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Caminho da Fé: uma caminhada solitária de 317 km


O 1o dia do Caminho, entre Águas da Prata/SP e Andradas/MG

Foram 317 km de caminhada solitária, em 12 dias. Alguns gostam de usar a palavra peregrinação, porém eu gosto mais do termo “caminhada”. A palavra peregrinação tem conexão com devoção ou romaria, que não foi o meu caso, por isso adoto a palavra “caminhada”. No entanto, nesse texto, eu usarei as duas denominações, sem distinção ou preferência.

A caminhada teve infecção intestinal, forte gastrite, enjoo, dores intensas nas pernas e joelho direito (na verdade em tudo!), chuva, lama, muito frio, cachorro querendo morder tornozelo, lábios rachados, tombos, carrapato e outros perrengues. Também teve centenas de ciclistas passando zunindo ao meu lado, motocross, quadriciclos… e alguns poucos peregrinos.


Estive perto de desistir por dois ou três momentos.


Placa no meio do caminho

Por outro lado, teve superação, contemplação, bem-estar, gratidão, elevação espiritual, realização por vencer o desafio, introspecção, muitas viagens ao meu “eu interior” e tomada de decisões de vida… especialmente ao longo da segunda metade do caminho.


O passar do tempo mudou tudo: a mochila foi ficando mais leve ao longo dos dias, o corpo foi se lubrificando, as dores musculares diminuindo, detalhes como céu azul se tornaram mais valiosos, a brisa sob o sol intenso tornou-se especial, cumprir o planejamento deixou de ser importante, a pressa cedeu ao fluxo do que surgia na minha frente e se curvou às reações da minha mente e corpo.


Iniciei a jornada com o caminho todo planejado (trechos, hospedagens etc.), porém, ao longo do tempo fui mudando várias coisas. Reconheci que o meu planejamento era bacana, mas não era o melhor perante o que eu vivia, conforme o caminho evoluía, dia após dia… portanto fiz várias mudanças ao longo do percurso.


Mudanças sempre causam perturbação, porque uma mudança quase sempre se desdobra em outras, provocando uma espécie de efeito cascata. Por isso me senti muito corajoso e poderoso por ter tido a iniciativa de realizá-las e não ter me abatido pela insegurança e pela paralisia do desconforto.


As “aventuras” não terminaram propriamente no ponto final do caminho. Na viagem de volta, de Aparecida para Goiânia, o ônibus quebrou (teve troca de ônibus), o banheiro transbordou (acho que você entende o que eu quis dizer), teve acidente na estrada e ficamos horas parados por conta disso… enfim, a viagem durou mais de 25 horas. Este foi um dos Top 3 perrengues da experiência.


A minha sombra me acompanhou ao longo de todo caminho


CAMINHO DA FÉ


O meu namoro com o Caminho da Fé já vem de quase 4 anos. Por duas vezes eu adiei o projeto por conta da pandemia (em 2020 e 2021). Aí fui fazer outros caminhos e o Caminho da Fé ficou no sonho.


O Caminho da Fé é um percurso de longa distância inspirado no Caminho de Santiago de Compostela. É uma experiência de caminhar todos os dias, apesar que o movimento de ciclistas vem aumentando muito nos últimos anos. É possível que, em alguns períodos do ano, já tenha mais ciclistas do que caminhantes/peregrinos.


O Caminho da Fé não é propriamente um caminho único e contínuo traçado no mapa. Existem vários ramais, saindo e passando por cidades e povoados diferentes no interior dos estados de São Paulo e Minas Gerais, o que cria uma espécie de teia de caminhos. Porém, todos os trajetos levam para o mesmo lugar: ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida.


O Caminho da Fé com todos os seus ramais e possibilidades

O trajeto raiz, ou o caminho original, começa em Águas da Prata (SP) e termina em Aparecida (SP), perfazendo 317 km. Este trajeto, que foi o que eu fiz, tem o seguinte circuito: Águas da Prata/SP, Andradas/MG, Serra dos Limas/MG, Crisólia/MG, Ouro Fino/MG, Inconfidentes/MG, Borda da Mata/MG, Tocos do Moji/MG, Estiva/MG, Consolação/MG, Paraisópolis/MG, Canta Galo/MG, Luminosa/MG, Campista/SP, Campos do Jordão/SP, Gomeral/SP, Potim/SP e Aparecida/SP.


