova consagração. Ela contou sua experiência, em detalhes, no artigo “Minha experiência com Ayahuasca”.


Ando pela chácara sozinho, lentamente, percorrendo a trilha na direção da Grande Sala. Valéria não veio comigo. Sinto falta. Procuro caminhar debaixo das sombras das grandes árvores.


Vejo mais adiante a Grande Sala. É uma grande construção circular, feita em madeira e vidro, de significativa altura, muito bonita e harmoniosa com o mata nativa que a circunda. O sol forte e abundante, contrastando com o azul do céu, provoca uma explosão de cores ao se juntar com verde da mata e o tom ocre da construção.


Pouco antes de chegar à Grande Sala, vejo uma clareira. Tem um tronco jogado no chão, onde me sento. Acomodo o celular na árvore em frente e faço a foto que ilustra este artigo. Gasto uns dez minutos ali olhando a natureza.




O dia está muito quente e úmido, a mata silenciosa, acho estranho. Tudo parece quieto. Apesar de ter saído confiante de casa e percorrido a estrada tranquilo, estou reflexivo, talvez até um pouco inseguro. Difícil de contar o que estou sentindo. Está diferente da primeira vez. Estar sozinho não permite a distração da mente e amplifica a introspecção.


Sigo o restante da trilha até chegar à Grande Sala. O ambiente é amplo, com um altar repleto de imagens e símbolos que evocam a sabedoria indiana. O local é lindo e agradável, com generosas paredes de vidro, o que permite ver toda a natureza que nos cerca, com muitas árvores e céu intenso.


A Madrinha está lá, já com alguns participantes acomodados. Cabe dizer que a pessoa que lidera e coordena a cerimônia do Santo Daime é chamada, tradicionalmente, de Padrinho ou Madrinha.


Ela me recebe carinhosamente. Conversamos um pouco. Colchonetes e almofadas estão geometricamente arrumados dentro do salão. Verifico que são doze colchonetes. Portanto seremos doze participantes e a Guia.


O lugar exala amor e espiritualidade. Escolho um colchonete e me ajeito. Curiosamente o colchonete escolhido está no mesmo lugar onde fiquei na minha primeira consagração. Penso ser um bom sinal.


Percorro o local com os olhos. Ao lado do altar, vejo distante uma mesinha. Em cima dela identifico duas garrafas de vidro e vários copinhos de papel. O líquido tem cor marrom escuro. Lá está ela: a ayahuasca, a bebida que vai me fazer viajar, que é feita há milênios por várias culturas indígenas, resultado da mistura do cipó jagube e folhas de chacrona.


Pessoas vão chegando lentamente. Eu continuo na minha, deitado, um pouco antissocial, quieto, pensativo e olhando o ambiente. A Madrinha vai recebendo um a um, com carinho e afeição.


Minutos depois chega um casal amigo. Nos abraçamos felizes por estarmos ali para viver uma experiência importante. Passa o tempo e chega a minha amiga W. Nos cumprimentamos alegremente. Ela se mostra feliz e se acomoda em um colchonete próximo do meu.


Passam-se trinta ou quarenta minutos, talvez mais, e todos já estão em seus lugares.


A Madrinha dá boas-vindas e faz uma mensagem reflexiva sobre o momento atual do mundo acrescentando uma visão própria da espiritualidade.


Ela fala sobre as guerras acontecendo no planeta, gasta tempo com isso. Fala sobre a era de extremos que estamos vivendo, a dificuldade de convivência entre os diferentes e aborda também a situação crítica do meio-ambiente do planeta. A mensagem não me cai bem pois tem forte carga negativa. A reflexão segue cada vez mais profunda, somando histórias pessoais, conectando a sua própria transformação e evolução à busca espiritual de todos que estão ali. Ela deixa claro que a mudança do contexto de nossa sociedade e do planeta está em nossas mãos, na capacidade individual de cada ser humano fazer a sua parte perante o difícil momento da sociedade.


Ela busca uma mensagem de esperança e luz, porém me sinto contaminado pelo tom negativo que senti ao longo da conversa. No final, ela pede para cada participante falar sobre o que está buscando ali, comentar um pouco do próprio estado de espírito e expectativas.


Esse processo é longo e cansativo.


Na minha vez de falar, digo que estou ali para viver uma continuidade da minha primeira consagração, que foi uma experiência maravilhosa. A Madrinha acena positivamente com a cabeça, sinalizando lembrar do que vivi e experienciei. Penso o dia de hoje como uma continuação da minha jornada de aprendizado e a oportunidade de mais uma vez olhar para dentro de mim. Falo que não sei o que viverei dessa vez, mas afirmo que tentarei seguir como da primeira vez, ou seja, me soltar, me deixar levar e aceitar o que vier.


Depois de mim, outros falam... e falam... e falam...


Acho que foram quase duas horas nesse processo porque as pessoas falam desmedidamente, as vezes sem freio e direção, com muitos devaneios e reflexões pouco pragmáticas.


O longo tempo de espera para o início da consagração me perturba. Diferentemente da primeira vez, esse processo inicial de conversa e reflexão não me gera paz e quietude. O que sinto é ansiedade. A espera não me faz bem. Fico olhando as pessoas falando e louco para que a cerimônia tenha logo início.


Olho o relógio e já são 16h. É um dia de super calor. O salão parece um forno. Os ventiladores e o único ar-condicionado não dão conta de amenizar o calor dentro do ambiente, que está forte e desconfortável. Isso me incomoda demais e piora meu desalento.


