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O dilema dos dois lobos dentro de mim

Às vezes eu vivo um dilema. É o preço do desapego. 


O dilema surgiu pela primeira vez em 2020, logo depois de eu ter pedido demissão do emprego e sair do mundo corporativo. Eu estava passando por um contexto muito único e pessoal, de imensa crise, já contado e recontado em meu blog. 


Pendurei as chuteiras! Me aposentei! Pulei fora!! Qualquer uma destas expressões serve. 

Eu me sentia em uma espécie de “twilight zone”, vivendo uma fase de transição fora da realidade vivida por mim ao longo de décadas. 


Na minha cabeça, me surgia forte a ideia de seguir uma nova direção de vida, confrontar e transgredir algumas crenças que estavam encrustadas na mente e ressignificar o meu conceito pessoal de trabalho. 


Desde daquela época que emerge uma voz interior dizendo que eu me transformei em um ser improdutivo e meio vagabundo, que na minha idade eu ainda deveria estar trabalhando com vigor e produzindo com intensidade, convivendo com prazos, responsabilidades, projetos e desafios. 


A voz é de um lobo interior, que surge raivoso, com voz dura e grave. O lobo me compara com amigos e amigas de idade próxima da minha, olha os posts desse pessoal no LinkedIn, com todos sorrindo, vitoriosos, obtendo conquistas incríveis e depois me encara com ironia, cravando uma espada no meu ego, perguntando: “você realmente não quer estar lá junto com os eles?”. 


O lobo, perturbador, me diz que estes meus amigos e amigas continuam trabalhando na potência máxima, que eu sou um trouxa e inútil por ter abandonado o mundo corporativo. Ele consegue incomodar e me deixar inquieto, embora eu saiba que ele simplifica demais as coisas e que o contexto não é bem assim como ele fala. 


Cabe dizer que tenho amigos e amigas que saíram do mundo da carteira assinada de trabalho, porém grande parte não largou o mundo dos negócios, optando por seguir atuando como conselheiros de empresas, consultores, empresários, especialistas, empreendendo em seus projetos pessoais, vivendo uma rotina de trabalho na área de sua competência, especialidade, experiência e carreira. Poucos saíram da linha de carreira construída ao longo do tempo. Eles apenas mudaram de lado, entraram para o mundo do trabalho autônomo, em um contexto no qual eles têm mais domínio de suas agendas e do volume de trabalho, mas não renunciando a necessidade de se sentirem produtivos, idealizando e coordenando projetos, assumindo desafios e tocando as coisas.


INQUIETUDE


Os meus amigos que saíram do mundo corporativo, e se transformaram em empreendedores consultores e empresários, demonstram muito prazer nesse novo status de vida. Porém, lá no fundo, eu sinto deles uma inquietude interna, uma sensação de que ainda existe algo a ser descoberto, algo mais a ser feito do que atuar como “profissionais rebranded” em uma continuação da carreira e da estrada que já estavam trilhando no passado. São pessoas que sabem que têm potencial, habilidades, competências e interesses diversos que vão muito além do que elas praticam atualmente. Enfim, sentem que o caminho poderia ser outro.


Esses meus amigos e amigas têm uma vida confortável, uma vida de reconhecimento e apoio dos amigos e da sociedade. O grande desafio não vem de quem está ao redor deles, família e colegas, porque eles têm a aprovação de todos. O grande desafio vem do “lado de dentro”, do “Eu interior”, porque sabem que têm muito ainda por descobrir, que o tempo está passando e que, talvez, chegou a hora de um “repensar da vida que levam” e embarcar nessa viagem interna tão desejada. O “repensar” significa ter iniciativa e coragem para se jogar em coisas que não conhecem e que nunca tiveram chance de tocar. 


Se pudessem dar para elas próprias uma oportunidade para fazer uma mudança de vida, por menor que fosse, se abriria uma estrada gigantesca de oportunidades de crescimento pessoal e possibilidades.

O PREÇO DO DESAPEGO


Eu segui um caminho diferente. Eu resolvi sair completamente do mundo corporativo.


 Vale citar que, nos últimos anos, eu tive algumas pequenas aventuras como consultor e mentor de organizações, mas sempre dentro de uma dinâmica muito limitada em termos de horários, pressão, desafios e responsabilidades. 