Existem toneladas de publicações na web sobre o Caminho da Fé, inclusive o site da AACF – Associação dos Amigos do Caminho da Fé, portanto não darei mais detalhes do caminho porque tem muita coisa boa e completa disponível na web. O site oficial do caminho é https://caminhodafe.com.br/


O percurso de Consolação à Luminosa é um dos trechos mais lindos do caminho

INDIANA JONES


Quando converso com alguém contando que faço caminhadas de centenas de quilômetros (e já fiz várias), normalmente recebo respostas de exclamação e surpresa. As reações vêm carregadas de imagens associadas a grandes feitos como escalar uma enorme montanha ou correr uma maratona. Alguns me imaginam como Indiana Jones. Confesso que acho divertido.


Fazer um caminho como o Caminho da Fé não é uma aventura. É possível até torná-lo uma aventura, mas não é esse o propósito. Se alguém deseja viver uma aventura, então o melhor é buscar outra experiência.

O caminho é um trajeto determinado, percorrendo áreas públicas, cidades e povoados, é sinalizado e seguro. A maior parte do traçado passa por vias de terra batida (nem sempre de boa qualidade), basicamente estradas vicinais em regiões rurais, mas também tem quilômetros por estradas de rodagem (de asfalto), o que não é legal porque caminhar no acostamento, tendo ao lado veículos em alta velocidade, me parece inseguro e desagradável.


Em resumo, fazer o Caminho da Fé não é coisa de aventureiro, mas sim de caminhante ou peregrino. Não é coisa de quem deseja liberar intensa adrenalina ou lidar com o desconhecido. O espírito não é de competição, mas de colaboração. Dizendo de outra forma: não é viver uma experiência de maratona ou de trekking na selva, mas uma experiência de peregrinação, onde a velocidade e o tempo são pouco importantes, e riscos de acidente são praticamente nulos.


Na subida da Serra da Luminosa, um dos trechos mais desafiadores do caminho, porém lindíssimo

MAIS DIFÍCIL DO QUE O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA


Todos os(as) amigos(as) que já fizeram o Caminho de Santiago de Compostela e o Caminho da Fé falaram a mesma coisa para mim: o Caminho da Fé é bem mais difícil. Prepare-se!


Eu subestimei o Caminho da Fé! Pensei que seria mais fácil, mesmo estando alertado e consciente.

Iniciei o caminho acreditando que seria menos doloroso e sofrido do que realmente foi. O fato de ter passado os primeiros dias com fortes dores de estômago, infecção intestinal e desidratado, potencializou a sensação de sofrimento e o desprazer com a experiência (cabe dizer que eu iniciei a viagem já com estas dores, ou seja, nada foi causada pelo ou no caminho).


O grande desafio do Caminho da Fé não é a distância, mas a altimetria. Todos os dias são desafiadores por conta das serras, morros e ladeiras ao longo do trajeto (com exceção do último dia, que é uma caminhada praticamente plana). É um sobe e desce constante. Com chuva e frio o quadro piora.


Altimetria do meu caminho

Com ajuda do aplicativo Wikiloc e do meu smart watch, eu registrei algumas estatísticas valiosas da minha jornada. Uma das mais impactantes diz respeito aos dados de desnível positivo e desnível negativo.


Desnível positivo é a somatória de todos os ganhos de elevação. Cada ganho de elevação é a diferença de altitude entre o ponto de partida e ponto mais alto de uma subida. Os valores das descidas são descartados no cálculo do desnível positivo. Já o desnível negativo é o contrário, ou seja, é a somatória de todos os declives ao longo do trajeto, descartando as subidas.


No trajeto que realizei no Caminho da Fé, o desnível positivo acumulado em 12 dias ficou em 8.757 metros e o desnível negativo acumulado ficou em 7.954 metros. A título de comparação, o Monte Everest tem altitude de 8.849 metros e o Corcovado no Rio de Janeiro tem altitude de 710 metros.


Brincando com os números, significa dizer que, ao fazer o Caminho em 12 dias, eu subi e desci o equivalente ao Monte Everest, a partir do nível do mar. Ou, que eu subi e desci o Corcovado diariamente ao longo do Caminho da Fé.