Lembro que, na primeira consagração, a conversa inicial tinha sido muito boa, me trazendo conforto, amor e segurança para o processo do Santo Daime. Dessa vez sinto diferente. A conversa sobre guerras e extremismos no mundo inundou a minha cabeça de imagens e pensamentos ruins e negativos. O longo tempo de espera e o calor anormal do ambiente parecem amplificar o sentimento de desconforto criado dentro de mim. Não me sinto leve e calmo, muito menos pleno. Apesar de tudo, tenho a convicção de que isso vai passar e tudo ficará maravilhoso assim que começar a cerimônia da ayahuasca.




Todos falaram. Não tem mais ninguém para se pronunciar.


A Madrinha chama todos para uma roda. Deixamos os colchonetes e vamos na direção do altar. Formamos uma roda com todos conectados, de mãos dadas. A Madrinha conduz uma mensagem final e fazemos uma oração. Todos voltam silenciosos para os seus colchonetes.


A cerimônia tem início. Vejo o relógio. São 16h30.


Cada um se levanta e vagarosamente se dirige para a mesa ao lado do altar. O processo é lento. Não existe pressa. Lembra o processo tradicional de comunhão na igreja católica: um momento de consagração onde todos caminham de cabeça baixa. A sensação é bem parecida, ou seja, de estarmos experenciando um ritual sagrado, que merece ser vivido de forma integral e com reverência.


É a minha vez. A Madrinha pega um pequeno copo de papelão. Tendo a garrafa de vidro nas mãos, ela derrama delicadamente a bebida sagrada dentro do copo. E me entrega.


Recebo o copo e noto que a quantidade de ayahuasca é maior (talvez o dobro) do que aquela que recebi na minha primeira consagração. Fico um pouco apreensivo. Ensaio falar algo para a Madrinha sobre isso, mas me calo.


O copinho de papelão tem apenas 3 ou 4 dedos da bebida. Fico olhando para o copo. Estou magnetizado, olhando para dentro dele. Levo o copinho na altura do nariz e tento cheirar a bebida.


A Madrinha ensaia um sorriso contido e fala que está tudo bem.


Pode beber” – diz ela.


Tomo a bebida, que não desce bem.


Pode ter sido mera impressão, mas sinto a bebida mais amarga do que aquela que tomei na primeira consagração. O gosto é ruim e nada refrescante. Parece descer quente.


Volto para o colchonete com a cabeça baixa, passos lentos. Não olho para os lados, apenas para o chão. Me deito com a barriga para cima. Agora é esperar o efeito.


O calor infernal e a bebida azeda amplificam meu mal-estar inicial.


Uma música suave começa a tocar.


Estou ali, deitado no colchonete, olhando para o teto. Nada acontece, somente o intenso calor e um vento arredio que vem de um ventilador distante. O ar-condicionado não dá conta do ambiente. O gosto amargo continua na minha garganta.


Fecho os olhos. Inconscientemente a minha mente espera pelo surgimento das mesmas imagens espetaculares, psicodélicas, coloridas e caleidoscópicas, que vivi na primeira vez.


Por mais que eu afirme que eu vou me jogar no fluxo e viver o que precisa ser vivido, a minha mente espera por uma experiência tão sublime quanto aquela que vivi na primeira vez. Tento evitar controlar a minha expectativa, mas tal pensamento surge o tempo todo.


Me mantenho deitado, continuamente de barriga para cima. Abro os olhos e telhado da Grande Sala está acima de minha cabeça, simetricamente construído. Olho para o lado e vejo a longa parede de vidro circular. O sol entra pela lateral, driblando os tecidos que foram colocados lá para evitar a entrada do sol direto, e amplifica o calor reinante dentro do ambiente. Não me sinto confortável. Nada surge na minha mente.


A música no ambiente está mais alta e mais intensa. Olho para o relógio e acho que já se passou meia-hora.


Sinto um pouco de prostração e não tenho mais dificuldade de me manter com os olhos fechados. Me sinto um pouco débil. Mantenho os olhos fechados me entregando a letargia eminente.


Começam a surgir imagens disformes, enfumaçadas, cinzentas, em um fundo completamente negro. Nada é colorido, nada é simétrico, nada é bonito. As figuras parecem crescer fantasmagóricas na minha cabeça. Somente manchas e linhas cinzas dançantes sobre uma escuridão total. O processo vai se intensificando e começo a ficar assustado. Sinto um início de medo.


Imagens disformes, enfumaçadas, num fundo preto

Tenho consciência de onde estou e o que estou fazendo, então abro os olhos. Vejo o teto da Grande Sala em cima de mim. A música está mais agitada e mais alta. Sinto torpor, fraqueza e cansaço. Penso: “agora a ayahuasca bateu!


Meus olhos fecham devido ao cansaço e ao sono induzido. E, imediatamente, entro novamente no universo negro e assustador. Por mais que eu tenha consciência de que estou em um lugar seguro, eu não me sinto bem.


O medo começa a crescer dentro de mim em função da proliferação das imagens na minha mente. Sinto ansiedade e medo do que pode estar por vir. As imagens vêm e desaparecem, em ondas.


Como em flashes inesperados, me veem cenas de guerras. Vejo soldados vestindo capacetes no campo de batalha, dentro de trincheiras. As cenas são muito escuras, com barulhos de tiros e bombas por todos os lados. Eu estou na trincheira junto com eles, mas não me se sinto no campo de batalha. É como se eu fosse somente o observador. Porém sinto o clima e o estado de desespero de todos. É muita sujeira, sangue e terra molhada. Estão todos muito sofridos. Não vejo nenhum soldado de frente, somente de costas. As imagens me impressionam. Abro os olhos, volto para o salão. Ao fechá-los, volto para as imagens sombrias, alternando as imagens fantasmagóricas e as cenas de guerra.




Falo para mim mesmo: “Calma! Mantenha a consciência! Mantenha o controle! Eu preciso me desviar desses pensamentos! Estou com medo de onde isso vai me levar, por isso preciso estar consciente”.


