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10 Dias em um Retiro de Meditação Vipassana


“Estou no quinto dia. Quanto tempo mais eu suporto? O pior dia foi ontem. As dores e a angústia são muito fortes. É desesperador, mas a Valéria continua lá, sorrindo para mim. Eu tenho que continuar. Estou no alto do Roraima, agora tenho que ir até o final”.

Esse foi o pensamento que me passou no final da tarde do quinto dia. Eu vivia o pico de uma experiência intensa e difícil de descrever.


Estava no Dhamma Santi, um Centro de Meditação Vipassana, participando de um retiro e curso de meditação de 10 dias, em clausura e confinamento, rígido silêncio, totalmente desconectado, sem celular e qualquer aparelho, sem livros, caderno e caneta, com alimentação controlada e vegetariana, em uma rotina de mais de dez horas de meditação silenciosa por dia, sendo muito delas imóvel por uma hora, sentado com as pernas cruzadas, sem movimentar pés e mãos, nem dedos.


Esse longo artigo assume o risco de tentar descrever tudo que vivi, senti e aprendi. O rascunho do texto foi feito logo após o término do retiro, nos dois seguintes, quando tudo ainda estava fresco, impactante e sensível dentro de mim. Meu objetivo foi capturar emoções e detalhes que o tempo trataria de abrandar. Aí, nas semanas seguintes, fui enriquecendo o texto e criando o storytelling.


Optei por escrever o artigo como um diário, mostrando a gangorra de sensações e sentimentos, em uma espécie de montanha russa mental, sendo o mais fiel possível ao que vivenciei. Nada nesse texto foi inventado e nada é ficção. O objetivo do formato do texto é levar o leitor para dentro do retiro, para dentro da rotina massacrante e entediante, vivendo o que vivi e senti.


A maioria das fotos que ilustram o artigo foram feitas no Dia 11 da experiência, ou seja, no dia da saída do retiro. Pouco antes de partirmos, foi dada autorização para fazermos fotos do Centro. O dia estava radiante, de sol pleno e agradável, o que deu ao Centro um ar “transfigurado” de resort e spa, muito diferente do que senti durante os dias que estive lá. Inclusive, vale dizer, vivi vários dias de muito frio, temperatura perto de 5C e até menos, com serração intensa e chuva, criando um cenário pouco acolhedor.


Centro Dhamma Santi

Meditação Vipassana


Quase sempre associamos meditação à uma atividade prazerosa, de paz infinita e relaxante. Isso pode fazer sentido para alguns tipos de meditação, no entanto a Meditação Vipassana subverte esse conceito, pois significa trabalho duro, disciplina e determinação. A experiência que vivi está muito longe do imaginário equivocado de meditação que habita a mente das pessoas. Isso ficará evidente na minha narrativa.


Vipassana foi ensinada por Buda, há mais de 2.500 anos. A prática sobreviveu durante séculos, aos trancos e barrancos, mas foi o Senhor Satya Narayan Goenka, um homem de negócios de sucesso nascido na Birmânia, que em meados do século XX conseguiu disseminar a Meditação Vipassana no ocidente de forma acessível e sistemática.


Senhor Goenka desenvolveu um método próprio de instrução da Vipassana tornando-a acessível para todos, combinando os ensinamentos tradicionais com um enfoque mais prático. Ele ensinou Vipassana por quase 45 anos, na Índia e em outros países. A experiência de 10 dias que viverei é exatamente o exercício do método desenvolvido pelo Senhor Goenka.


Senhor S. N. Goenka

Vipassana, em pali, a língua em que muitos ensinamentos budistas foram registrados, significa “visão clara” ou “insight”.  A prática desta meditação permite o desenvolvimento de uma percepção mais profunda da realidade, ajudando o praticante a “ver as coisas como realmente são”. A técnica enfatiza a observação da própria experiência de viver, da compreensão do sofrimento e do “lidar com o ego”. Falando de outra forma, Vipassana é um processo de desenvolvimento de atenção plena e auto-observação, com objetivo de fortalecer, controlar e purificar a mente.  


Foi com esses conceitos e expectativa que decidi viver a experiência do retiro. Valéria, minha esposa, voluntariosa e companheira, embarcou junto comigo.


Eu cheguei no retiro sem ter certeza dos benefícios reais que iria adquirir, mas havia uma esperança latente que me dava esperança de que as coisas fariam sentido ao longo dos dias.


Para conhecer melhor a história do Vipassana, recomendo o link https://www.dhamma.org/pt/about/vipassana


Recomendo muuuuito o livro A ARTE DE VIVER do Senhor Goenka, que está gratuitamente disponível na rede através do link https://santi.dhamma.org/wp-content/uploads/sites/449/2022/01/arte_viver.pdf



Dia 0 – A Chegada

21/08/2024


Chegamos, eu e Valéria, no Dhamma Santi às 14h30.


Dhamma Santi está localizado no interior do Estado do Rio de Janeiro, no chamado Vale do Café, perto de Mendes e de Vassouras. 


Porteira de Entrada do Centro Dhamma Santi

Nos apresentamos ao pessoal da recepção do Centro, preenchemos um formulário e descarregamos nossos pertences do carro. Tive que deixar celular, smartwatch, todos os eletrônicos, chave do carro, canetas, cadernos, papéis e livros sob a guarda do Centro.


Logo me separo da Valéria. No Centro, homens e mulheres ficam segregados o tempo todo.


Recebo a informação do meu aposento: Dormitório masculino 2, Suíte 2.


Saio da recepção, caminho por aproximadamente 200 metros atravessando uma mata alta e fechada, chego ao dormitório 2 e abro a porta da minha suíte. Ao abri-la, vejo roupas e objetos diversos jogados na cama. Alguém está ocupando a suíte. Volto para recepção e informo o ocorrido. Logo o problema é resolvido e a suíte é desocupada. Agora, oficialmente, passo a ocupar a suíte 2.


O Centro está localizado em uma espécie de vale, no meio de uma floresta nativa, preservada e bem isolada da zona urbana. A sensação é de estar no meio da natureza e distante de tudo. Não se escuta nada.


Os dormitórios masculinos, os dormitórios femininos, a grande sala de meditação, o refeitório, as celas de meditação, todas as instalações são isoladas umas das outras e se conectam através de trilhas, algumas pequenas, outras mais longas, exigindo uma caminhada pela mata para se chegar ao local desejado. Os dormitórios masculinos são os mais distantes, com um sobe e desce no meio da floresta para ir a alguns pontos do Centro, especialmente o refeitório. Ou seja, o Centro não é uma construção única. Cabe dizer que esse centro foi construído intencionalmente para ser dessa maneira, criando uma ambiência de mais isolamento e confinamento.


O Centro possui voluntários que tocam a operação do curso e mantém o local. O professor (que ainda vamos conhecer), os gerentes das áreas masculina e feminina, cozinheiros e cozinheiras, servidores, todos são voluntários e não são remunerados para estarem lá.


Agora são 17 horas do Dia 0.


Chego no refeitório e me acomodo no lugar marcado com meu nome. As mesas são compridas e organizadas como uma sala de aula. Vejo todos de costas.  No “meu local” tem uma etiqueta com meu nome, uma bandeja de inox com espaços côncavos para colocar comida, caneca e talheres de inox. Ao lado, um paninho.


No refeitório nos é oferecido sopa, que está servida em um espaço próprio tipo self-service. Podemos nos servir à vontade.


Homens de um lado do refeitório. Mulheres do outro. Eu consigo ver a Valéria bem distante.