Doido, né? Acho que isso explica um pouco o quão desafiador é esse caminho.


Por várias vezes, quando via a Serra da Mantiqueira à frente, ainda longe, parecendo um paredão insuperável, me lembrei de uma das lições que vivi na expedição ao Monte Roraima: o impossível torna-se possível quando dividimos o impossível em vários pedaços possíveis.


Chegando em Campos de Jordão, em um dos pontos mais altos do caminho, tendo a Serra da Mantiqueira como cenário

Uma das incríveis e ensaboadas subidas da Serra da Luminosa

POR QUE CAMINHAR?


Em conversas com amigos(as) sobre caminhadas de longa distância, quase sempre surge uma pergunta recorrente: por que você faz trilhas e caminhos de longo curso? Qual é o prazer que você sente nisso?


Já pensei nisso muitas vezes. E, basicamente, existem 3 possíveis razões.


A primeira razão é realizar um programa turístico e/ou cultural. Pessoas fazem caminhos longos para conhecer novos lugares e viver novas experiências, inclusive com objetivo adicional de conhecer pessoas e fazer novas amizades. Já ouvi este tipo de justificativa de caminhantes, apesar de me parecer muito limitante fazer turismo ou ter um programa cultural andando dezenas de quilômetros todos os dias, com uma mochila nas costas e super restrito em termos de roupas, recursos e acessórios.


Em Ouro Fino/MG, ao lado do famoso monumento em homenagem ao Menino da Porteira

A segunda razão é viver uma experiência de superação. Esta sim é uma boa razão pois caminhadas de longo curso não são triviais e exigem muito do praticante. O desafio mais óbvio é o físico, que não inclui apenas esforço e resistência ao cansaço e às dores, mas também saber lidar com as bolhas nos pés, estiramentos e distensões, tombos e outras situações nem sempre previsíveis. Junto com o desafio físico, vem o desafio psicológico. Nem todo mundo convive bem com uma experiência de caminhada por dias e dias, muitas vezes em locais isolados, sujeito a intempéries, desconforto constante, insegurança (animais e outros), ausência de sinal de celular e o silêncio “ensurdecedor” da natureza. Vários já me contaram que no terceiro ou quarto dia de caminhada, já sentindo o desconforto latente, se perguntam: o que estou fazendo aqui? Por que estou me submetendo a isso?


Lama e terra me acompanharam durante todo o caminho

A terceira razão é viver uma experiência de autodesenvolvimento. Aqui podemos expandir o conceito para uma experiência de descoberta, de viagem interna, de autoconhecimento, de meditação, até de cunho filosófico e/ou espiritual. Neste contexto, o aspecto físico fica em segundo plano, porque ele se torna pouco relevante diante do cunho mental e espiritual, que é algo mais ligado à cabeça/mente do que ao corpo. A pessoa que vive uma caminhada de muitos dias com este espírito elevado, muitas vezes tem uma experiência transcendental e transformadora. As muitas horas de caminhada vão muito além dos passos físicos, a pessoa faz uma viagem para dentro, provocando um repensar de vida e uma expansão da consciência. Quando isso acontece, problemas crônicos perdem a importância e decisões de vida são tomadas.


No Caminho da Fé surge uma quarta razão, que é o aspecto religioso. Muitas pessoas fazem o Caminho da Fé como devotos religiosos ou peregrinos para cumprir uma promessa, fazer uma devoção, caminhar com amigos(as) para participar de uma jornada religiosa etc. A realização de peregrinações são comuns em muitas religiões.



Fitas amarradas por peregrinos ao longo do caminho

MEU PROPÓSITO NO CAMINHO DA FÉ


Acredito ser relevante refletir sobre o propósito de uma caminhada de longo curso porque isso está diretamente ligado à expectativa e ao sentido de realização da empreitada. Caminhar como um desafio físico é bem diferente do caminhar como uma jornada pessoal de autoconhecimento, e isso se reflete no espírito do caminhante ao longo da experiência.