Decido pensar em outras coisas para me desviar dos pesadelos. Penso nas pessoas.


Nesse processo surge a imagem da Valéria.


Estamos na sala, em nossa casa. Valéria segura a minha mão, com força. Ela chora muito. Valéria olha para mim, nos meus olhos, e fala: “Amor, estou livre! Estou leve! Finalmente, tenho a liberdade!” E chora copiosamente, dizendo se sentir livre. Na mesma sequência de imagens, como se estivéssemos no dia seguinte, ou dias depois, eu vejo Valéria novamente. Veja Valéria tatuando duas asas abertas em suas costas. Não consigo ver se a tatuagem é grande ou pequena, apenas vejo o tatuador trabalhando, em uma imagem muito próxima da tatuagem. Não sei o que significa essa conquista da liberdade da Valéria, mas tudo é muito forte.


Na sucessão de alucinações, me vejo na casa de minha mãe. Mas ela está diferente. A imagem que surge na minha frente é a mãe que eu idealizo, que sempre desejei, que não é a mãe que vivo no dia a dia.


São devaneios curtos, entremeados com as cenas escuras e negras que não param de surgir. O medo está em mim. Sinto angústia e insegurança. Minha respiração está mais ofegante. Não sinto paz e amor. Sinto arrependimento de estar ali. Sinto medo do que ainda está por vir. O enjoo, que era suportável até então, parece aumentar.


Não sei quanto tempo já se passou. Olho o relógio no meu pulso, mas não consigo ver direito. Olho para os lados e a maioria das pessoas estão agitadas. Algumas sentadas, outras deitadas. Tem duas pessoas em pé. Uma está vomitando no balde. Minha amiga W está quieta.


Penso ir ao banheiro, fazer pipi e jogar água na cara, me refrescar. Sinto meu corpo muito quente. Estou inseguro. Lembro que na primeira consagração eu não conseguia levantar-me, muito menos andar.


Apesar da insegurança, levanto e caminho. O banheiro fica do outro lado do salão. Consigo chegar bem, andando lentamente, sem me sentir tonto. Entro no banheiro e tem um homem vomitando no vaso sanitário. Faço pipi e jogo muita água na cabeça. O calor é infernal.


Ao sair do banheiro vejo a Madrinha ao lado do altar. Ela olha para mim. Sem fazer nenhum sinal, entendo o seu olhar pedindo que eu vá até ela. Caminho em sua direção como se ela tivesse me dado uma ordem.


Chego perto da Madrinha e ela sorri para mim. Fica claro que é hora da segunda dose de ayahuasca.


Olho para ela e falo: “Dá pouco!


A Madrinha pega a garrafa de vidro e derruba lentamente o líquido no copinho de papelão. Vejo que 3/4 do copinho está cheio da bebida sagrada. Ela me entrega o copinho.


Pego o copinho e pergunto para a Madrinha: “Vão ser duas ou três doses?


Ela olha para mim e fala: “Depois a gente vê”.


Pego o copinho e dou dois ou três passos adiante. Me afasto da Madrinha e me posiciono de frente para as vidraças que emolduram a floresta pujante.


Não estou tranquilo, mas preciso fazer o que precisa ser feito. Eu vim aqui para isso. Não é hora de fugir.

Tomo a bebida de cor marrom escura em três goles, dando um tempo entre eles. Olho a natureza através da parede de vidro. O gosto é muito ruim.


Entrego o copinho escrito com o meu nome para a Madrinha e volto caminhando para o colchonete. Não presto atenção nas pessoas. Estou pensativo.


Deito-me no colchonete e sinto um enorme arrependimento de ter tomado a segunda dose. Por que fiz isso? Eu deveria ter declinado. Eu deveria ter desistido. E agora?


Na minha cabeça só vem o que eu senti até agora. É tudo muito diferente da minha primeira experiência.


Eu quero desistir! Como faço?


Já bebi a segunda dose inteira e alguma coisa vai vir. Como é que eu faço para não continuar?


Sinto medo do que poderá vir.


Começo a sentir um enjoo crescente. Meu abdome reclama.


O tempo passa. Os olhos se fecham pelo cansaço. Não sei quanto tempo já se passou desde que tomei a segunda dose.


Começo a sentir uma dormência crescente no corpo, especialmente mãos e dedos. O ambiente começa a rodar. Estou perdendo o controle sobre o meu corpo e mente. O formigamento se alastra pelo corpo. Sinto uma sensação de intenso pavor. Não consigo ver nada. Nenhuma imagem vem a minha mente. Quando fecho os olhos só vejo tudo escuro, tudo preto.


Abro conscientemente os olhos e vejo o teto da Grande Sala.


O teto da Grande Sala

Será que estou morrendo?


Sinto medo, terror, pavor! Minha respiração é ofegante. O coração está na garganta, parece que quer sair pela boca. Sinto dor no meu abdome e no meu peito. Estou completamente descontrolado. Surge uma ânsia de vômito muito forte. Algo de muito ruim cresce dentro de mim. O que sinto é muito pior do que eu vivi na primeira dose.


Apesar de tudo, consigo ter momentos de consciência. Eu sei que estou em uma cerimônia de Santo Daime. Eu sei que estou cercado de amor e fraternidade. Eu sei que estou em um ambiente seguro. Eu sei que o meu desespero é a minha mente não aceitando perder o controle. Porém não consigo me equilibrar internamente.


Me sinto completamente fora de controle.


O que fazer? Como suportar tudo isso? Estou aterrorizado!


Deitado, quieto, totalmente imobilizado pelo torpor da bebida, mas por dentro explodindo. Acho que não vou suportar isso.


Penso em pedir ajuda. O que fazer?