Em 2020 eu iniciei uma mudança de vida. Desde então eu tenho olhado mais para dentro de mim e me redescobrindo. É uma fase interminável de auto-observação, autoconhecimento e autodesenvolvimento. Essa tríade tem sido a minha prioridade e o meu foco nos últimos anos. Confesso que tenho sentido uma enorme felicidade por seguir esse caminho porque venho descobrindo um novo Mauro dentro de mim. 


Só que isso tem um preço. É o preço do desapego da carreira, dos meus “títulos” e da pseudo segurança financeira. É o preço por abandonar o meu prazer de gostar da rotina, de um emprego com responsabilidades e desafios, com conquistas e superações. É abandonar a crença de que um emprego seguro (com carteira assinada, renda mensal, plano de saúde e outros) é condição fundamental para a minha felicidade pessoal. Esses desapegos, quase sempre, são difíceis de encarar e superar. Porém, o mais desafiador é lidar com o ego.


O OUTRO LOBO 


O lobo dentro de mim não entende “desapego”. Ele diz que eu estou muito jovem para reduzir a velocidade. No entanto, quando este lobo está barulhento, agitado, gritando alto dentro da minha cabeça, surge um outro lobo. 


Esse outro lobo aparece sereno, voz doce, falando baixo e de forma pausada. Ele diz que eu estou certo. Ele diz que eu estou em minha jornada pessoal de descoberta e reconstrução como ser humano, que estou escrevendo um novo capítulo no livro da minha vida e que tenho muito ainda por buscar. 


O lobo me fala que o que vemos no LinkedIn é uma versão da realidade. Lá as pessoas publicam coisas lindas, mensagens motivadoras e conquistas, fotos de felicidade absoluta, mas que a realidade não é bem assim. 


A realidade é mais dura e cruel do que a “timeline” das redes sociais apresentam. 

O dilema causado pelos lobos dentro de mim surge de vez em quando, especialmente quando vejo notícias e fotos de amigos e amigas que continuam trabalhando, construindo e conquistando coisas. Porém, logo em seguida, eu imagino o que vem no arresto desta realidade contada, que são os desafios e prazos loucos, horas mal dormidas, stress, tensão e pressão, o “jogo corporativo” e a dificuldade em “ser você mesmo” no mundo do trabalho.


Então olho para dentro de mim e acolho o lobo de voz doce. Concluo que não vale a pena voltar para o mundo corporativo. Não vale nem a pena pensar nisso. E a razão é evidente. Na maior parte das vezes em que falo com amigos e amigas do mundo corporativo, eu vejo neles uma insatisfação latente, com questionamentos recorrentes da qualidade de vida que vivem, mesmo considerando bons salários e bons empregos. 


O PEDESTAL É UMA PRISÃO


Valéria Ruiz, terapeuta especialista em relacionamentos amorosos, escreveu: 


“Houve um tempo em que, por uma necessidade profunda de me sentir amada, pertencente e reconhecida, eu ansiava ser colocada em um pedestal. Ser valorizada dessa forma me trazia uma sensação temporária de bem-estar, preenchendo um vazio interno. No entanto, com o passar do tempo, percebi que esse pedestal, que antes parecia tão atraente, na verdade, era uma prisão.

Hoje, entendo que, ao me acomodar nesse pedestal, eu não estava atendendo às minhas verdadeiras necessidades, mas sim às expectativas e demandas dos outros. Ao tentar me encaixar em espaços apertados para agradar e ser aceita, eu acabava negligenciando as necessidades mais latentes da minha própria alma. 


Meu maior desejo é conquistar, a cada dia, mais liberdade – uma liberdade que vem de ser quem realmente sou, sem me moldar para caber em expectativas alheias. Agora, quando percebo que alguém tenta me colocar em um pedestal, fico atenta a essa armadilha. Agradeço o elogio, mas gentilmente recuso o pedestal, porque, para mim, ele deixou de ser um lugar de honra e se tornou uma prisão da qual escolho me libertar”.


O conceito do “pedestal que se transforma em uma prisão”, elaborado por Valéria, se encaixa perfeitamente no dilema dos lobos. 