Esta reflexão não necessariamente significa ter respostas claras e concretas para perguntas como: por que estou fazendo um negócio desse? O que eu pretendo alcançar no término da empreitada? O que esta experiência vai trazer de aprendizado para mim? Muitas vezes, as respostas para tais perguntas só aparecem no final da caminhada.


Em todas as caminhadas que já fiz, incluindo o Caminho da Fé, a minha principal razão foi a terceira da lista que citei anteriormente, ou seja: autodesenvolvimento.


Sempre “viajo” para dentro de mim nas minhas caminhadas. Em alguns momentos de alguns caminhos, eu cheguei a meditar. Já me peguei andando quilômetros e depois não ter lembranças visuais por onde passei, porque a minha mente estava completamente fora daqueles locais. Falarei sobre esse processo mais adiante.


Nos “meus caminhos” eu ressignifiquei o meu passado, reposicionei valores e prioridades, acessei o meu “Eu interior”, me conheci mais profundamente, decidi sobre o meu persona profissional, delineei o futuro que almejo para mim e tomei decisões de vida.

A cada caminho que fiz, eu voltei mais leve, mais consciente, me conhecendo mais internamente e mais saudável mentalmente e espiritualmente.


No espetacular mirante da Pousada do Mirante, na Serra da Luminosa/MG

O SIMBOLISMO DA MOCHILA


Carregar a mochila por todo o caminho tem um simbolismo muito grande.


Normalmente, uma mochila de caminhada com tudo o que é preciso tem o peso de 5 a 6 kg. Ao acrescentar 2 litros de água, que sempre levo comigo, o peso da mochila avança para 7 a 8 kg, o que representa 10% do peso do meu corpo.


Nos primeiros dias de uma caminhada, a mochila “pesa” uma tonelada. Além de pesada, ela machuca os ombros, aperta o abdômen por conta dos tirantes, altera o centro de gravidade do corpo, tudo ao mesmo tempo. É desconfortável.


Nos dias subsequentes, parece que a mochila vai se encaixando no corpo, começo a regular mais habilmente e mais rapidamente as tiras, alças e barrigueira. A mochila passa a se acomodar melhor no tronco, reduzindo o peso nos ombros. O corpo também passa a entender que ele está mais pesado e tolera melhor o novo peso. Enfim, tudo parece se ajustar. Depois de certo tempo, a mochila passa a fazer parte do corpo e não mais me incomoda. É apenas mais um acessório, como chapéu, camisa, calça, meias e tênis.


Quando chego ao final de uma caminhada, vejo que tudo que precisei para viver naqueles dias estava dentro da mochila. A única exceção foi a alimentação. Pensar nisso provoca um repensar do que realmente preciso carregar para viver a minha vida. Preciso mesmo ter tudo que acumulei em minha vida?


Quanto mais coisas eu tenho, mais difícil fica o meu caminhar porque tenho que carregar todas estas coisas comigo. Quanto mais coisas eu acumulo, menor a chance de eu ir mais longe. Quanto mais apego tenho pelo meu passado e pelo que conquistei, menor a chance de surgirem novas oportunidades e eu me jogar nelas.


Quanto mais me penduro em minha própria história, menor a chance eu tenho de construir uma nova história.


O segredo para ir mais longe é caminhar com a mochila leve. Quanto mais leve a mochila, mais fácil e mais rápida é a caminhada. Quanto mais vazia a mochila, mais espaço tenho para preenchê-la com coisas novas, que verdadeiramente vão me fazer mais feliz e me levar para o futuro desejado.

Entendeu o simbolismo da mochila?


Meus grandes companheiros no Caminho da Fé: a mochila e os bastões de caminhada

CAMINHAR SOZINHO OU EM GRUPO


A minha experiência mostra que existem 3 formas de fazer um caminho de longo curso.


A forma mais comum é fazer uma caminhada em grupo. E aqui incluo grupos de qualquer tamanho e composição. A grande vantagem de fazer em grupo é a colaboração, a ajuda mútua, o entusiasmo dos participantes, a ajuda necessária em caso de dificuldades, o espírito de time e a criação de novas amizades e/ou fortalecimento de amizades antigas.