Uma dupla de voluntários, com microfone nas mãos, lê uma interminável lista de instruções, regras e agenda, que vão ditar os nossos próximos 10 dias no Centro. Eles chamam duas pessoas e as apresentam como a gerente da área feminina e o gerente da área masculina. São as únicas pessoas, além do professor, que os alunos poderão acessar em caso de necessidade.


O gerente da área masculina chama-se Aleksander, carinhosamente chamado de Alek. Parece uma pessoa com idade por volta de 50 anos, cabelos grisalhos e aparência de estrangeiro.


Verifico que eles não usam a palavra “retiro” e sim a palavra “curso”. Lá somos todos alunos. Eu sou um aluno e estou lá para aprender e treinar a técnica de Meditação Vipassana. No entanto, nesse texto, me permitirei usar indiscriminadamente as palavras “retiro” e “curso” para descrever a minha experiência.


As regras do curso são severas. O silêncio é absoluto e chamado de “nobre silêncio”. Ao cruzar com outra pessoa, devemos evitar encará-la. A recomendação é olhar para baixo. Toque físico de qualquer espécie é proibido. Não podemos fazer coisas que causem distrações nos outros, muito menos barulho e sons. Fazer movimentos bruscos, exercícios físicos, correr, yoga ou brincar com pedras são exemplos de atividades ou atitudes proibidas. A agenda é pesada e os horários são rígidos. Só podemos tomar banho em horários marcados. Enfim, a lista é grande.


No refeitório, somos informados de que o “voto de silêncio absoluto” já está em vigor e que a rígida segregação de homens e mulheres também tinha início ali. Assim, ao encerrar a longa leitura do documento, os voluntários puxam uma enorme e pesada porta de madeira que divide o refeitório, isolando completamente as duas áreas do recinto: homens de um lado, mulheres do outro, sem se verem. Tento um infrutífero olhar derradeiro para ver Valéria.


Às 18 horas vou para a Grande Sala de Meditação. Será a minha primeira experiência de meditação. Estou ansioso para saber o que vem pela frente.


Chego na varanda da Grande Sala e me deparo com um reluzente quadro que apresenta a seguinte agenda: 


4h00 às 4h30 – Despertar

4h30 às 6h30 – Meditação na Sala de Meditação ou no quarto

6h30 às 8h00 – Café da manhã e descanso

8h00 às 9h00 – Meditação obrigatória na Sala de Meditação

9h00 às 11h00 – Meditação na Sala de Meditação ou no quarto, conforme instruções do Professor

11h00 às 13h00 – Almoço e Descanso. Entrevistas individuais c/ o Professor, agendamento prévio

13h00 às 14h30 – Meditação na Sala de Meditação ou no quarto

14h30 às 15h30 – Meditação obrigatória na Sala de Meditação

15h30 às 17h00 – Meditação na Sala de Meditação ou no quarto, conforme instruções do Professor

17h00 às 18h00 – Lanche e Descanso

18h00 às 19h00 – Meditação obrigatória na Sala de Meditação

19h00 às 20h15 – Palestra obrigatória na Sala de Meditação

20h15 às 21h00 – Meditação obrigatória na Sala de Meditação

21h00 às 21h30 – Descanso

22h00 – Todas as luzes do Centro são desligadas


Olho o quadro, tentando memorizar os horários, ainda surpreso com a rigidez. 


Alek está na porta da Grande Sala e vai chamando com voz baixinha nome por nome. Ao ouvir “Mauro”, vou na direção dele e entro da Sala de Meditação. Ele me leva até determinado ponto e aponta para uma almofada azul quadrada no chão. E diz baixinho, quase sussurrando: “esse será o seu lugar durante os 10 dias. Seu número é 32. Seu lugar será sempre o mesmo. Não pode mudar”. E aponta uma plaquinha branca, com um número 32 desenhado, jogada ao lado da almofada.


E, finalmente, Alek diz: “você pode ir agora na sala das almofadas e pegar quantas almofadas desejar para se sentir mais confortável na meditação”.


Vou na tal sala e pego algumas almofadas adicionais, sem ter muita certeza do que escolher. Volto para a Grande Sala.


Cada aluno tem um lugar metricamente marcado na sala. Lá na frente, está o Professor que nos acompanhará durante todo o curso. Chama-se Robson.


Meu lugar é privilegiado porque estou bem no fundo da sala, o que me dá uma visão panorâmica. Estamos organizados em fileiras, como numa escolinha, portanto ninguém se vê de frente. Somos instruídos que na Sala de Meditação devemos estar sempre sentados em nossas almofadas e, conforme regras em vigor, evitar ficarmos olhando uns aos outros e se distraindo. 


O Professor nos cumprimenta e uma mensagem gravada em áudio tem início. A mensagem é uma gravação original do Senhor Goenka falada em inglês. Logo em seguida surge outra voz, narrando o mesmo conteúdo em português. Esse ritual se repetirá durante todos os dias e meditações. Ouviremos o Senhor Goenka e o dublador recorrentemente, orientando-nos conforme a evolução dos trabalhos. O Professor Robson, presente fisicamente na Sala, quase não fala. Todas as instruções serão em áudios gravados de excelente qualidade e clareza.


Descubro que a meditação não é guiada, não tem música ou qualquer outro som. Somente a voz do narrador. As instruções são dadas e depois entramos em processo silencioso de meditação, tentando aplicar o que nos foi instruído.


As primeiras instruções nos orientam a ficarmos em silêncio absoluto, olhos sempre fechados, posição sentada e ereta, de preferência em posição de lotus, imóvel o máximo que puder. É pedido para nos concentrarmos na área acima do nosso lábio superior e abaixo do nariz, “observarmos” o ar entrando e saindo pelas narinas, sem interferir na respiração. Apenas “observando mentalmente”. Essa é a missão, nada mais. Me esforço para isso.  


Depois de 1 hora de meditação, temos 5 minutos de descanso, quando saio da sala para um rápido pipi.


No meu retorno, paro um pouco na varanda que circunda a Sala de Meditação. Me encosto na mureta da varanda e contemplo a vista noturna da floresta fechada que abraça a construção rústica e bem cuidada. É noite e o céu está muito estrelado.


Olho para o lado e vejo Alek, também apoiado na mureta olhando para o infinito. Alek é um aluno antigo e voluntário do Centro. Cabe dizer que alunos antigos são todos aqueles que já realizaram o curso de 10 dias de Meditação Vipassana que eu estou realizando. Alek já realizou muitos. Ao término desse meu retiro, eu também serei um aluno antigo. Mais tarde descubro que alunos antigos podem se tornar voluntários.  


Alek é uma pessoa alta, de semblante fechado e sério, de pouca expressão facial, o que está bem em linha com o ritual de comportamento que se espera de todos dentro do Centro: isolamento, sem interação social de qualquer tipo. Porém, nos próximos dias, em raros momentos, ele ensaiará alguns sorrisos, o que mudará a minha percepção sobre ele ao longo do tempo.


Alek olha o relógio, dá um rodopio de corpo e vai na parede do fundo da varanda, onde pega um bastão e um sino em formato estranho. Anda alguns metros e dá uma pancada firme no sino, que produz um som alto, agudo e longo. Esse é o sinal de que a próxima atividade dentro da Sala de Meditação terá início.


Na Grande Sala, rola uma palestra gravada em áudio, que nos conta sobre a história do Vipassana e um pouco do processo que viveremos ao longo dos próximos 10 dias.  


São 21 horas do Dia 0.


Acabei de entrar no quarto. Sinto muitas dores na lombar e nas pernas. É muito desconfortável ficar sentado em posição de lotus durante um longo tempo, com pernas cruzadas, mesmo em cima de almofadas.