Vou pensar nas pessoas, como fiz antes. Vou pedir para que elas venham aqui me ajudar.


A primeira pessoa que penso é na Valéria. Eu preciso dela para me salvar do que estou vivendo. Peço ao universo que ela venha até a mim, que me traga amor e paz.


Mentalizo para Valéria vir me resgatar. Tento controlar a minha respiração e me concentrar.


Consigo me acalmar momentaneamente.


Vejo a Valéria em algum lugar que não consigo identificar, mas é um lugar muito claro e luminoso, muito branco. Valéria está na minha frente, com um ar angelical, parecendo ter um filtro do Instagram na frente dela. A minha comunicação com a Valéria é telepática. A gente não se fala, mas a gente se comunica. Eu começo a me aproximar da Valéria, vou chegando cada vez mais perto dela e as nossas imagens vão se juntando, se fundindo em uma coisa só. É como se não houvesse dois corpos físicos porque os dois se entrelaçam. Não sei quanto tempo isso dura, mas o bem-estar é imenso. Sinto um enorme amor dentro de mim. É uma sensação de pura harmonia e paz. A visão, no meu entendimento, evidencia o amor mútuo que temos um pelo outro. É um momento sublime.


Agradeço por esse momento. Fico mais relaxado.


Ao relaxar, eu perco a concentração, volto a lembrar de onde estou e o que está acontecendo. Lembro de que eu estava com muito medo. Tal lembrança, de alguma forma, faz o medo voltar a tomar conta de mim.


Não posso deixar me dominar pelo medo! Lembro da orientação da Madrinha: “se entregue ao processo. Deixe fluir”.


Estou consciente de que tenho que me entregar ao que estou vivendo e sentindo, como fiz na primeira consagração do Santo Daime.


A visão da Valéria me sinalizou de que estou no limiar de viver uma nova experiência celestial, de ter uma experiência espiritual e sair do corpo como ocorreu comigo na primeira consagração do Santo Daime. É só me entregar ao processo e relaxar.


Tenho que me entregar ao processo! Tenho que me entregar ao processo! Tenho que me entregar ao processo!” – repito insistentemente.


No entanto, o medo está me sabotando. Eu não consigo!


É como se eu estivesse saindo do meu corpo e algo, ou alguém, me pega me trazendo de volta para a condição apavorante que estou sentindo.


A sensação de dormência do corpo é crescente. Já não consigo mais coordenar os meus movimentos. O formigamento já se transformou em tremores. Mãos e braços tremem. O calor é imenso. Dentro do salão toca uma música psicodélica em volume estratosférico, de forma repetitiva, me deixando alucinado e desesperado.


Os tremores que sinto nas mãos e braços não me permitem me entregar ao processo. Tento segurar meus braços, apertando-os contra o meu peito, mas não funciona. Eu estou todo tremendo. Estou perdendo o controle!


O que está acontecendo comigo?


Com os olhos fechados, eu só vejo escuridão! Tudo preto! Sinto desespero. A música me soa insuportável. Eu preciso de silêncio. A ayahuasca potencializa nossos sentidos e tudo fica extremo, especialmente a audição e o tato. A sensação de toque na minha pele está muito diferente.


Tudo preto!

Tento buscar ajuda com outras pessoas. Pensei no meu pai, nos meus filhos etc. Ninguém vem. Ninguém, ninguém, ninguém.


Não sinto nenhum prazer por essa experiência. Angústia e desespero me dominam. Sinto dor dentro de mim. Dor física e dor mental. Estou aterrorizado. Sinto medo de que nunca mais voltarei ao meu estado normal.


Estou tremendo sem controle. Já são horas nessas condições.


Tenho consciência de onde estou, mas não consigo me controlar. Prometo a mim mesmo que nunca mais me consagrarei no Santo Daime. Não quero nunca mais viver o que estou vivendo agora. Preciso memorizar o que estou vivendo para nunca considerar uma nova oportunidade de tomar ayahuasca novamente.


É surreal o descontrole que estou sentindo. Eu não consigo descrever qual é a fonte geradora desse meu intenso pavor, mas é algo que vem de dentro de mim.


Sinto uma vontade enorme de vomitar. Abro os olhos, viro o rosto e olho o balde, que está a três metros de mim. Eu não consigo chegar lá. Impossível! O meu corpo não me obedece. Nem me arrastando eu conseguirei. Penso: “segura o vômito. Engole”.


Minhas mãos tremem constantemente. Sinto muita dor dentro do peito e um enorme enjoo. Estou suado. O mal-estar é imenso. Sinto medo. Já é noite. Tudo está escuro lá fora. O salão tem algumas poucas luzes que criam uma intencional penumbra. A música alta, alucinante e psicodélica, continua tocando de forma repetitiva, sem fim. Tudo intenso. Sinto uma tortura física e mental.


Quanto tempo mais levarei nesse sofrimento? Sinto muito medo de que isso que estou vivendo nunca termine. Será que estou ficando louco?


O tempo passa.


Consigo ver o meu relógio. Agora já são quase 22h. Passaram-se horas.


A sensação de pavor diminuiu, porém o mal-estar, dor abdominal e tremores continuam fortes. Me sinto extremamente fragilizado. Estou deitado e o cansaço é imenso. É como se um trator tivesse passado por cima de mim.


Abro os olhos e olho para os lados. Agora a grande sala está bem iluminada, com luzes brancas e coloridas. A maioria das pessoas já estão ativas, algumas sentadas e outras dançando ao som da música. Algumas rodopiam. Existe uma sensação de celebração e leveza dentro da sala. Agora tocam músicas de MPB misturadas com outras conhecidas, em um volume normal. Antes tinha rolado uns mantras. Enfim, o cenário era de desaceleração, muito diferente de horas antes quando o ambiente era psicodélico e feérico.