Por outro lado, fazer caminhadas em grupo significa que a sua individualidade tem que se adaptar ao “jeito” dos colegas. Isso implica em atender a demandas do grupo, alinhamento de horários, dificuldade de mudar planos, alimentação etc. E, além disso, tem que encarar os papos do grupo, que podem envolver política e outros assuntos desagradáveis, quase sempre impactando na paz e no desejado distanciamento dos problemas urbanos e da sociedade.


Uma segunda forma de fazer caminhada é sozinho, onde a liberdade e a individualidade são totais. É você com você mesmo. Horários, paradas, refeições, mudanças, tudo isso está no controle e decisão do caminhante.


Caminhadas solitárias permitem um caminhar silencioso, mais contemplativo, imerso e integrado com a natureza. É no silêncio que ouvimos detalhes, como o vento e as árvores… o nosso coração e, principalmente, a nossa mente. A paz está fora e dentro do caminhante. Esta é uma grande vantagem perante a caminhada em grupo, que cria distrações que inibem uma integração maior com a natureza.


O principal ponto negativo da caminhada solitária é a falta de ajuda em caso de necessidade ou emergência. Ou, muitas vezes, ter alguém para trocar e conversar diante de um imprevisto, em um momento de dúvidas ou mudança de planos.


Café e bolo na Pousada Novo Amanhecer

A terceira forma de fazer uma caminhada é em dupla ou trio. Nestes casos, a caminhada é realizada com amigos(as) próximos(as). Aqui temos uma boa combinação de benefícios, um pouco do caminhar sozinho e um pouco do caminhar em grupo. Esta modalidade é maravilhosa como experiência, especialmente quando a companhia é formada por amigos(as) que você admira, tem profunda conexão e entrosamento.


Eu tenho uma clara preferência, que é traduzida numa frase que já repeti muitas e muitas vezes para pessoas: “Sou antissocial, gosto de andar sozinho”.


A verdade é que não sou antissocial, mas falo isso para reforçar o meu ponto: eu gosto de andar sozinho. Gosto de ter a minha individualidade. Gosto do silêncio.


Andar sozinho me permite meditar, pensar e absorver o caminho de modo multidimensional, consigo sentir o caminho em todos os detalhes. Caminhar sozinho, para mim, é autodesenvolvimento e o contexto perfeito para tomar decisões de vida, porque meu coração e mente estão plenamente abertos para isso. No tópico a seguir esse processo ficará mais claro.



Uma parada de descanso na Serra da Mantiqueira, na fronteira de MG com SP

O PROCESSO DA MINHA MENTE


Quase sempre as minhas caminhadas seguem um processo, que não é planejado e nem intencional, é um processo que se estabelece naturalmente.


Cabe dizer que todos os caminhos que fiz, sem exceção, eu não uso o celular para ouvir músicas, podcasts ou qualquer outra coisa. O meu celular vai comigo somente com o aplicativo wikiloc funcionando, que é o meu suporte para não sair do caminho. As únicas ligações telefônicas que faço são para Valéria e para minha mãe, para dizer que está tudo bem. Eu não procuro notícias e nem vejo emails. Faço isso para que eu possa “viver o caminho” integralmente, desconectado do mundo que deixei para entrar no “mundo do caminho”.


Nos primeiros dias, a minha mente fica concentrada em lidar com o início da caminhada. Isso significa que a cabeça está prestando atenção ao corpo, às dificuldades do terreno, o desconforto constante, com atenção ao planejamento, olhando o número de kms percorridos e a percorrer, a preocupação com pequenas particularidades como lavar a roupa logo quando eu chegar na hospedagem e um monte de pequenos detalhes materiais e pragmáticos. Nesses primeiros dias, a minha mente está extremamente racional e prática.


A partir do terceiro ou quarto dia, o corpo começa verdadeiramente a se acostumar com a rotina da caminhada e ao desconforto, as dores parecem ser mais toleráveis, e a mente relaxa em relação às atenções relacionadas ao planejamento, à performance e outros pormenores.


Nessa fase, a mente passa a curtir mais o caminho, prestar mais atenção à natureza, ao céu, ao ambiente… ou seja, o caminho torna-se mais prazeroso. Simultaneamente, os sentidos ficam mais aguçados – presto mais atenção aos sons, aos cheiros -, os momentos de descanso se tornam muito mais relaxantes, sinto mais o vento e o calor do sol. A experiência torna-se mais sinestésica.