O lobo barulhento grita tentando estimular o “meu retorno” para o pedestal, um lugar que já ocupei, que parece ser o certo diante das expectativas e demandas das pessoas que me cercam, que alimenta a fome do meu ego em me sentir admirado, amado, pertencente e reconhecido. Entretanto, esse pedestal é uma armadilha. 


Quando alcançamos o pedestal, nós não queremos mais sair. Nos agarramos a ele. O preço para se manter no pedestal, conforme o tempo passa, vai ficando cada vez maior e mais doloroso.

O pedestal é uma prisão. O lobo doce sabe disso. Ele sabe que a “liberdade de ser quem realmente sou” é a real essência da vida, que devo buscar e praticar isso todos os dias, não me submeter às expectativas alheias e, muito menos, ao que meu ego grita nos meus ouvidos todos os dias.


VIDA FORA DA CARREIRA


Dias atrás eu recebi uma mensagem de uma querida amiga. Há muito tempo que não nos falávamos, por isso a mensagem veio carregada de novidades. 


Ela contou que a sua vida mudou bastante. Ela se mudou para uma cidade no interior do Rio de Janeiro para cuidar de sua mãe que havia adoecido. Isso gerou impactos em seu trabalho e uma série de outras coisas. Hoje ela trabalha em home office, mas ainda com o desafio de organizar melhor a vida profissional. 


O que me chamou atenção foi quando ela escreveu: “Muito nova para ser aposentada, muito 'velha' para o mercado de trabalho (sim, etarismo existe!), mas nesta fase da vida eu descobri algo que não tinha noção: existe vida fora de uma carreira, de preocupações corporativas ou mesmo de um salário, ou falta dele. Nunca pensei que um dia eu pudesse pensar assim. Talvez eu esteja amadurecendo (ou enlouquecendo), mas é por aí. Menos bola para coisas que já foram tão importantes. Isso para mim é uma tremenda novidade”.


A descoberta dela é um exemplo da inquietude que nasce dentro da gente e que nos transforma. Muitas vezes essa inquietude é alimentada pelos fatos da vida que estão fora de nosso controle, conforme ocorreu com ela no caso de sua mãe ter adoecido. Porém, quando potencializamos o processo através dos nossos comportamentos, atitudes, ações e decisões de vida, a inquietude se converte em transformação. Ou seja, ao estarmos diante de uma potencial mudança de direção, não devemos reagir e muito menos dar meia-volta, o melhor fazer é abraçar a oportunidade e nos jogarmos nela. Acho que foi isso que aconteceu com minha querida amiga. 


A LENDA DOS DOIS LOBOS


O meu dilema é efêmero, parece um vagalume, ele vem e volta de vez em quando. Além de efêmero, o meu dilema é bobo e inútil, porque ele não representa verdadeiramente o que eu penso e desejo para mim. 


Tal dilema, simplesmente, representa o apego por algo que construí e conquistei, por algo que eu surfei na onda durante muito tempo, mas que agora é simplesmente apego, nada mais do que isso. É simplesmente o meu ego desejando ter o brilho, o reconhecimento e a segurança da carreira que eu já tive no passado. É o tal pedestal citado pela Valéria. Isso não representa o meu desejo e não é a minha essência verdadeira. O que realmente quero, e preciso, é continuar me descobrindo e buscando coisas novas. Isso eu não abro mão.


Os dois lobos que citei nesse artigo e que ilustram o meu dilema, fazem parte da “Lenda dos Dois Lobos”, que já contei no meu blog. 


Acho que todos os dias me lembro e aplico essa lenda, nas mais variadas situações, porque os lobos estão sempre em meus pensamentos, escolhas e decisões de vida, desde as mais simples até as mais complexas. 


A lenda fala sobre uma conversa entre um velho índio e seu neto. O ancião diz que, dentro de cada um de nós, existem dois lobos que travam uma batalha terrível na tentativa de dominar o nosso espírito.

Um lobo é mau. Seus dentes são fortes, seu olhar é agressivo e penetrante. Ele carrega sentimentos ruins, como ódio, raiva, ciúme, cobiça, crueldade, inveja, egoísmo, arrogância, avareza, ressentimento, falsidade e ego.