Algumas semanas antes do retiro, eu comprei cadeirinhas de meditação para nós dois (eu e Valéria). Trouxemos as tais cadeirinhas para o Centro, porém, para usá-las, é preciso receber autorização do Professor, o que ocorrerá somente amanhã, quando começará oficialmente o curso. Eu estou com a minha cadeirinha aqui no quarto e Valéria com a dela.


Olho para o relógio. Agora são 21h30 do Dia 0.


Penso na meditação. Penso na noite estranha que estou vivendo. Penso no “nobre silêncio”. Nenhum som. Nenhum barulho. Nada! Dores me dominam. Sensação de prisão e desconforto. Surge a pergunta: “Por que estou fazendo isso?”.


Lembro dos meus objetivos por participar de um retiro como esse: aprender a meditar, ter clareza dos benefícios que a meditação pode trazer para minha vida e, por fim, continuar a minha jornada pessoal de auto-observação, autoconhecimento e autodesenvolvimento. Penso comigo: “Amanhã será o primeiro dia. Vai melhorar”.


Trilha para o Dormitório Masculino 2

Dia 01 – Tic-Tac

22/08/2024


São 4 da manhã do Dia 01.


Acordei com o sino tocando. A noite foi maravilhosa de sono. Eu estava muito cansado na noite anterior e apaguei. Tomei um banho para despertar. Me sinto bem-disposto. Não sinto fome.


São 4h30, chego na Sala de Meditação no horário determinado pela agenda. Está tudo escuro, ainda é madrugada. Apenas lâmpadas bem fraquinhas iluminam o ambiente. O Professor entra na sala e se posiciona em seu local, aprumado e imóvel. Silêncio absoluto.  


Devemos seguir com a técnica de meditação ensinada no dia de ontem. Me esforço no processo. Minha mente barulhenta ruge como um leão. Apesar da rigidez por manter os olhos fechados, eu desobedeço e abro os olhos um pouquinho, de vez em quando.


Ao longo de intermináveis 120 minutos, lentamente, a sala começa a clarear por conta do amanhecer que acontece lá fora. A claridade passa pelas janelas e a Sala de Meditação vai se descortinando diante de mim. Presto atenção nos detalhes, com olhos semicerrados desobedientes e a mente enlouquecida para aquela tortura terminar logo.


Fico lá até às 6h30.


Já são 2 horas lutando com a minha mente e o meu corpo. Tudo é intensamente ruim: as dores no corpo, a mente indisciplinada, a sensação de perda de tempo, o desconforto de pensar onde me meti, o silêncio cruel, tudo conspira para um arrependimento precoce desse meu retiro.


Meu Deus, eu estou nos primeiros minutos dos primeiros dias do retiro, onde isso vai terminar?


Fora da Grande Sala, escrevo o meu nome no bloquinho de papel pendurado na parede pedindo um horário para falar com o Professor. Penso na minha estratégia de conversar com ele para suplicar pelo uso da minha cadeirinha de meditação. “E se ele não aceitar? O que faço?


A prancheta para pedir agenda com o Professor (está sem papel)

Finalmente, é meio-dia do Dia 01.


Entro na Sala de Meditação, que está semivazia. Sento-me diante do Professor.


Professor Robson é um senhor de aparentes 70 anos de idade, moreno, muito magro, calvo e com cabelos brancos nas têmporas. É uma pessoa de poucos sorrisos.


Com olhar de súplica, um pouco constrangido, eu peço autorização para usar a cadeirinha de meditação que eu havia levado. Mostro a cadeirinha, aponto para ela com o dedo indicador. E, antes de receber a resposta, emendo dizendo que tenho 64 anos, apelando para o meu estado de idoso.


O Professor, inexpressivo, olha para mim e fala: “Dor é cura”. E explica que o desconforto e a dor fazem parte do processo. Ele fala baixinho, quase sussurrando. Tenho dificuldade de ouvi-lo. Como engenheiro que sou, espero um “sim ou não”, um “preto ou branco”, mas a resposta vem cinza. Em nenhum momento ele é objetivo.


Saio da Grande Sala um pouco confuso. Então assumo que a interpretação ficará por minha conta. Para mim, a autorização foi dada.


São 13h00 do Dia 01.


Estou no quarto, no horário de descanso. Não há nada para se distrair. Nada para ocupar a mente. Sem livros, papel, caneta, celular… nada, nada, nada. Confinado dentro de limites severos. A sensação é de desolação. Difícil de descrever o que sinto. Talvez angústia.


A totalidade do tempo é para meditar. Todas as horas e minutos são consumidos pela mente, que não para de trabalhar. É como um motor rodando em velocidade acelerada o tempo todo.


São 21h15 do Dia 01.


Silêncio absoluto. Até os pássaros não fazem barulho. Parece uma floresta quieta.


Será que estou com a minha mente muito barulhenta abafando os sons sutis e vibracionais do ambiente a minha volta? Talvez, em silêncio, eu esteja fazendo intenso barulho dentro de mim.


O pequeno relógio de mesa que eu trouxe, e que coloquei no quarto, faz tic-tac. É o único som audível. Ouvi esse tic-tac, nítido e forte, nos vários momentos do dia quando estive no quarto. Sinto vontade de quebrar o relógio.


Me sinto muito cansado. Usei os poucos períodos de descanso do dia para cochilar e até dormir profundamente. Todas as sessões de meditação me pareceram torturantes.


Descobri que o exercício mental é tão intenso quanto o exercício físico. Quando faço as minhas caminhadas de centenas de quilômetros, eu durmo pelo cansaço físico. Aqui eu durmo pelo cansaço mental. Estou esgotado.


Convido você para ouvir o canto matinal que ouvimos neste Dia 01.




Dia 02 – Sonhos e alucinações

23/08/2024


São 4h25 da manhã do Dia 02.


Estou no quarto. Acordei às 4h00, por conta do sino. Já tomei um banho quentinho, que foi excelente e me deu disposição. Transformarei esse banho cedo em um ritual de todos os dias.


Às 4h30 terá início a primeira meditação do dia na Grande Sala. Aguardo o toque do sino.


Penso que a meditação mais difícil na agenda ao longo do retiro, em teoria, será a das 4h30 às 6h30 da manhã, porque é sem interrupção e em total jejum, durante 2 horas. Por outro lado, o corpo estará descansado pela noite de sono. Nos dias seguintes vou descobrir que a meditação neste horário não era algo rígido e se tornou assimilável.


São 13h30 do Dia 02.


O uso da cadeirinha de meditação tem me salvado, tornando a meditação mais suportável.


Olhando ao meu redor dentro da Sala de Meditação, transgredindo a regra de não levantar a cabeça, verifico que somente eu e mais dois homens temos cadeirinhas. Mesmo assim, esses dois homens só usam cadeirinha algumas poucas vezes, pelo menos até agora. O restante dos homens encara a posição ereta de lotus. São todos super-homens.


O Professor age de forma rigorosa. Em uma das meditações, recebi ordem para retirar os óculos. Aprendi que não se medita com óculos, ainda mais porque tenho que manter os olhos fechados.


As dores no corpo continuam intensas. Só tem um jeito: tomar remédios que trouxe comigo, já antevendo o que sentiria.  


As meditações me provocam enjoo, as vezes vontade de vomitar e, principalmente, fortes dores de cabeça. Tem sido assim até agora, dia e noite.


Apesar das orientações dadas nos ensinando a meditar, tudo ainda é um desafio. Durante as meditações a minha mente divaga muito, não obedece ao meu comando e eu penso em coisas aleatórias o tempo todo. Tento dominá-la, mas ela é indisciplinada.