Nesses dias a minha mente entra em um estado de contemplação.


Lá pelo sexto ou sétimo dia, a experiência da caminhada se amplia, porque a minha mente já passou pela fase de preocupação com o caminho e da atenção e conscientização do ambiente ao meu redor.


Nessa fase, eu fico mais relaxado, me sinto mais seguro e “dono” do caminho, nada parece mais me preocupar. A minha cabeça começa a desejar que a sensação de paz, liberdade e “conforto”, que estou vivendo no caminho, não acabe nunca mais. Me sinto integrado e fazendo parte da natureza do caminho. Eu começo a olhar para dentro, olhar para o meu interior, começo a fazer um paralelo da minha experiência do caminho com a vida que eu desejo.


Esta é uma fase em que inicio uma profunda viagem interna, de introspecção, com pequenas meditações espontâneas, conectando passado, presente e futuro. Aqui começo o “pensar na vida”, ganho clareza de pensamento, tomo decisões de vida, vejo que problemas que considero crônicos são pouco importantes e podem ser facilmente resolvidos.


Nesta fase minha mente se expande, sou tomado por uma paz, bem-estar e felicidade, que estarão comigo até o fim do caminho. É uma fase de transcendência.

Este é um processo que já se aconteceu várias vezes comigo. No entanto, ele acontece muito mais intensamente quando faço a caminhada sozinho e, pelo menos, caminhos com mais de uma semana de duração.



São dezenas de capelinhas ao longo do Caminho da Fé


O GRANDE MOMENTO DA CAMINHADA NO CAMINHO DA FÉ


O momento mais sublime do meu Caminho da Fé ocorreu no último dia. Ocorreu em um determinado trecho, quando atravessava uma estrada de terra em um percurso de mais de 10 km, no meio de fazendas, entre Pedrinhas e Potim. Este foi o único dia em que o caminho era praticamente plano.


Eu caminhei sozinho por horas, quando resolvi conversar com Deus em voz alta. Essa conversa durou mais de 50 minutos, quando agradeci por tudo. Fiz um longa e profunda reflexão sobre a minha vida, agradeci a benção de estar vivendo uma vida maravilhosa, a graça por ter vivido com a minha amada Regina, uma mulher formidável que me moldou como homem, marido e pai, e agora com a minha amada Valéria, uma mulher e ser humano que entrou na minha vida para me transformar radicalmente e fazer nascer de dentro de mim o verdadeiro Mauro.


A Valéria é um anjo do céu. Com ela eu descubro um novo amor, mais profundo, mais amplo e puramente autêntico. Com ela eu faço uma viagem dentro de mim, ressignifico minhas prioridades de vida, repenso o que é verdadeiramente importante na minha existência, vivo uma vida mais elevada e mais humana. Com ela eu descubro novos mundos, descubro novos Mauros, vislumbro novos potenciais, novas habilidades, outros interesses, porque ela me desperta novas possibilidades. Valéria me faz mais espiritual. Ela é um ser humano iluminado, que me ilumina como um sol, me aquecendo, e como um farol, mostrando a direção e iluminando o caminho. Vivo uma vida de liberdade, onde a cada dia me conheço melhor. Com ela descubro que a minha felicidade é a minha liberdade de ser quem realmente sou.

As minhas tatuagens

Agradeci em voz alta por tantas bençãos que eu tenho recebido nos últimos anos. Agradeci também a Regina por tudo que vivemos, aprendemos e construímos juntos. Com ela eu me desenvolvi no ser humano que sou hoje. Agradeci a Regina por ela ter construído para mim todo o contexto para minha ressignificação e transformação de vida. Ela, de alguma forma, me preparou para esta nova fase e criou o contexto de vida que me permitiu estar onde estou agora.


E agradeci a Valéria, por estar comigo, por ter me aceitado, por se doar para mim, por me dar a mão e me levar para uma nova fase de vida, me ensinando, me desafiando, me aceitando como eu sou, por ter tido a paciência comigo nos primeiros momentos de nosso relacionamento quando eu passava por um momento muito difícil. Como disse antes, Valéria é um anjo na minha vida, um presente de Deus.