O outro lobo é bom. Ele tem um olhar sereno e doce, parece estar sempre iluminado. Ele carrega bons sentimentos, como serenidade, bondade, humanidade, empatia, esperança, sensatez, perdão, compaixão, generosidade, gratidão, verdade e amor.


Então o neto pergunta ao avô: "Qual lobo vence?"


O velho índio responde: "Aquele que você alimentar".


A lenda é simples, mas apresenta uma reflexão importante. Os dois lobos representam uma batalha contínua de duas forças existentes dentro da gente. Essa espécie de dualidade entre o bem e o mal define em grande parte o que somos. Estamos o tempo todo navegando entre esses extremos, onde parece que ambos os lobos estão à espreita, prontos para pular na nossa frente, moldando nossos comportamentos e atitudes e nos levando para diferentes direções de vida.


Na maioria dos relatos existentes, quando o jovem cherokee pergunta ao seu avô qual lobo vence a batalha, o velho índio responde que ganhará o lobo que alimentarmos. Porém, existe uma outra versão que me parece mais notável. 


Na outra versão, o velho índio diz ao seu neto que, na realidade, não existem lobos vencedores. Ou, dizendo de outra forma, ambos ganham, porque essa batalha não é um jogo de forças e nem um jogo de poder, mas sim um jogo de equilíbrio e harmonia.


É impossível eliminar um dos lobos. O segredo é como lidamos com cada lobo, como tiramos o melhor de cada um deles, para a nossa harmonia espiritual e nosso desenvolvimento como ser humano.


Não existem apenas lobos bons e lobos maus dentro de nós, mas lobos de todos os jeitos, espécies e dimensões. Somos nós que criamos esses lobos e damos espaço para eles dentro de nossas mentes. Lobos que surgem e desaparecem. Lobos que aceleram o nosso desenvolvimento como seres humanos e lobos que não nos fazem bem.

Eu vivi e convivi com vários lobos ao longo da minha existência até agora. Eles surgem e muitos vão embora, conforme o espaço e o tempo que dou para eles. Porém, vários ficam e parecem habitar a minha cabeça, se tornando residentes.


Em 2020, vivendo um período de luto e crise, eu convivi com novos lobos dentro de mim. Havia o lobo que me fazia olhar obsessivamente para o passado interrompido. Havia um outro que me fazia valorizar as perdas e me provocava lamentações, me transformando em um ser moribundo e miserável. Outro lobo, ainda mais perverso, tentava me convencer que eu já havia vivido o melhor da minha existência e que eu era vítima do destino.


Por outro lado, quando estava cercado por esses lobos maus, surgiam no horizonte alguns lobos iluminados. Havia o lobo dizendo que eu tinha uma vida nova em minhas mãos e um possível futuro lindo à minha frente. Outro lobo me fazia sonhar de que agora eu poderia fazer coisas que nunca havia imaginado fazer na vida. E lobos que sussurravam no meu ouvido: por que não viver um novo grande amor? À medida que eu permitia que esses lobos se aproximassem, mais lobos bons surgiam. De repente, me via cercado somente de lobos bons… e os lobos maus tinham ido embora.


Ironicamente, os lobos maus dentro da gente também são importantes. Por exemplo, os lobos do medo e da insegurança podem nos despertar capacidades e comportamentos virtuosos, que os lobos bons carecem, como tenacidade, coragem, capacidade de superação, determinação e resiliência. Muitas vezes são os lobos maus que colocam a realidade dura da vida na nossa frente, que nos desafiam, que nos geram o desconforto que tanto precisamos para nos movimentarmos, buscarmos superação e alcançarmos o que nos parece impossível. Portanto, lobos maus podem não ser tão maus quanto imaginamos, depende de como interagimos com eles.


O ser humano é um ser dual. Por isso, em vez de nos violentarmos na tentativa de eliminar algo dentro da gente, o que precisamos é entender e conviver com os diversos lobos que nos habitam, reconhecê-los, aceitá-los e controlá-los, para buscarmos o equilíbrio. É assim que venho lidando com meus dilemas, sonhos e questões existenciais.


Caminho da Fé: uma caminhada solitária de 317km

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