As vezes tenho alucinações durante as meditações. A minha mente cria cenas não vividas (pelo menos nessa minha existência) ou sonhos fantásticos, um pouco loucos, com gente que não conheço e em locais que nunca passei e estranhos. Muitas cenas parecem cenas cotidianas, porém anormais. Algumas me parecem durar muito tempo, mas que talvez sejam apenas poucos segundos no tempo terreno.


Sonhei, durante uma das meditações, que eu estava na Grande Sala de Meditação, com todos ali, em suas posições tradicionais, naquela ordinária iluminação moribunda, porém com automóveis passando de um lado para o outro, cruzando o ambiente de ponta a ponta, como se houvesse uma rua no meio do salão. De repente, um táxi amarelo estaciona perto de mim, pessoas saltam do automóvel, dão poucos passos e se sentam em almofadas para meditar, quase ao mesmo tempo que outras pessoas que estavam meditando se levantam e entram no táxi. Então, o táxi vai embora. Aí eu desperto do transe. Foi tudo tão claro e tão real.


Em outra meditação, sonhei que estava em um lugar com dois homens que não conheço. Um deles tinha um jeitão meio hippie, com cabelos longos amarrados tipo coque. Ele conversa com o outro homem dizendo que já decidiu pelo nome do seu filho, se chamará Rafa. Porém diz que está com medo de contar isso para a mulher.


Em outro voo da minha mente, sonhei que estava segurando a minha mochilinha (que sempre levo comigo) e vejo que os muitos picolés que coloquei lá dentro, em dois sacos plásticos grandes, estavam derretidos e pingando.


A intensidade desses sonhos é tanta, que as vezes eu desperto sobressaltado e com falta de ar. Isso acontece com frequência quando estou com os olhos fechados e perco o controle da meditação. Parece que entro em um estado de transe ou algo parecido.


São 16h00 do Dia 02.


Estou no quarto. Conforme a agenda, eu deveria estar meditando agora dentro do quarto, mas jogo a agenda para o alto e uso o tempo para descansar.


As meditações continuam me consumindo internamente. Por isso continuo usando todos os momentos possíveis para descansar ou dormir. Estou no meio da tarde e me sinto exausto. Minha cabeça pesa uma tonelada. Preciso descansar para ganhar disposição e energia para as próximas meditações do dia.


Pela minha contagem, são 35 homens no retiro, de todos os tipos, velhos, jovens, pais de família, sarados, nerd com cabelo no meio das costas e óculos fundo de garrafa, militar, alternativo etc. Porém, identifiquei um padrão: a maioria são homens brancos ou morenos claros, com 30 e poucos anos de idade. Acho que sou o mais velho de todo o grupo.


É Dia 02 e ainda não consegui ver a Valéria na Sala de Meditação. Será que ela desistiu? Queria apenas um sinal dela. São muitas mulheres, muitas com xale e roupas pesadas por conta do frio, em uma sala na penumbra e muitas sombras. Eu tenho dificuldade de ver, porque pela minha posição na sala eu vejo todas as pessoas de costas, com exceção do Professor.


Dentro do quarto, olho para uma cartela de remédio de uso contínuo, que deixei em uma prateleira do lado da cama. A cartela funciona com meu calendário. A cartela tem 10 comprimidos e marca a evolução da minha estadia no retiro. Previamente escrevi os números de 1 a 10 ao lado de cada comprimido da cartela. A cada 1 comprimido consumido, é 1 dia a mais de retiro realizado.


A minha cartela-calendário de remédios

Dia 03 – Anapana

24/08/2024


São 7h30 da manhã do Dia 03.


Estou na suíte 2, no do dormitório 2. Esse dormitório é uma construção de dois andares em um terreno desnivelado, tem apenas duas suítes e vários quartos coletivos, com banheiro grande coletivo e lavanderia. Eu sou um dos afortunados por estar numa suíte, fruto da minha situação de idoso.


Acho que dois homens abandonaram o retiro até agora. Um homem com certeza abandonou, porque era o cara que ficava ao meu lado dentro da Sala de Meditação. A posição dele está vaga desde a tarde do Dia 02.


Os momentos mais divertidos do dia têm sido o café da manhã às 6h30 e o almoço às 11h, porque vejo algum movimento e consigo observar um pouco os outros, o que é proibido.


O meu local no refeitório é muito estratégico. Estou na última fileira, na ponta, o que dá uma visão ampla de todo o ambiente e do movimento. Sentamo-nos sempre de costas, em fileiras, evitando nos vermos de frente e o que cada um está comendo. Temos bandejas de inox, onde nós próprios nos servimos da comida. No canto do refeitório existem 5 pias, onde cada um é responsável por lavar e secar sua bandeja.


O almoço sempre tem alface, cenoura ralada, beterraba ralada, pepino ralado ou em rodelas, as vezes tomate. Um dia teve arroz integral com feijão, em outro foi farinha disfarçada de farofa com feijão e em outro teve macarrão. Um dia teve legumes cozidos (chuchu e abobrinha). Em outro batata assada. Sobremesa é um potinho pequenino de alguma coisa. Já teve flan. A comida até agora não tem sido saborosa. Eu não esperava nenhum luxo, mas falta tempero e carinho. Coloco bastante sal para dar uma levantada. Vamos ver os próximos dias.


O café da manhã é sempre a mesma coisa. Não muda nada! É banana, laranja, uma espécie de coalhada ou iogurte, granola, calda quente de ameixa, mingau quente de aveia sem glúten, torrada de pão de forma integral, manteiga e goiabada cremosa. Para beber tem chá, leite e café solúvel. Para adoçar, açúcar cristal ou açúcar mascavo.


São 10hs da manhã do Dia 03.


O Professor nos libera para meditarmos no quarto. Chego no quarto, desabo na cama e, mais uma vez, me se sinto exausto.


Como posso me sentir tão cansado?


A meditação iniciada às 4h30 da manhã seguiu até 6h30. Depois voltamos a meditar a partir de 8h. Tudo muito intenso. É muito desgastante. A cabeça trabalha o tempo todo. É uma guerra que acontece dentro do meu cérebro.


Nesse retiro e curso, tudo é rotina e disciplina. Como disse, o café da manhã é sempre a mesma coisa. O almoço pouco varia. Todos os dias são os mesmos horários e atividades, com rigidez. Nada muda ou varia. Eu demorei para entender que a regra é não distrair a mente e não criar expectativa com nada. É mente vazia e quieta.


São 17h30 do Dia 03.


É final da tarde. Caminho do refeitório para o quarto, cortando a trilha na floresta. Já perto do dormitório, vejo Alek. Penso em um pretexto para falar com ele.


Chego perto dele de cabeça baixa. Coloco a mão na boca, escondo meus lábios, busco falar baixinho, chamando-o de Aleksander. Pergunto como eu poderia conseguir desinfetante para o banheiro da minha suíte. Ele responde sério e de forma objetiva. Agradeço com um sorriso desbotado. Faço uma nova pergunta qualquer. Em sua segunda resposta fica evidente que ele fala um português diferente, com muito sotaque. Pergunto de onde ele é porque é evidente que não é brasileiro. Ele levanta o rosto, olha nos meus olhos, me encarando com menos cerimônia e responde: “Sou ucraniano. Pode me chamar de Alek”. Então abre um meio sorriso e vai embora em passos acelerados.


São 21h10 do Dia 03.


É noite. Mais um dia do retiro que termina. Voltei para o quarto depois da palestra em áudio e a meditação subsequente.


No caminho para o quarto, eu vejo que o “tempo virou” agora à noite. Os dias anteriores foram de sol bonito e tempo quente. Agora tem chuva e frio.