O teto da Grande Sala iluminada com luzes brancas e coloridas

Eu não consigo me mexer. Apenas consigo me virar levemente para um lado ou para o outro. As tremedeiras e mãos descontroladas são perturbadoras. Tento me movimentar para sentar, mas não consigo porque a minha cabeça começa a girar.


Penso na experiência até agora. Eu não tive experiência espiritual. Os únicos momentos iluminados que vivi foram os momentos com Valéria e minha mãe. Na grande parte do tempo eu vivi uma constante sensação de mal-estar e trevas. O tempo inteiro!!


As coisas seguem assim.


São 23 horas. Eu continuo deitado no meu colchonete. Todas as pessoas no salão já estão de pé e todas parecem bem.


Eu ainda sinto o meu corpo balançando, levemente. Braços e mãos tremem de forma evidente.


Esgotado e sem forças, esse sou eu.


A minha vontade é ficar nessa posição e somente me levantar amanhã de manhã. Do jeito que estou eu ainda não me sinto seguro para tentar levantar.


A Madrinha anuncia que estamos entrando na fase final dos trabalhos. Sua fala é pausada, emanando muito carinho e amor para todos no salão. Ela faz tudo sem pressa, de forma que cada um viva a experiência na forma e velocidade que precisam ser vividas, individualmente. Em nenhum momento me sinto forçado a levantar. Eu me mantenho deitado e a Madrinha sabe que eu preciso de mais tempo.


A Madrinha agradece e diz que gostaria que três pessoas compartilhassem, para ela e para o grupo, a experiência vivida no dia de hoje. Ela fala os nomes... e um dos nomes é o meu. Eu fico por último.


O depoimento dos dois antes de mim demoram absurdamente. Eles falam... falam... falam.


A Madrinha interage bastante com cada um, fazendo perguntas e reflexões sobre o que falaram, em uma espécie de ping-pong verbal. Eu não presto muito atenção, me entrego à fadiga e demência que ainda me dominam. O tempo dos depoimentos ultrapassa uma hora de duração.


Eu me esforço para não ficar mais deitado. Faço um movimento de joelhos, me movo em uma posição estranha, engatinho e consigo me sentar na cadeirinha de meditação ao lado do colchonete. O enjoo é enorme. A dor no abdome continua.


Finalmente chega a minha vez de falar.


Me ajeito melhor na cadeirinha. Todos olham para mim. Noto os olhares, mas minha visão está fixa na Madrinha, que está distante, a dez ou quinze metros de mim. Me esforço para olhá-la. Gostaria de estar mais perto dela.


Então, tento descrever de forma resumida tudo que vivi nas últimas horas.


“Um dos grandes desafios que enfrentei foi desvincular a experiência de hoje da experiência vivida na minha primeira consagração. Por mais que eu tenha tentado não criar expectativas, o fato é que eu miseravelmente falhei.


Acho que uma das principais razões do desespero e angústia que senti hoje foi esperar viver uma experiência parecida com o que vivi na primeira vez. Quando eu notei que a experiência estava sendo bem diferente da primeira, eu me desesperei. Eu fui o responsável pelo buraco onde me enfiei hoje.


Hoje eu vivi uma experiência de sombras, trevas e escuridão. Hoje, eu fui colocado de frente a um lado negro que existe dentro de mim e, que talvez, consciente ou inconscientemente, eu venho abafando ao longo de anos. Esse, provavelmente, é o grande aprendizado desse dia que ainda não terminou.


Eu tenho dito para todos, e para mim mesmo, que nos últimos anos eu tenho vivido a fase mais maravilhosa da minha vida. Essa minha convicção, possivelmente, desenvolveu dentro de mim um certo relaxamento e conforto. É como se eu não precisasse mais buscar avidamente pelo meu autoconhecimento e autodesenvolvimento. Ou pior, é pensar que o que realizei até agora já foi suficiente para me levar para um plano elevado de plenitude de desenvolvimento pessoal e espiritual.

Eu acho que o que vivi hoje foi o universo me falando: ‘Cara, você não está pronto não. Você está muito mais longe do que imagina. Pare de se enganar. Você tem muito ainda o que aprender e se desenvolver. Você ainda precisa olhar muito para dentro de você, encarar de frente as suas sombras e as suas dores. O seu estado espiritual é uma ilusão criada por você. O seu verdadeiro estado não é o que você se impõe ou imagina. Tudo bem, você está no caminho certo, mas você não chegou aonde imagina que chegou, tem muito ainda o que mexer.’


Eu acho que se eu tivesse tido hoje a mesma experiência que eu tive na primeira consagração, eu certamente não teria aprendido nada, porque seria uma repetição do que aconteceu.


E hoje, com o todo perrengue que vivi e que ainda sinto no meu corpo e mente, eu saio com uma lição para minha vida, que é a necessidade urgente de ir mais fundo na minha jornada de autoconhecimento e autodesenvolvimento, de me abrir mais do que me abri até agora. Eu preciso me conhecer mais. Talvez esse seja o grande ensinamento de minha consagração de hoje."


Concluo o meu depoimento dizendo para todos que ainda não estou bem, sinto um profundo mal-estar e ainda tenho tremedeiras. Levanto o braço para mostrar os tremores. Braços e mãos ainda tremem.


“Ainda não consigo ficar em pé. Não estou certo se estou conseguindo me fazer entender por que ainda me sinto um pouco confuso e inseguro. Ainda não saí do estado de desequilíbrio mental e me sinto exausto.


Estou vendo todos sentados, mostrando boa disposição e leveza. Eu não consigo sentar e me sentir bem. Sinto um profundo mal-estar. Eu tenho certeza de que daqui a pouco tudo isso vai passar, mas por agora ainda não estou legal. Muito obrigado por tudo. Agradeço de coração”.


