Este post nasceu de um livro perturbador: “24/7 Capitalismo Tardio e os Fins do Sono” de Jonathan Crary, Editora Cosac Naify. A mensagem do livro é exatamente como me sinto: a “minha agenda” não é mais minha.
Eu tenho falado nos últimos anos que a vida do trabalho invadiu a vida pessoal e que eu não consigo ter uma agenda equilibrada por conta disso. Isso é verdade, mas é uma verdade parcial. O problema não é apenas o trabalho. A vida como um todo ficou de pernas para o ar. O controle da minha vida não está mais propriamente comigo, mas está sujeito às demandas, estímulos, armadilhas e novas explorações que chegam a mim de todas as formas. Vou explicar melhor.
O pano de fundo da transformação que estamos vivendo vem da fusão dos mundos real e virtual. Com a internet invadindo o nosso dia a dia, através dos dispositivos que temos nas mãos e das redes sociais que nos rodeiam, estamos submetidos 24 horas por dia a uma infinidade de conteúdo espetacular, as vezes muito mais interessante do que a realidade que nos cerca.
Quando o mundo digital começou a surgir, eu pensava que ele só faria sentido e só daria certo se ele fosse uma extensão da vida real. E continuei pensando assim durante muito tempo. Hoje eu vejo que errei. O mundo virtual não necessariamente tem que estar conectado com o mundo real, muitas vezes ele parece ser melhor e mais interessante do que a dura realidade em que vivemos.
Na verdade, a situação é até pior. O nosso dia a dia real parece que perde importância se ele não tiver uma extensão no mundo online. Intuitivamente nós esperamos que a nossa vida diária continue na esfera digital. Aliás, Mr. Crary fala em seu livro que “as atividades da vida real que não têm seu correlato online se atrofiam ou perdem relevância”.
A internet, as redes sociais, a mobilidade total e as novas tecnologias nos transformaram em seres dependentes tecnológicos. Somos consumidores ansiosos de conteúdo, de todos os tipos e em todas as formas. Antigamente, nós tínhamos que buscar esses conteúdos, mas agora eles chegam por todos os lados, sem pedir. E vai piorar com as tecnologias vestíveis e com outras tecnologias que ainda nem imaginamos. Existe uma infinidade de conteúdos sensacionais 24 horas por dia. Tudo parece ser mais estimulante e divertido do que a realidade.
A nossa agenda de vida mudou depois de tudo isso. O tempo todo somos desviados de nosso caminho por estes estímulos que recebemos, seja na esfera de nossas vidas pessoais, seja nas nossas vidas profissionais. Novas demandas, novos interesses, mais interlocutores e influenciadores das nossas vidas jogaram o controle da nossa agenda no lixo. Já não temos mais controle de nossas agendas e interesses. Navegamos de um lado para outro, descobrindo coisas novas o tempo todo, numa fusão surpreendente entre os mundos real e virtual.
O dia de 24 horas, definitivamente, não é mais suficiente. Não dá mais tempo para dormir, estamos o tempo todo conectados, atentos, consumindo conteúdo e nos relacionando com pessoas, sejam elas conhecidas ou não. No mundo atual, dormir é para os fracos. Dormir é o único momento em que realmente não estamos conectados. Talvez cheguemos a uma sociedade em que dormir seja ruim, indo além da mera sensação de perda de tempo que alguns de nós já sentem.
Mr. Crary afirma que o consumidor sem sono está a caminho. Nos últimos cinco anos o Departamento de Defesa dos Estados Unidos tem investido na pesquisa de uma espécie de pássaro chamado pardal-de-coroa-branca que tem a incrível capacidade de permanecer acordado por até sete dias consecutivos. Isso ocorre no outono, quando eles voam do Alasca até a Califórnia, num percurso superior a 4.300 km, e também na primavera quando fazem o caminho inverso. Durante essas migrações, esses pardais voam a noite e procuram por alimento de dia, sem descansar e dormir. Pesquisadores têm investigado a atividade cerebral dos pássaros durante esses longos períodos de vigília, com a expectativa de obter conhecimentos aplicáveis aos seres humanos, e descobrir como as pessoas poderiam ficar sem dormir e funcionar produtiva e eficientemente. O objetivo inicial é a criação do soldado sem sono, ou seja, desenvolver métodos que permitam um combatente ficar sem dormir por pelo menos sete dias e, no longo prazo, duplicar esse período, preservando alto níveis de desempenho mental e físico.
Durante os séculos, as inovações na esfera militar, especialmente nas guerras, foram rapidamente aplicadas na sociedade em geral, por isso parece evidente que o soldado sem sono será o precursor do trabalhador e do consumidor sem sono. Não existem dúvidas de que o surgimento de produtos contra o sono seria um mercado promissor para as empresas, tornando-se um estilo de vida ou necessidade para muitos de nós.
A distinção entre vida pessoal e profissional está desaparecendo. Horário do expediente é algo que já não faz mais sentido para muita gente. O trabalho parece ser ininterrupto. Você responde um email de trabalho dentro do cinema. Você checa a programação do cinema e compra os ingressos dentro do escritório. A sua casa as vezes é seu escritório. Parece que tudo conspira para nos transformarmos em trabalhadores 24 horas por dia. O mesmo ocorre com o consumo. Não precisamos mais de lojas ou shoppings para comprar, apenas o desejo e um click.
Se você tem mais de 50 anos, pense em seus relacionamentos quando era adolescente. Eles se limitavam à sua família, aos colegas de escola e aos amigos e vizinhos de bairro. Estas eram as suas comunidades. Hoje as redes sociais e as tecnologias nos colocam em contato com o mundo todo. Estamos a um click de nos relacionar com quem imaginarmos. Hoje podemos saber o que um desconhecido tomou de café da manhã no outro lado do mundo, basta ele postar algo no facebook ou no instagram.
Nesse contexto maluco em que vivemos, a minha agenda não está mais sob o meu controle. Eu penso que está, posso até acreditar pensando dessa forma, mas não está. Aprender a conviver com essa nova realidade é um exercício cotidiano. E você, está tranquilo?