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Os lobos dentro de mim

Desde o ano passado que me imagino recebendo um pacote dos correios. É uma caixa de papelão grosso, envolta em um papel de presente de cor bege, que o entregador me entrega na porta da minha casa. Assino a ficha de recebimento. No topo da caixa, preso com uma fita, um cartão pequeno. Lá está escrito: “Um presente de Deus. Assinado: Deus.”

A caixa é grande, pesada. Recebo-a com as duas mãos. Ela está envolvida por uma fita larga e acetinada, cor vermelho forte, com um belo laço no topo. Abro a caixa, ansioso para ver o que tem dentro e me surpreendo. Sou eu! Eu estou dentro dela!

Esse “sonho” perturbador ronda a minha mente de forma recorrente nos últimos meses. A metáfora por trás desse sonho é que no ano passado eu ganhei a minha vida todinha para mim, por inteira, sem desculpas, para viver o que eu sempre desejei e imaginei. Eu recebi esse presente e, até hoje, não estou certo do que fazer com ele. Ainda me sinto com a grande caixa nas mãos, aberta, olhando para dentro dela, ainda sem saber muito bem como agir, mas com a certeza de que tenho que fazer algo. Dias atrás vivi um momento em que essa metáfora do “presente de Deus” ficou mais forte e me provocou reflexão.

Eu estava em casa, sozinho, em Goiânia, em frente ao grande espelho da sala. De repente, me olhei de um jeito que eu nunca tinha me olhado, tentando identificar quem realmente estava ali. No fundo, a imagem da cozinha. Senti que aquele poderia ser um momento especial, então fiz tudo para torná-lo realmente especial. Quem eu sou depois de tudo que vivi em 2020?

Coloquei uma música para tocar. Não foi qualquer música. Foi “Beatriz”, de Antônio Carlos Jobim, exatamente essa versão AQUI, instrumental e maravilhosa obra celestial. Ela me toca no fundo da alma.

Olhei fundo nos meus olhos, paralisado. Estava sem expressão. Apenas me encarando diante do espelho. Meu olhar percorreu meus cabelos brancos, minhas rugas, minha pele branca… azeda, marcada pelo tempo… e voltei a me fixar no meu olhar cansado. Afinal, quem é esse cara que está na minha frente?

A música terminou. Coloquei para começar de novo. Coloquei em loop infinito.

Se você pretende continuar lendo esse texto, eu adoraria que continuasse a leitura ouvindo ao mesmo tempo a música que citei acima, em um lugar calmo e reservado. É só dar play no botão da imagem. Vai fazer diferença.

A impressão é que eu estava olhando para dentro de mim, desnudo, esperando sinceridade de minha parte. Acho que eu nunca havia feito algo parecido: um encontro comigo mesmo, espontâneo, profundo e honesto. O “presente de Deus” estava na minha frente.

Comecei a me lembrar de tudo que eu já fiz na vida. Me ver de frente, com um olhar cara a cara, transformou aquilo em um momento poderoso. Eu não podia mentir para mim mesmo.

A música tocava na minha alma, misturada aos sons do trânsito e da obra infernal em frente ao prédio.

Pensar em tudo que fiz e realizei na vida, até hoje, me dá conforto. Acho que tem sido uma vida legal e digna, talvez um pouco sem graça. Porém, o mais intrigante não é pensar sobre o que eu já fiz, mas responder à pergunta do que eu quero fazer com a minha vida atual, essa que eu tenho agora em minhas mãos. O tal “presente”, sabe?

Eu nunca me senti tão dono de mim como agora, com tanto poder e autonomia, com tanta consciência e clareza das coisas, com tanta independência. Essa luz libertadora não me ilumina apenas por conta da maturidade dos meus 60 anos de vida completados recentemente, mas também é consequência de todo processo que vivi, que ainda vivo, e que tenho compartilhado no meu blog de forma honesta, transparente e corajosa. Aliás, coragem é uma das palavras que mais tenho trabalhado na minha cabeça.

A solidão é um encontro com a gente mesmo. Talvez a maioria das pessoas tenha medo desse auto encontro, por motivos que não vale comentar aqui. Eu me deparei com a solidão no ano passado e descobri que me sinto muito bem sozinho. Porém, para muitas pessoas, estar sozinho, voluntária ou involuntariamente, é sempre um desafio, quase sempre causando impactos importantes no desenvolvimento pessoal, para o bem ou para o mal. Digo isso porque muitos não conseguem se ver sozinhos, enquanto outros sabem tirar partido da situação para se redescobrirem (como aconteceu comigo e continua acontecendo).