A Madrinha me ouviu pacientemente, olhos fixos em mim, sem me interromper em nenhum instante. Algumas poucas vezes ela balançou a cabeça afirmativamente, mostrando que me acompanhava.

Ao terminar de falar, me reacomodo na cadeirinha. A Madrinha se mantém em silêncio, por longos segundos.


Finalmente ela se pronuncia.


Ela agradece o meu depoimento, diz que tudo que falei parece fazer muito sentido. Ela fala algo que já ouvi muitas vezes: cada um vive a sua própria jornada em uma consagração de Santo Daime, é algo individual, único e profundo.


Ela comenta que, ao ouvir a minha história, ela tem impressão de que eu tenho medo do escuro, e que isso pode representar a minha falta de vontade e coragem para encarar as minhas próprias sombras. E então ela diz a frase: “Você tem medo da caverna”.


A palavra “caverna” perturba o meu equilíbrio emocional. Ela repete a frase e eu respondo com a cabeça, afirmativamente.


Interrompo a Madrinha e começo a falar.


Falo que eu concordo que tenho medo de encarar as minhas próprias sombras. Eu fujo delas. Ao longo da vida, reconheço, sempre minimizei e fiquei longe de minhas dores internas.


Comento que a figura da caverna é muito forte para mim. Na minha cabeça, eu vivi o ano de 2020 dentro de uma caverna. Até escrevi sobre isso várias vezes no meu blog. Foi um momento de profunda desorientação, de não saber o que fazer com a minha vida, uma fase em que a vida parecia não fazer sentido porque não havia propósito. Eu estava completamente desorientado. Nessa fase, eu tinha dentro da cabeça a imagem de uma caverna... eu estava dentro dela! No entanto, nessa caverna, havia sempre um pontinho de luz, onde ali era a saída da tal caverna. Portanto, eu nunca me senti em uma caverna sem saída. Eu sabia que havia uma saída a ser alcançada.


Falei para a Madrinha que talvez eu tenha medo, de forma inconsciente, de voltar para a caverna. Tenho medo de voltar para a escuridão em que eu já vivi. Então, quando me deparo com situações que apresentam risco de me levar para o lado escuro, eu reajo.


A caverna

A Madrinha ouve tudo, faz mais alguns comentários reforçando partes da minha história. No fim agradece o meu testemunho e diz que dará uma mensagem final para encerrar a cerimônia. Ela agora não olha para mim, mas movimenta a cabeça tentando alcançar a todos.


Volto a relaxar. Deixo de ser o ponto de atenção da cerimônia.


A conversa com a Madrinha intensificou a minha indisposição. Fecho os olhos. Sinto algo crescente dentro de mim. Todo aquele mal-estar alcança um nível de descontrole. Eu sinto que não consigo mais segurar o vômito. A dor do abdômen é imensa. Sinto que vou explodir. Olho para o lado esquerdo e vejo um balde branco, grande e alto, acho que está a um pouco mais de 5 metros de distância.


Levanto-me cambaleante, ainda com a Madrinha falando e todos atentos a ela.


A Madrinha me vê levantando e faz um sinal para um dos ajudantes da cerimônia. Ele sai do outro lado da sala e vem em minha direção. A Madrinha para de falar. Sinto que todos olham para mim, mas eu não estou nem aí. Eu tenho uma missão, que é ir na direção do balde.


O ajudante chega perto de mim. Eu levanto meu braço sinalizando que estou bem e consigo ir sozinho. Ele não me obedece totalmente porque se mantém próximo de mim e fica ao meu lado, ao meu alcance.


Chego no balde já não me aguentando mais. O vômito sai com intensidade. Ele vem em três ondas e me apoio em uma coluna, mantendo a cabeça baixa, com segurança.


Levanto a cabeça, voltando a respirar, mas sinto que ainda tem mais. A barriga ronca. Não tenho ideia do que acontece ao meu redor. O meu mundo agora é apenas aquilo ali: o balde e a coluna para me apoiar.


Vem um segundo vômito. Desculpe a descrição detalhada, mas é importante para mostrar a intensidade da experiência. Dessa vez vomito também pelo nariz. Foi feio. Tenho a impressão de que sai muita coisa, não tenho certeza, mas me livrar de algo que me fazia mal é maravilhoso. Olho para dentro do balde, porém não consigo ver o que meu e o que é dos outros.


Talvez não tenha saído tanto material físico, mas saiu muita coisa de dentro de mim. Recebo pequenas toalhas de papel de alguém, não lembro quem, talvez do ajudante. Limpo boca e rosto.


Vem um alívio enorme, mesmo ainda com gosto de vômito na boca e no nariz. O ajudante olha para mim buscando saber se estou bem e se eu preciso de algo. Faço um sinal positivo, mas ele não se movimenta, continua a postos perto de mim. Me mantenho na posição, em pé com a cabeça levantada, porém encostado na pilastra. Minha roupa clara está limpinha. Não me sujei.


Volto a ouvir a voz da Madrinha. Acho que ela havia parado para acompanhar o meu estado. Todos devem ter acompanhado o meu show particular.


Eu não consigo andar. Não me sinto seguro. O ajudante continua perto de mim. Penso que eu preciso me reequilibrar e voltar andando sozinho para o colchonete. Não me sinto fraco, porém me sinto levemente tonto. O corpo está claudicante, com membros ainda tremendo, especialmente braços e mãos. Sinto a minha boca seca e ainda suja.


Após pouco mais de cinco minutos, eu me solto da pilastra de madeira e consigo voltar caminhando lentamente para o colchonete.


O olhar da Madrinha me acompanha. Eu me sento no colchonete e, em seguida, me acomodo na cadeirinha de meditação ao lado. Desejo ficar na mesma posição das pessoas na sala.