Nessa caminhada, eu me casei de novo com a Valéria. Assumi o compromisso, mais uma vez, perante Deus, de viver com a Valéria nesta existência.


Tudo isso eu falei, caminhando por aproximadamente 5 km, durante quase 1 hora. Eu conversei com Deus assumindo o compromisso de viver uma vida mais espiritualizada, menos materialista, mais conectada com as pessoas que amo e admiro, de dar mais do que receber, ser mais generoso, ter mais paciência, me doar mais e ser menos egoísta.

Essa conversa em voz alta, no meio da natureza, no último dia do caminho, me fez muito bem.


Esse é um daqueles momentos sublimes, que vivemos na vida e que nunca mais se repetirá porque foi único e pessoal, circunstancial, que guardarei para sempre em minha lembrança. Foi uma conversa com Deus de gratidão, de reconhecimento, de compromisso e de decisões de vida.

Capelinha na região de Pedrinhas, Gomeral/SP


HOSPEDAGEM


O Caminho da Fé tem uma lista oficial de hospedagens e estabelecimentos comerciais que fazem parte da Associação dos Amigos do Caminho da Fé. Utilizar o serviço desta turma é a certeza do caminhante ser atendido por pessoas que entendem o espírito do caminho, com espírito de compartilhar e servir.


Ao longo do meu caminho, eu fiquei em configurações diversas de hospedagem: pousadas com quartos e banheiros coletivos, pousadas montadas em casarões bem antigos, algumas paradas muito simples, com questionável conforto e poucos recursos, mas também me hospedei em locais mais aconchegantes e mais bem equipados, alguns com suítes e chalés bacanas. Conheci muitas pessoas bacanas.


Conheci muitas pessoas bacanas com incríveis histórias de vida

Eu não quero aqui fazer uma resenha das hospedagens onde fiquei, mas quero destacar duas experiências que me pareceram excepcionais e que recomendo.


Em Campos de Jordão/SP, eu me hospedei no “Mosteiro São João das Monjas Beneditinas“. O lugar é lindo e recebe caminhantes/peregrinos. Fui recebido pela Irmã Conceição Aparecida, que é supersimpática. Ela é uma irmã da era digital, falante, objetiva e empática, de fala firme, sorriso fácil e cativante. Ela me recebeu com um abraço, mesmo eu avisando previamente que estava suado e fedorento. É assim que ela recebe todos os caminhantes. Fiquei hospedado na Casa Santa Scholástica, um casarão ao lado do Mosteiro, que é um espaço de acolhimento a padres, religiosos, estudantes e peregrinos. O quarto era confortável e aconchegante. Existem regras e horários a serem seguidos. Às 18h assisti à oração e ao lindo canto gregoriano das Monjas, em uma cerimônia fascinante que durou quase 60 minutos. À noite, no refeitório, foi servido sopa, pão caseiro, frios e café. A estadia no Mosteiro foi a experiência mais marcante e inusitada de todo o caminho.

No Mosteiro São João das Monjas Beneditinas, em Campos de Jordão/SP

Com a Irmã Conceição Aparecida, no Mosteiro São João em Campos de Jordão/SP

Vale registrar também a minha hospedagem na “Pousada e Restaurante Na Mirian” em Gomeral/SP. A pousada está localizada em um vale com paisagem maravilhosa, no meio da natureza exuberante e silenciosa. Lá me hospedei em um chalé individual, com conforto, com rede na varanda, o que me foi profundamente restaurador. Os donos da pousada, Mirian e Naldo (Reginaldo), são excepcionais anfitriões, transmitindo alegria por servir aos peregrinos com carinho e atenção plenas. No “Restaurante Na Mirian”, eu comi a melhor refeição de todo o caminho. Foi uma truta grelhada ao morro de alcaparras preparada pela Chef Mirian, que estava simplesmente deliciosa!! Na “Pousada Na Mirian” eu me senti abraçado e cuidado pelos donos, e experimentei a comida mais deliciosa de todo o Caminho da Fé.


No Chalé Beija-Flor na charmosa Pousada Na Mirian, em Gomeral/SP

Com Mirian e Naldo, donos e anfitriões da Pousada Na Mirian, em Gomeral/SP

FOTOS E VÍDEOS


Eu tenho um celular super top para fotografias e vídeos. Este foi um investimento que fiz há dois anos porque sou realmente apaixonado por imagens. Curto muito.