Até agora, nos 3 primeiros dias, nós aprendemos e praticamos unicamente um exercício: fechar os olhos, em posição sentada, imóvel, silêncio total e observar o ar entrando e saindo pelas narinas, sem interferir na respiração. Essa meditação chama-se Anapana. Foram 3 dias fazendo a mesma coisa, durante horas e horas.


A Meditação Anapana é uma prática de atenção plena que se concentra na respiração, que ajuda a acalmar a mente e desenvolver a concentração. É uma técnica simples, mas poderosa, com a promessa de promover clareza mental e tranquilidade.


Hoje, na palestra, nos foi dito que Anapana é o primeiro e necessário passo para a prática da Meditação Vipassana. Amanhã, finalmente, vamos aprender Meditação Vipassana.


Os devaneios continuam. Quando estou na Sala de Meditação, minha mente voa alucinadamente. Hoje, por algum tempo, quando estava em posição de lotus e meditando, provavelmente segundos, eu não senti meu corpo. É como se eu estivesse dormindo profundamente, leve e ausente.


As meditações têm ficado cada vez mais dolorosas. Hoje cometi uma das várias transgressões que realizei ao longo do retiro: tomei remédios para dores, como dorflex e alginac 1000.


Assista o vídeo de 15 minutos com Senhor Goenka sobre Meditação Anapana. Ele pergunta: “Como pode haver paz quando existe agistação na mente?”




Dia 04 – Pensando em desistir

25/08/2024


São 13 horas do DIA 04.


A manhã de hoje foi muito difícil. Senti muitas dores na meditação das 4h30 às 6h30, com muito enjoo e mal-estar. Insuportável. Me cansei muito. Não foi diferente nas meditações realizadas na sala de meditação das 8h às 10h50. Fiquei exausto.  


Estou pensando em desistir. Penso nisso desde ontem à tarde. Agora a vontade está ainda mais forte. Porém, quando vou para o quarto ou caminho para o refeitório, eu renovo a minha força e decido que tenho que continuar.


Procurei a Valéria na Sala de Meditação, mas não a vi. Será que ela desistiu?


Estou no quarto dia. Faltam só mais 6 dias. Força!


Um dos pontos altos da minha experiência no Centro é a suíte onde estou instalado. É simples, austera, no estilo do que se espera de um retiro espartano, mas tem bom espaço, é limpa, tem um banheiro, tudo branquinho, com cama e colchão confortáveis, chuveiro com água farta e quente, janela para o mato e umas prateleirinhas que ajudam na arrumação de minhas coisas. Isso tem feito toda a diferença. Tenho privacidade total. A maioria dos homens se encontram em quartos coletivos e banheiros coletivos, o que muda completamente a experiência.   


Todos os dias eu como a mesma coisa no lanche das 17hs: 1 banana, 1 maçã e 1 laranja. Vai ser assim, mais uma vez, no final da tarde de hoje.


Às vezes, durante as meditações e nos cochilos dentro do quarto, com os olhos fechados, eu sinto um vulto. Parece que alguém está do meu lado. Aí abro os olhos e não vejo nada. Hoje aconteceu de forma impactante durante a meditação da tarde. É muito real.


São 17h45 do Dia 04.


Hoje, na sessão de 15 às 17h, nos foi ensinado os primeiros passos da Meditação Vipassana.


A técnica fala em observarmos mentalmente as diversas partes do corpo, parte por parte, segmentando-as mentalmente, começando pelo topo da cabeça. Eu não consigo observar nada. Tenho dificuldade de me concentrar e a técnica pede imobilização total do corpo com os olhos fechados durante 1 hora contínua, em silêncio total e absoluto. Não pode movimentar nenhuma parte do corpo, inclusive dedos dos pés e mãos. Eles chamam isso de “firme determinação”. É insuportável e me parece impossível.


Como me concentrar sentindo dores por todos os lados? Não são dores apenas nas pernas, braços e lombar, são dores dentro da minha cabeça. Como me concentrar em “observar partes do corpo” se não sinto nada?


São 21h15 do Dia 04.


Entro no quarto. É final do dia. O “nobre silêncio” reina no Centro.


Está terrivelmente frio e chuvoso. A temperatura caiu muito e tudo está super úmido porque estamos dentro de uma mata muito densa. O dia inteiro foi sob forte serração, com aspecto sombrio e perturbador.


Hoje foi o dia mais difícil. Obviamente que as noites do Dia 0 e Dia 01 foram muito duras porque tudo começou nesses dias, especialmente o silêncio total e a ausência de ocupação da mente.

Hoje, o quarto dia, o silêncio não é mais problema. O desafio é meditar estando imóvel e sentindo dor. A mente está gritando dentro de mim. Penso em desistir a cada minuto. Isso não me sai da cabeça.


Amanhã chegarei na metade da jornada. Será que continuarei? Será que aguento? Está tudo muito sofrido e até agora não senti nenhum benefício do curso e da experiência de meditação.


No vídeo a seguir, de 19 minutos, Senhor Goenka nos apresenta uma “Introdução à Meditação Vipassana”. Vale assistir. Recomento muito.




Dia 05 – A maratona das bulas

26/08/2024


Agora são 4h15 da manhã.


Essa foi a pior noite até agora. Não consegui dormir bem, apesar de ter ido para cama muito cansado e com o corpo sofrido. Tive enxaqueca contínua. Tomei um remédio um pouco antes das 3h da manhã, quando então passei a me sentir um pouco melhor. Demorei para entender que era a minha cabeça dolorida e cansada que estava me causando o mal-estar durante toda a noite e madrugada. Ou será que foi o frio intenso? Está um frio descomunal.    


Acordo com a esperança renovada, com o espírito de “perseverar”, superar, ir além, minimizando o que eu senti e vivi até agora. Só vou conseguir entender o que é meditar se eu persistir, enfrentar minhas dores e meus temores. Não posso sofrer com antecedência. Ontem eu estive por desistir por diversas vezes, mas hoje é um novo dia e nasce uma nova esperança.


Sempre tomo banho às 4h da manhã. Isso me desperta, me renova e me motiva. O banho é uma benção para mim. Estar em uma suíte me dá um espaço de privacidade, fazendo as coisas do meu jeito.


Até o Dia 03 eu podia meditar com poucos e suaves movimentos de corpo. A orientação era não se mover, mas havia uma certa complacência no processo. Porém, a partir de hoje, será diferente. Entramos na fase da “firme determinação”. Eu terei que meditar sem me mover, nem um dedo. Isso é amedrontador para mim.


Entro na Sala de Meditação às 4h30.


Na penumbra do ambiente, vejo apenas 5 homens (incluindo eu) e 5 mulheres. Valéria não está. Onde está Valéria?


O que será que passa na cabeça desses homens ao meu lado? Parecem tão fortes e determinados. Será que alguns deles estão pensando em desistir? Será que estão sentido dores e sofrimento como eu?


Me esforço muito, mas fico apenas até às 5h30. O programa do curso aponta que a meditação no intervalo das 4h30 às 6h30 da manhã é obrigatória, porém pode ser feita na Sala de Meditação ou no quarto, o aluno decide.


Volto para o quarto, onde durmo escancaradamente até às 6h30. Essa foi mais uma transgressão de minha parte. Preciso estar descansado para o restante do dia. O sono das 5h30 às 6h30 me faz muito bem e me revigora.


São 10h10 da manhã do Dia 05.


Estou muito feliz. Consegui fazer a meditação das 8h às 9h praticamente sem me mover. Talvez o segredo tenha sido o descanso prévio e os remédios para dores.


Depois da meditação das 9hs, teve um intervalo curto de 5 minutos, e iniciamos uma nova meditação na Sala que foi até às 10hs. Fui bem. Saí da Sala às 10hs.