A Madrinha interrompe o que está falando e se volta para mim: “Mauro, pode deitar-se um pouco. Descansa. Toma teu tempo”.


Eu aceito o conselho da Madrinha.


Deito-me no colchonete e em poucos segundos vem uma ajudante da cerimônia. Ela se aproxima, coloca um lençol bem fininho sobre meu corpo, apenas deixando pescoço e rosto de fora. A temperatura no ambiente já está mais fresquinha e o ar-condicionado cumpre a sua responsabilidade.


Por ter colocado tudo para fora, o mal-estar praticamente desapareceu. Por que não fiz isso antes?


O ambiente é delicioso. Medo, pavor e terror foram embora. Estou calmo e relaxado. Mais do que isso: estou leve. Sinto-me acolhido e protegido. Sinto muito amor ao meu redor. O colchonete, a cabeça no travesseiro, o lençol sobre mim, tudo isso me traz imensa paz e proteção. No entanto, a boca ainda tem gosto amargo. Ainda sinto dor abdominal, parecido com uma gastrite. Braços e mãos continuam tremendo, porém mais sutilmente. Sinto um nível máximo de exaustão e cansaço. As coisas ainda rodam um pouco quando abro os olhos. Tenho medo da tremedeira não passar nunca mais. Penso nisso, mas conscientemente decido não me contaminar pelo pensamento.


Olho para o lado e vejo a minha amiga W, que me acompanha com os olhos. Ela está preocupada comigo. Na verdade, todos parecem preocupados comigo, não por eu estar correndo algum perigo, mas sim para que eu me recupere logo e o mal-estar passe.


Resolvo me entregar ao torpor que me inunda. Me desligo do que a Madrinha está falando e de todo o ambiente. Decido tentar relaxar e dormir.


O tempo passa.


Com o sono leve e pequenos despertares, acompanho em flashes o movimento da sala. A Madrinha termina a mensagem dela, vejo as pessoas se despedindo, muitos beijos, abraços e agradecimentos. Ninguém vem falar comigo. Eu continuo deitado, com olhos fechados e cochilando. Todos os colchonetes já foram retirados. Só eu estou na sala, junto com a Madrinha, alguns poucos ajudantes e minha amiga W.


A Madrinha se aproxima de mim, senta-se ao lado dos meus pés. Vem mais duas ajudantes e ficam perto. W também está do lado. A Madrinha pede para uma das ajudantes trazer um pouco de mel para mim, enquanto isso ela faz um pouco de massagem nos meus pés. Conversamos sobre temas aleatórios. Eu tomo o mel e isso me desperta, dá energia e força.


A Madrinha exala amor, cuidado e carinho. Me sinto muito bem por estar cercado daquelas pessoas. Não sei quanto tempo demora aquele momento, mas é longo. Fico o tempo todo deitado. Ninguém parece estar com pressa ali. Vou me recuperando lentamente. A estratégia da Madrinha é evidente: ela conversa comigo para me despertar e verificar o meu estado geral. A conversa é agradável e me sinto bem melhor.


Eu aviso que estou bem e pronto para levantar. A Madrinha sorri e diz que agora a minha cor voltou. Todos concordam e comentam que eu estava pálido e com os lábios brancos. Agora estou rosinha.


Fico alguns minutos sentado na cadeirinha de meditação.


Já de pé, vou ao banheiro, andando lentamente. Lavo rosto e boca, escovo os dentes, molho a cabeça com muita água fria, faço pipi e me recupero. Estou conseguindo andar com segurança, apesar de braços e mãos ainda não estarem legais. Enquanto estou no banheiro, no salão gentilmente W recolhe meu colchonete e arruma meus poucos pertences, ao mesmo tempo em que os ajudantes vão finalizando o trabalho de arrumação do local.


Olho para o relógio. São 00h45 do dia 06/10.


Saio da Grande Sala. Apenas eu e W. Ela me dá apoio porque ainda estou levemente tonto. Caminhamos pela trilha cercada pela mata, iluminada por algumas lâmpadas esparsas. A floresta está silenciosa. Vamos conversando baixinho.


Andamos até chegarmos no grande refeitório, que é uma construção destacada na chácara. Uma deliciosa refeição está nos esperando. Algumas pessoas ainda estavam lá, relaxadas, conversando e se alimentando. A Madrinha chega em minutos.


A comida é vegana, farta e saborosa. O salão é grande. A comida me faz muito bem, me desperta, apesar de não sentir muita fome. Ao fim, comi pouco.


O meu mal-estar já se foi. Os tremores não são mais visíveis fisicamente. Aparentemente eles foram embora, porém ainda sinto um leve formigamento e não tenho firmeza nos braços e mãos. Parece que perdi o tônus muscular dos membros superiores.


Me despeço das pessoas, em um clima de celebração e amor. Saio do Ashram por volta de 2h00 já completamente recuperado e bem disposto.

W vai no carro dela, na frente. E eu vou no meu carro, atrás. Juntos vamos em direção a Goiânia. Atravessamos os quase dez quilômetros de estrada de terra para finalmente chegarmos na autoestrada. Após poucas dezenas de quilômetros, chegamos na cidade, quando finalmente nos separamos


Na estrada de terra

Chego no meu prédio às 3h00.


Paro o carro no estacionamento e vou para o mercadinho existente dentro do prédio. Sinto vontade de beber uma Pepsi zero bem gelada, que vai abrandar o meu leve e persistente enjoo. Surge um desejo de comer rosquinhas de leite. Não sei dizer o motivo por que nunca senti isso por rosquinhas, mas vamos lá, aceito o desejo porque hoje tem sido um dia diferente. Entro no elevador com minha Pepsi zero e o pacote de rosquinhas.