No Caminho da Fé eu fiz mais de 2.000 takes da minha jornada, entre fotos e vídeos, registrando paisagens espetaculares e momentos super pessoais vividos, vídeos gravados onde vocalizo o que estou sentindo no momento, inclusive os momentos que quase desisti do caminho.


Infelizmente, a minha memória é muito volátil. Eu já até escrevi um artigo sobre isso. Esta minha característica de esquecer as coisas com facilidade foi o que me fez usar cadernos e apelar para quaisquer meios que me permita registrar momentos para futuras consultas ou lembranças. Por isso a minha fixação por registros de imagens. E tem mais uma coisa: eu gosto de rever as imagens de uma determinada experiência, viagem ou momento vivido. Conheço muitas pessoas que fazem fotos e depois não tem a vontade de rever as imagens. Eu sou diferente: eu gosto muito!


Existem dezenas (ou centenas) de placas e mensagens ao longo do Caminho

DIÁRIO


Gosto de diários. Gosto de escrever. Gosto de cadernos. Me faz muito bem “fazer um caminho” com um caderno para registrar as situações, os pensamentos e as reflexões.


Eu havia separado um caderninho, com capa flexível, bem leve e até vagabundo, dentro do espírito do “quanto mais leve, melhor”, mas meu Amor, na véspera da caminhada, me deu um presentão, que apresento na foto a seguir.


O caderno que meu Amor me deu e foi meu confidente ao longo da jornada

A Valéria mandou fazer um caderno personalizado do Caminho da Fé, com meu nome gravado, com capa dura e interior exclusivamente criados para mim.


Fiquei muito muito muito muito feliz com o presente!


Fiquei tão feliz que decidi levar o caderno comigo no caminho, mesmo ele sendo muito pesado (pesa quase meio quilo), de capa dura e grosso. Foi uma sábia decisão. Fiz registros diários no caderno, anotando o meu estado espírito no dia a dia, colocando no papel os bons e nem tão bons momentos, com anotações bem pessoais, tudo com a emoção do caminho.


No final, mais de 3/4 do caderno recebeu meus rabiscos, capturando a essência do que vivi na minha experiência, inclusive a “dolorosa” viagem de ônibus na volta para Goiânia.


No ponto mais alto do caminho, chegando em Campos de Jordão

Na Catedral N. S. Aparecida, ponto final do Caminho

O QUE FICA


Quando digitamos “Caminho da Fé” no Youtube, surgem toneladas de registros de caminhantes e ciclistas sobre o Caminho. Alguns desses vídeos são espetaculares em termos de imagens e de conteúdo. É fácil encontrar vídeos com dicas preciosas, outros se concentram nos perrengues e dificuldades, enquanto outros se dedicam a falar sobre as particularidades do trajeto, como hospedagens, comida e custos. Em sua maioria, os vídeos são muito informativos para quem está se planejando para fazer o Caminho e vale a maratona.


No entanto, a experiência de um Caminho como esse é único. Nenhum vídeo vai conseguir transmitir o que caminhante sentirá ao longo de sua experiência. Cada um viverá o Caminho do seu jeito, com seus desafios, superações e aprendizados pessoais.


A superação física, que quase sempre surge como o maior desafio e conquista, muitas vezes se apequena diante de outras vitórias.


É raro aquele que faz o Caminho e não volta diferente. É algo que ensina, desafia e transforma. Talvez por isso eu nunca mais parei desde o primeiro caminho que fiz.


O Passaporte do Peregrino, repleto de carimbos obtidos ao longo do caminho

Certa vez, em um podcast, ouvi uma frase que, supostamente, é dita pelos peregrinos do Caminho de Santiago de Compostela. “A gente sai do caminho, mas o caminho não sai da gente”. Eu só fui realmente entender esta frase quando me apaixonei por fazer os caminhos de longo curso.


Se você nunca fez um caminho deste tipo, a única coisa que posso falar para você é: “Viva esta experiência! Fazer um caminho vai trazer ensinamentos inimagináveis e poderá ser transformador para você.


Na rodoviária de Goiânia, onde o meu Amor Valéria veio me receber "de volta"

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