Minha felicidade foi intensificada por ter visto a Valéria meditando entre as mulheres dentro da sala de meditação. Passei dias tentando identificá-la. Finalmente descobri que Valéria está firme e forte em “sua luta”. Ela está na ponta final da terceira fileira, muito distante de mim, com muitas mulheres atrapalhando a minha visão.


Por mais que eu me esforce, eu não consigo seguir a técnica ensinada pelo Professor. A técnica da Meditação Vipassana exige imobilidade total em uma posição “confortável” para o praticante, normalmente em posição de lotus. Não pode mexer nada. Então, somente com a mente, devemos nos “mover’ pelo corpo, do topo da cabeça aos dedos dos pés, de cima para baixo, observando e sentindo cada setor do corpo, cada parte, cada pedaço, percorrendo todo o corpo, lentamente. É um desafio enorme de controle da mente.


Minha mente não atende. Eu não consigo observar e sentir determinadas partes do corpo, como o cocuruto da cabeça, os cotovelos e as panturrilhas. O que acontece é que minha mente voa descaradamente.


Na meditação de 8 às 9h eu lembrei do Caminho de Cora Coralina que fiz. Depois voei para uma época em que eu tinha 10 anos de idade, na casa de minha Vó Herculina. E consegui acessar lembranças que não acessava mais. Foi incrível a viagem. Estou conseguindo resgatar coisas esquecidas que eu não lembrava mais, isso me parece uma forma de expansão da mente, porém não tem nenhuma relação com a Técnica Vipassana. Na verdade, é um subterfúgio para tolerar o exercício de meditação de forma imóvel e concentrada. Ou falando de outra forma, eu distraio intencionalmente a mente para amenizar o meu sofrimento. Que vergonha! Desculpe Senhor Goenka.


São 12h15 do Dia 05.


Estou no intervalo do almoço e descanso, de 11 às 13h. Pego uma vassoura e varro as áreas comuns do dormitório 2. Talvez eu tenha provocado uma movimento. Dois ou três homens pegam panos e vão para o banheiro coletivo, mictório e lavanderia para limpar as áreas. Gasto 40 minutos nessa atividade e tudo fica mais limpo. Havia muita sujeira, folhas e um pouco de terra por conta da lama causada pelas chuvas dos últimos dois dias.


Estou no quarto e o único som que escuto é o tic-tac.


Penso na Valéria o tempo todo. Como ela está passando com tudo isso? A comida! O frio intenso! O isolamento! As palestras! O banho! As noites! Queria chegar só perto dela e dar um abraço, mesmo calado. Agradecer por ela estar tendo essa experiência junto comigo, mesmo que distante.


São 16h10 do Dia 05.


Agora eu estou no quarto e deveria estar meditando sozinho, mas não consigo. Não quero meditar agora. Ainda terei horas de meditação pela frente. Preciso fazer alguma coisa.


Tenho uma ideia. Para me distrair, eu começo a ler todos os textos dos produtos que tenho comigo aqui: bulas de remédios, os textos no vick vaporub, desodorante, repelente, shampoo, creme de barbear, creme hidratante, spray para garganta etc. Leio isso devagar e atentamente, para demorar mais tempo. Dentro de minha cabeça eu chamo isso de “maratona das bulas”. Acho que farei isso todos os dias. Será minha “Netflix”.


A maratona das bulas e o meu relógio tic-tac

Agora faltam 15 minutos para a meditação das 18h. Já tomei banho quentinho. Ontem foi frio, mas hoje ainda está mais frio. Acredito que a sensação térmica esteja perto de 5C. A umidade intensa da floresta intensifica a sensação térmica desconfortável, apesar que dentro do quarto está um pouco melhor. Ontem choveu o dia todo.


Hoje madrugou chovendo e o amanhecer também, com tempo fechado e forte serração. A floresta fica sombria e um pouco assustadora. Estou torcendo para amanhã ter uma virada do tempo. 


Estou no Dia 05 do Retiro. Minha mente voadora lembra da expedição ao Monte Roraima. Lembro que no quinto dia da expedição nós estávamos no platô do Tepui, a 2800 metros de altitude. Também lembro que naquele dia eu estava terrivelmente cansado, dormindo em uma gruta, sentindo muito frio, com muito desconforto. Era impossível desistir da expedição, eu já estava no topo do Monte Roraima. Desistir não era uma opção naquelas circunstâncias. Era seguir ou seguir, com todas as dificuldades, sofrimento e dor. Desistir significaria nunca mais descer do Monte Roraima.


Penso no presente. Aqui tem que ser igual. Eu já enfrentei o mais difícil, que foi iniciar o curso e superar as dificuldades da primeira metade da jornada. Estou no Dia 05 do Retiro. Estou no topo da jornada. Não posso desistir. Me convenço de que desistir não é uma opção. Agora é só superação e compromisso com o desafio que assumi. Esse meu pensamento me dá força e resiliência. Estou no topo do Roraima e não vou mais desistir.


É noite, já passa das 21h00 do Dia 05.


Estou no quarto. Superei as meditações da noite.


Todas as noites, das 19h às 20h15, acontece uma palestra em áudio dentro da Sala de Meditação. É o único momento que podemos ficar mais à vontade dentro da Grande Sala, podendo variar a posição, mas sempre sentados. Nesse momento eu consigo olhar melhor para os rostos dos meus colegas de meditação, mas sempre rapidamente e um pouco envergonhado por encarar alguém. As palestras têm bom conteúdo, mas me parecem longas demais. Acredito que elas poderiam ser dadas na metade do tempo. Ocorrem muitas repetições de conceitos e muita contação de histórias. Hoje a palestra foi explicando a origem e os fundamentos da Meditação Vipassana. Apesar disso, confesso, as palestras são um tremendo oásis no meio de agenda rigorosa e sem surpresas.


Hoje, na hora da palestra, eu vi a Valéria na penumbra. Tive uma enorme vontade de perguntar como ela está lidando com o frio anormal. Ela sofre com qualquer frio. Na impossibilidade de qualquer gesto ou sinal, apenas sorrimos um para o outro. Achei ela bem e isso me deixou mais tranquilo e feliz. Estamos em nossas jornadas.


Estou muito contente com o meu dia de hoje porque estou mais confiante no meu processo. Foi o melhor dia até agora. Tenho resistido melhor as dores da meditação, apesar de ser ainda muito difícil controlar meus pensamentos e por foco.



Dia 06 – A ressignificação da experiência

27/08/2024


São 4h00 da manhã do Dia 06.


Levanto-me ao som do sino. Tomo um banho quente. Me sinto melhor.


Hoje acordei às 2hs da manhã com forte dor de cabeça, enxaqueca, enjoo e sentindo muito frio. Não sei se a intensa sensação de frio causou enxaqueca ou vice-versa. Tomei remédios e fui cochilando até às 4hs, forçando a barra na vã tentativa de dormir. Não deu muito certo não.


Esta noite, com certeza, foi a mais fria. O quarto está um freezer. Rezo para que hoje seja um dia de sol com calor. Só penso na Valéria. Será que ela conseguindo tomar um banho bem quentinho?

Ainda bem que eu trouxe remédios para dor de cabeça e enxaqueca. Nunca imaginei que precisaria disso. Tomo mais um remédio.


São 5h20 da manhã do Dia 06.


Estou na Sala de Meditação, com olhos fechados, na penumbra do ambiente e no silêncio total. Tento meditar. Não preciso abrir os olhos para ver a sala. A imagem da Grande Sala escura está emoldurada na minha mente, estática como um quadro na parede. Nada muda de lugar. Vejo a sala mentalmente com todos os detalhes e nuances.