Entro em casa. Valéria está me esperando, acordada e ansiosa por me ouvir. Me sinto extremamente cansado, com movimentos lentos, porém sem sono. Peço um tempo para tomar um longo banho, quente e restaurador. Aviso que vai ser demorado.


Vou para a cama, com a Pepsi e as rosquinhas. Me acomodo entre três travesseiros e conto toda a minha experiência para Valéria, detalhadamente, que escuta tudo com paciência e curiosidade. Gravo toda a minha conversa com ela. Tal gravação é a fonte para esse artigo minucioso.


Nessa noite não dormimos. Continuamos conversando, pensando sobre tudo o que eu e ela vivemos em nossas experiências passadas e a minha de hoje.


Por volta de 5h30 o dia começa a clarear. Logo o Sol aparece.


OS DIAS SEGUINTES


Eu passei os dias seguintes ainda impactado com tudo. Foram dias em que me senti pesado, taciturno, introspectivo, inseguro e confuso. Me senti estranho, diferente. Algo novo surgiu.


Por várias vezes recapitulei o que vivi e pensamentos diversos continuam saltando na minha cabeça. Um dos mais fortes se conecta ao fato da ayahuasca também ser chamada de “La Pequena Muerte”, ou seja, “A Pequena Morte”.


A revista Galileu de setembro de 2018 tem uma reportagem de capa chamada “Como a ayahuasca e outros psicodélicos estão revolucionando a psiquiatria”. A matéria é excelente e tem um trecho da matéria neste LINK. O que chama atenção nessa matéria é a citação de uma pesquisa que aponta que a substância presente no chá de ayahuasca produz sensações semelhantes às que são sentidas por pessoas que passam por Experiências de Quase-Morte (EQM). Leia AQUI.


O que vivi de mais intenso na minha experiência foi a sensação de medo e pavor. Será que o medo vivido foi o “medo da morte”? Será que vivi uma “pequena morte”?


Busquei ir mais fundo no entendimento do meu estado de espírito quando cheguei no Ashram naquele sábado. Exercitei a minha memória na busca de reconstruir o processo.


Lembro que eu cheguei bem, porém, na abertura da cerimônia, eu senti uma mudança no meu estado vibracional ao longo da mensagem da Guia.


Por quase 60 minutos ela falou sobre o momento atual do mundo, a crise climática, a destruição do meio-ambiente de difícil reversão, as guerras, o extremismo e a alienação da sociedade de forma geral. Sua exposição foi ponderada com mensagens de esperança, destacando a importância do papel individual de cada um de nós no atual contexto, exemplificando como devemos viver e agir na construção uma sociedade melhor. Apesar de sua voz pausada e tranquila, de sua serenidade, lembro que assimilei a mensagem de forma muito negativa.


Aquilo tudo me perturbou muito. Lembro bem desse desconforto. Lembro dela ter falado em guerras e isso ter me causado uma sensação estranha. Por várias vezes visualizei imagens de guerra e combate na minha mente. Tudo soava contraditório porque eu estava em um ambiente seguro, no meio da natureza, cercado por pessoas exalando paz e amor, enquanto na minha cabeça pipocavam imagens de homens em guerra, em trincheiras e cercados de lama e sangue.


Mais tarde, nos primeiros momentos do efeito da ayahuasca, surgiram imagens de guerra em minha mente, com homens gritando e bombas explodindo dentro dos meus ouvidos, sangue vermelho misturado com terra molhada e cheio de pólvora. Tudo muito real, nítido e impactante. Será que os outros participantes da cerimônia também passaram por isso?

Um outro ponto importante que vem na minha cabeça é o efeito egrégora.


Egrégora é como se denomina a força espiritual criada a partir da soma de energias coletivas (mentais e/ou emocionais), ou seja, quando duas ou mais pessoas estão juntas. Falando de outra forma: é o campo de energia emitido por um grupo de pessoas através dos seus padrões vibracionais.


Ali, durante as longas horas que passei dentro do Ashram, eu estava influenciando e sendo influenciado por todas as pessoas que estavam vivendo a cerimônia. A Madrinha, desde o primeiro momento, até o final da cerimônia, foi a responsável por orquestrar tudo que acontecia lá dentro, inclusive o padrão vibracional. Durante todo o tempo eu fiquei cercado por um grupo de pessoas emanando energia a partir de seus padrões vibracionais internos e de toda energia que a Madrinha gerava e atraía. Enfim, sem entrar em detalhes aqui, mas a Egrégora criada naquele ambiente e momento, talvez, tenha me levado para a experiência que vivi no Ashram, que foi bem diferente da primeira vez. Será que isso faz sentido?


Não tenho respostas. Nem sei, de verdade, se vale a pena encontrar as razões e os motivos que me levaram a viver tudo aquilo. O importante é saber o que faço com isso. O importante é tratar as perguntas que ainda estão grudadas na minha cabeça.


Qual é a mensagem? Qual é o aprendizado? O que isso traz para minha vida?


Acho que por trás de tudo que senti - e continuo sentindo - existe um sentimento de decepção pelo fato da experiência da segunda consagração ter sido desafiadora e difícil. Mas é pior. Existe, também, um sentimento de desilusão pelo fato de eu ter descoberto a minha fragilidade diante de que eu não sou tudo aquilo que me imagino ser. Eu sou um ser frágil, desconhecido, carregado de hesitação, sombras e medos.


Talvez o que mais me doeu foi descobrir que existe um Mauro ainda muito desconhecido dentro de mim: um Mauro sombrio, vil e desvirtuoso.


Quem é essa pessoa que me habita?

Como enfrentá-la?

Como desenvolvê-la?


A principal mensagem que recebi é que verdadeiramente eu ainda não me conheço.



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