Continuo sozinho dentro da sala, ainda me olhando congelado diante do espelho, envolto por meus pensamentos, viajando, buscando elaborar o que eu quero fazer da minha vida, pensando em quem realmente habita esse corpinho mais envelhecido… e me vem à cabeça a lenda dos dois lobos.

A música já tocou em loop um monte de vezes. A xícara, com sobras de um café com leite frio, ainda está na mesa diante de mim, coberta por uma toalha de mesa manchada por pingos de café e migalhas de pão.

Penso na Valéria. Daqui a pouco ela vai chegar. Ela vai entrar pela porta do apartamento e não estarei mais sozinho. Então, esse meu momento de vida interrompida será quebrado e eu retornarei para a realidade.

Valéria é meu Amor, parceira que preencheu a minha solidão, que me dá luz e propósito de vida. Ela resgatou o Mauro do poço e o elevou ao céu azul, ao horizonte de possibilidades infinitas. Ela é meu farol. Estou apaixonado. Ela é razão de eu estar agora em Goiânia, no meio do centro-oeste maravilhoso do país. Foi em um trabalho criado por ela que conheci a lenda dos dois lobos que veio em minha mente.

A lenda dos dois lobos é uma história tradicionalmente contada pelo povo indígena Cherokee dos Estados Unidos. É um relato simples, mas que se tornou uma parábola recontada em muitas culturas ao redor do mundo, além de ser imensamente usada em cursos de autoajuda

A lenda fala sobre uma conversa entre um velho índio e seu neto. O ancião diz que, dentro de cada um de nós, existem dois lobos que travam uma batalha terrível na tentativa de dominar o nosso espírito.

Um lobo é mau. Seus dentes são fortes e seu olhar agressivo. Suas orelhas são pontiagudas. Ele carrega muitos sentimentos ruins, como ódio, raiva, ciúme, cobiça, crueldade, inveja, egoísmo, arrogância, avareza, ressentimento, falsidade e ego.

O outro lobo é bom. Ele tem um olhar sereno e doce, parece estar sempre iluminado. Ele carrega bons sentimentos, como serenidade, bondade, humanidade, empatia, esperança, sensatez, perdão, compaixão, generosidade, gratidão, verdade e amor.

Então o neto pergunta ao avô: Qual lobo vence?

O velho índio responde: Aquele que você alimentar.

A lenda é simples, mas apresenta uma reflexão importante. Os dois lobos representam uma batalha contínua de duas forças existentes dentro da gente. Essa espécie de dualidade entre o bem e o mal define em grande parte o que somos. Estamos o tempo todo navegando entre esses extremos, onde parece que ambos os lobos estão à espreita, prontos para pular na nossa frente e moldar nossos comportamentos e atitudes, que nos levam para diferentes direções na vida.

Meu maior aprendizado com essa lenda é que nossos valores, motivações e comportamentos podem ser esculpidos por nós mesmos. Ou seja, nós podemos ter o domínio sobre esses lobos dentro de nós.

Na maioria dos relatos existentes, quando o jovem cherokee pergunta ao seu avô qual lobo vence a batalha, o velho índio responde que ganhará o lobo que alimentarmos. Porém, existe uma outra versão que me parece mais notável. Nessa outra versão, o velho índio diz ao seu neto que, na realidade, não existem lobos vencedores. Ou, dizendo de outra forma, ambos ganham, porque essa batalha não é um jogo de forças e nem um jogo de poder, mas sim um jogo de equilíbrio e harmonia.

É impossível eliminar um dos lobos. O segredo é como lidamos com cada lobo, como tiramos o melhor de cada um deles, para a nossa harmonia espiritual e nosso desenvolvimento como ser humano.

A metáfora dos lobos pode ser estendida ao infinito. Podemos aplicá-la de diversas formas. Acho que foi por isso que ela me veio à mente, diante do espelho, na busca das perguntas: Quem sou eu? Quem eu quero ser? Quais lobos quero alimentar?

Não existem apenas lobos bons e lobos maus dentro de nós, mas lobos de todos os jeitos, espécies e dimensões. Somos nós que criamos esses lobos e damos espaço para eles dentro de nossas mentes. Lobos que surgem e desaparecem. Lobos que aceleram o nosso desenvolvimento como seres humanos e lobos que não nos fazem bem.

Eu vivi e convivi com vários lobos ao longo da minha existência até agora. Eles surgem e muitos vão embora, conforme o espaço e o tempo que dou para eles. Porém, vários ficam e parecem habitar a minha cabeça, se tornam residentes.

No ano passado, vivendo o meu luto, eu convivi com novos lobos dentro de mim. Havia o lobo que me fazia olhar obsessivamente para o passado interrompido. Outro que me fazia valorizar as perdas e que me provocava lamentações, o que me transformava em um ser moribundo e miserável. Outro lobo, ainda mais perverso, tentava me convencer que eu já havia vivido o melhor da minha existência e que eu era vítima do destino.