Sinto uma pessoa vinda em minha direção. Meus olhos estão completamente fechados. A pessoa surge pequena, como um ponto que vem do horizonte, ela vem do lado direito e se aproxima, caminhando lentamente. Sua silhueta vai aumentando e começo a ver alguns detalhes. Ela veste uma espécie de manto pesado e escuro, tem a cabeça coberta por um lenço cinza e segura uma espécie de candeeiro com uma vela acesa bem fraquinha. A pessoa vem andando em passos sutis, parecendo flutuar no ar. Ela vem se aproximando… está mais perto… mais perto. Ao passar do meu lado, de repente, sinto ela esbarrar na almofada que está sob os meus pés. A almofada se move. Me assusto e acordo do transe. Fico atônito porque a almofada se moveu. Tenho certeza de que se moveu. Como pode? Abro os olhos e vejo a Sala de Meditação do mesmo jeito. Foi tudo uma alucinação… uma alucinação bem real.


Penso nos devaneios e sonhos que tenho vivido. Em algumas meditações eu tenho sentido mundos multidimensionais à minha volta. São alucinações ou realmente estou conseguindo ter experiências transcendentais?


Decido sair da Sala de Meditação. As meditações das 4h30 às 6h30 podem ser feitas também no quarto, trata-se de uma escolha do aluno.


Saio da sala, calço a minha sandália e vejo que surgiu um novo quadro na varanda da Sala de Meditação. Diz assim:


HORAS DE FIRME DETERMINAÇÃO (em pali: Adhitthana)

Os alunos deverão meditar 3 horas por dia sem abrir os olhos, sem mover pernas e mãos.

  • Das 8 às 9hs

  • Das 14h30 às 15h30

  • Das 18h às 19hs


O aviso alerta que as 3 meditações diárias chamadas de “MEDITAÇÃO DE FIRME DETERMINAÇÃO”, ou Adhitthana, são as mais importantes e inegociáveis em todo o processo. São nelas que os alunos devem colocar todo esforço, concentração e energia. Isso não significa que nas outras meditações vale tudo, mas estabelece que existem alguns períodos do dia em que devemos ser FIRMES E DETERMINADOS.


O objetivo das Adhittanaa é fortalecer e purificar a mente e não se torturar, mesmo que isso represente desconforto ao longo do processo. Tem que dar o melhor de si.


Em um outro novo quadro, leio uma frase atribuída ao Senhor Goenka que traz uma nova luz na minha forma de tratar o processo do retiro. Diz assim: “VOCÊ VEIO AQUI PARA DAR O MELHOR DE SI, NÃO PARA SE TORTURAR”.


Eu li essa frase várias vezes. Isso muda a minha perspectiva.


Constato que eu me torturei nos primeiros 5 dias. A frase, simples e curta, me faz concluir que eu tenho que curtir, me divertir e sentir prazer pela experiência do retiro, mesmo com dor e indo além dos meus limites.


São 5h30 da manhã do Dia 06.


Estou no quarto, deitado e olhando para o teto.


Penso no que venho aprendendo nos meus últimos anos através dos meus estudos de filosofia, espiritualidade e outras áreas. Uma das coisas mais transformadoras que aprendi foi constatar que a minha real felicidade, o meu bem-estar e a minha plenitude, estão dentro de mim, dentro de minha mente, independentemente do que acontece fora, do contexto externo e das coisas e fatos que não estão sob meu controle. Existem pessoas que vivem em contextos super limitados e desafiadores, porém elas vivem bem, plenas, felizes, leves e gratas por tudo que recebem. Por outro lado, existem muitas pessoas que tem enorme patrimônio, com acesso a tudo, vivendo cercadas de facilidades e riquezas, com todo conforto possível, mas vivem moribundas, tristes e deprimidas. São pessoas infelizes e incompletas. Isso tudo reforça o conceito de que a real felicidade é um estado mental que nós mesmos criamos, está dentro da gente. Somos nós que decidimos e estabelecemos internamente a nossa leveza, bem-estar e paz de espírito. Eu aprendi isso e tenho tentado praticar isso nos últimos anos.    


Se tudo isso é verdade, se eu acredito para valer nesse conceito de felicidade interna, por que estou sofrendo tanto nesse retiro? O que está acontecendo?


Um jato de luz recai sobre a minha mente.


Estou instalado em um lugar de amor e acolhimento, com conforto, no meio da natureza, com pessoas repletas de carinho e generosidade, cuidando e compartilhando o que tem de melhor comigo, me alimentando muito bem, me ensinando técnicas de meditação para que eu alcance uma vida mais plena e feliz, tudo isso cercado de muita paz, segurança, espiritualidade e energia positiva.


Por que então estou sofrendo aqui? Não há razão para sofrimento. Não existe real sofrimento.


O sofrimento é uma ilusão da minha mente. Se eu tenho controle sobre a minha mente, se felicidade e bem-estar são estabelecidos pela minha consciência, então é hora de repensar a minha experiência no retiro e assumir definitivamente o controle da minha mente, dar consciência a ela, ter muita gratidão por tudo que venho recebendo e sentir enorme felicidade por estar cercado de natureza, amor, harmonia e humanidade.


Chego a uma conclusão óbvia: os 10 dias de retiro é a experiência perfeita para eu praticar o controle da minha mente, comprovar na prática o que aprendi lendo os conceitos filosóficos de felicidade e paz interna. Trata-se de uma oportunidade de ouro para meu aprendizado e desenvolvimento.


De repente, a minha mente se ilumina a partir dessa sequência de pensamentos que surgiu de forma avassaladora. Tudo parece claro e óbvio. O que era sofrimento e sem sentido para mim, agora se transforma em uma oportunidade singular para meu aprendizado.


O retiro é uma experiência única para aprender auto-observação e controle da mente. Esse tem que ser o meu foco a partir de agora. Estou no Dia 06, com metade do retiro ainda pela frente. Tudo mudou na minha cabeça. Como em um passe de mágica, tudo parece mais claro, mais belo e mais leve. Agradeço ao universo por essa iluminação.


São 10h15 do Dia 06.


Para brindar o meu estado de iluminação, o sol apareceu e está nos dando um lindo dia. Sinto-me incrivelmente mais leve e decidido a continuar. A possibilidade de desistir do retiro não existe mais. O meu corpo e minha mente já entenderam a rotina e o processo. Agora é melhorar um pouquinho a cada meditação. Já sei que devo dar o meu melhor dentro da dose de sacrifício que estabeleço para mim.


Estou no quarto.


O pior dia foi o quarto dia. Foi um dia de chuva, serração, frio e sombrio. Até então eu via tudo com sofrimento, indo além do suportável, com muita dor. A agenda do quarto dia foi intensamente pesada e eu fui além dos meus limites. No Dia 04 quase desisti. No Dia 05 eu decidi continuar de qualquer forma. Mas agora, no Dia 06, eu ressignifiquei a experiência do retiro e minha mente mudou.


Passa pela minha cabeça que o retiro poderia acabar hoje. Não falo em terminar por conta da dor ou algo insuportável, mas porque já vivi a experiência do retiro e já sei como é. Será que ainda virá algo especial nessa segunda metade do retiro? Penso no aprendizado do controle da mente e concluo que tenho muito ainda o que aprender. Minha cabeça parece confusa, quer sair, quer ficar.   


Não me sinto cansado, isso significa dizer que o retiro está mais interessante e prazeroso.


Sinto falta de caminhar. Já faz mais de uma semana que fiz a minha última caminhada.


São 11h00 do Dia 06.


Caminho até o refeitório. Cruzo a mata, iluminada pelo sol, ainda úmida por conta das chuvas dos dias anteriores. Vejo pássaros felizes e barulhentos.