Por outro lado, quando estava cercado por esses lobos maus, surgiam no horizonte alguns lobos iluminados. Havia o lobo dizendo que eu tinha uma vida nova em minhas mãos e um possível futuro lindo à minha frente. Outro lobo me fazia sonhar de que agora eu poderia fazer coisas que nunca havia imaginado fazer na vida. E lobos que sussurravam no meu ouvido: por que não viver um novo grande amor? À medida que eu me permitia que esses lobos se aproximassem, mais lobos bons surgiam. De repente, me via cercado somente de lobos bons… e os lobos maus tinham ido embora.

Ironicamente, os lobos maus dentro da gente também são importantes. Por exemplo, os lobos do medo e da insegurança podem nos despertar capacidades e comportamentos virtuosos, que os lobos bons carecem, como tenacidade, coragem, capacidade de superação, determinação e resiliência. Muitas vezes são os lobos maus que colocam a realidade dura da vida na nossa frente, que nos desafiam, que nos geram o desconforto que tanto precisamos para nos movimentarmos, buscarmos superação e alcançarmos o que nos parece impossível. Portanto, lobos maus podem não ser tão maus quanto imaginamos, depende de como interagimos com eles.

Acredito que os maiores feitos e conquistas realizados por mim foram possíveis por causa dos lobos maus que vagam em minha mente. No meu caso, se lobos maus não existissem, eu provavelmente seria uma pessoa acomodada, autossuficiente, talvez desinteressante, talvez arrogante e, provavelmente, me provocaria o desejo de não me vincular a mais ninguém na vida porque eu me bastaria.

O ser humano é um ser dual. Por isso, em vez de nos violentarmos na tentativa de eliminar algo dentro da gente, o que precisamos é entender os diversos lobos que nos habitam, aceitá-los e controlá-los, para buscarmos o equilíbrio. Esse é um exercício contínuo e evolutivo, uma espécie de aprendizado para a vida toda.

Busquemos alimentar criteriosamente os nossos lobos, sejam eles bons ou maus, para tirar o melhor da natureza deles e, por conseguinte, para tirar o melhor de nós mesmos. São todos esses lobos, juntos, que mexem com nossos instintos, que aumentam ou reduzem nossa autoestima, que potencializam a nossa melhor versão como ser humano, que fazem florescer as nossas necessidades, capacidades, que nos geram inquietação e que nos fazem buscar os sonhos mais almejados e aparentemente impossíveis. O real segredo é treinarmos os nossos lobos para eles viverem em harmonia dentro de nós, mesmo que de vez em quando a gente permita que um lobo domine os outros momentaneamente.

Não matemos de fome os nossos medos e inseguranças. Será sempre melhor reconhecê-los, aceitá-los, entendê-los e transformá-los. Não matemos de fome também a nossa raiva, a nossa tristeza e as nossas angústias. Eles não são inimigos a serem abatidos. Nos aproximemos desses sentimentos internos e profundos para entender o que eles querem nos dizer, o que eles nos provocam e como os dominamos. Não pensemos em isolá-los ou desintegrá-los. Que a gente abrace esses sentimentos e nos permita vivê-los intensamente. Eles podem nos dar lições valiosas para que cada dia seja um pouco melhor. Foi assim que atravessei a caverna escura do luto e cheguei na catedral iluminada de uma nova perspectiva de vida e um novo amor.

Enfim, imaginar a existência desses diversos lobos dentro de mim me parece um poderoso artifício de aprendizagem de autoconhecimento e equilíbrio emocional, podendo se transformar em benefício real para meu bem-estar e, especialmente, para o meu momento de vida, para me conhecer melhor e me levar para onde desejo ir.

Certamente que a minha vida, até agora, foi resultado dos meus comportamentos, atitudes e decisões. Confesso que, provavelmente, a maioria deles foi inconsciente e sem propósito. Vivi como um barco navegando em um rio, muitas vezes estreito, outras vezes largo, as vezes o rio tinha águas calmas, outras vezes turbulentas, em linha reta ou com curvas, ora caudaloso, ora tranquilo.

A imagem do barco é uma forma de entender que a minha vida nunca foi realmente conduzida por mim, mas sim o resultado de um contexto de vida que me levava sempre adiante, porém me limitando e me cerceando de muitas coisas. No fundo, eu nunca fui realmente quem eu sou de verdade, mas fui resultado de onde a vida me levava. Ou melhor, usando a metáfora dos lobos, eu fui para onde os lobos que surgiam na minha frente me levaram. Mas agora não, agora sou eu que estou no comando. Agora eu sou o lobo… e sou o chefe da matilha!