A trilha que leva para a Grande Sala de Meditação

Chego no refeitório e me deparo com o melhor almoço até agora: espaguete, grão de bico com alguns legumes e tabule. Não era especial, mas me pareceram iguarias sofisticadas diante dos dias anteriores. Estou com fome e me alimento muito bem. Sinto gratidão pela refeição saborosa.


Depois do almoço fico um pouco no meu canto dentro do refeitório, sentado na cadeira, observando o movimento. Pego a minha bandeja de inox, prato de inox e talheres, e levo para a pia para lavá-los com o sabão de coco disponível. São 5 pias.


São 12h00 do Dia 06.


Volto para o quarto. Penso na varanda da Sala de Meditação que está muito suja por conta da chuva dos dias anteriores que trouxe muita terra e folhas secas.


Saio para o espaço comum do dormitório. Abro o armário e pego uma vassoura. Ando pela trilha até a grande e longa varanda da Sala de Meditação. Começo a varrer. Em segundos aparece Alek, vindo de dentro da Grande Sala.


Alek me olha com um olhar fulminante, muito sério e fala com a voz baixinha: “Aqui somente meditamos. Isso que você está fazendo é tarefa dos servidores. Por favor pare com isso”.


Devolvo o olhar com expressão de surpresa. Sem questionar, obedeço ao comando, tentando ser simpático. Saio rapidamente do local, porém me sentindo “puto da vida”. Vou ter que trabalhar o meu ego para engolir a ordem do gerente. Vale dizer que durante todo o retiro eu não vi nenhum servidor, o que me fez entender que os servidores só atuam quando não há retiro.


Ando na trilha pensando: “levei uma bronca injusta, eu só queria ajudar”. Sempre fico chateado quando levo uma bronca por fazer algo bom e que acho certo.


Deixo a vassoura no armário e me enfio no quarto, remoendo o fato dentro de mim.


Em menos de uma hora eu ressignifico a bronca do Alek.


Ele está certo! Nós não estamos aqui para distrair a mente. Varrer a varanda da Sala de Meditação seria uma forma de ocupar e distrair a minha mente, bem como a mente de todos ao meu redor, por isso é que não vemos servidores em nenhum momento. Não podemos trazer livros, cadernos e celulares, não existem bancos nas áreas comuns para não gerar conforto e contemplação, que é uma forma de ocupar a mente.


São 14h30 do Dia 06.


Chego na Sala de Meditação. Ainda na varanda, Alek me vê e fala cochichando: “Se você desejar, no futuro, como aluno antigo, você poderá se inscrever como servidor”.


Agradeço e peço desculpas pela minha atitude. Reconheço que pegar a vassoura e varrer a varanda foi um erro. E, num gesto natural e amigável, típico de latino, encosto a minha mão no braço dele para mostrar gratidão. Ele olha para mim e com um sorriso irônico, diz: “É proibido toque físico no Centro”. Enfim, foi mais um fora de minha parte.


Entro na Sala de Meditação ainda pensando nos dois foras que levei do Alek.


A Grande Sala de Meditação

Começo a meditação no horário marcado.


Hoje a técnica de meditação avança um pouco. Até então, a técnica consistia em explorarmos as sensações no corpo iniciando no topo da cabeça e indo até os pés, setor por setor do corpo, sempre na mesma sequência, não deixando nenhuma parte do corpo de fora. A nova instrução orienta a seguir o caminho inverso, iniciando nos dedos dos pés e finalizando no alto da cabeça. Assim, devo meditar nos dois sentidos, alternando-os.


Logo no início da meditação eu vivo uma das experiências mais fortes de todo o retiro.


Entro em transe por algum tempo, deixo de sentir as partes do corpo, pareço muito leve, pareço uma coisa só, difícil de explicar o que senti, mas foi como eu não tivesse corpo. Foi uma sensação ligeiramente parecida com o que vivi na consagração do Santo Daime, porém no Santo Daime essa sensação foi mais profunda e muito mais longa. Aqui no retiro ela deve ter durado alguns segundos.


Minutos depois, com olhos fechados, mas com a imagem da Sala de Meditação gravada detalhadamente em minha mente, eu “vejo” uma velha senhora, sentada no chão no meu lado esquerdo, um pouco à frente. Eu não consigo ver seu rosto, somente suas costas. Ela veste uma roupa escura, parece de algodão pesado e tem um chale na cabeça. O ambiente é escuro, com pouquíssima iluminação, quase penumbra. A mulher parece estar sentada em posição de meditação e tem sobre as pernas cruzadas um livro muito grosso e pesado, parecendo um álbum de fotografias antigas de pessoas, em preto e branco. Com dificuldade e de forma lenta, ela vira as pesadas páginas e segura algumas das imagens com as mãos, contemplando-as. Eu vejo tudo por cima de seu ombro direito porque estou um pouco atrás. Isso dura alguns segundos, talvez mais. Tenho a sensação de que essa senhora é alguém da minha família, de muito tempo atrás. Desperto do transe, de repente, tendo a certeza de que vivi uma alucinação.


Agora são 17h00 do Dia 06.


O sino toca alertando que é hora do lanche da tarde.


Chego no refeitório para o lanche. Não aguento mais esse lanche. É sempre banana, laranja e maçã. Hoje a banana estava completamente verde.


Penso nos homens que estão fazendo o retiro comigo e tento imaginar a história de vida de alguns deles. Somos orientados a olhar para baixo e não ter contato visual. Passo a identificar alguns deles através dos calçados. Crio nomes fictícios para todos. Não existe som, aceno, gesto, sinal de troca e empatia, apenas ignorância e ausência. Isso cria um ambiente desolador e triste, profundamente antissocial. São dezenas de pessoas perto de mim, porém distantes.


Volto para o quarto.


A minha cabeça está muito pesada. Meus olhos estão muito doloridos. A região acima dos olhos, na testa, está pesada e dolorida. Não é uma dor de cabeça tradicional. É como se a cabeça estivesse muito cansada de tanto trabalhar. É uma sensação bem desagradável que vem me perseguindo há alguns dias. Não consigo me livrar disso.


Eu daria tudo para ter um livro comigo aqui esta noite. Qualquer livro!

Fico pensando na Valéria. Ela não consegue ficar distante de livros. Será que ela levou algum livro escondido na mala?


São 18h00 do Dia 06.


Vou para a Sala de Meditação.


É horário da meditação de firme determinação. Não consigo me concentrar. Minha cabeça pesa uma tonelada e “jogo a toalha”. Intencionalmente aceito a indisciplina da minha mente, abandono a Técnica Vipassana e penso um monte de coisas aleatórias. Quem sabe isso traz alguma leveza para minha cabeça?


Imagino chegando na Sala de Meditação à noite e tendo uma surpresa para todos: churrasco à vontade, com bebida liberada, uma TV de 100 polegadas transmitindo um jogo do Campeonato Brasileiro de Futebol ao vivo, com imagem em alta definição. Ensaio um sorriso contido criando a cena do Professor rindo e falando alto com um copo de cerveja nas mãos. Imagino uma viagem com a Valéria para Disney, em Orlando. Solto a imaginação e sonho com muitas coisas. E foi assim a meditação toda. Que vergonha!


São 21h15 do Dia 06.


Estou no quarto.


Minha cabeça está pesada e explodindo. Me sinto muito cansado. Tomo um remédio para enxaqueca.



Dia 07 – O roubo da banana

28/08/2024


São 4h25 da manhã do Dia 07.


Não dormi bem a noite. No meio da madrugada senti fortes dores de cabeça e enjoo, o que é sinal de enxaqueca. Por volta de 1h30 da manhã tomei um remédio para enxaqueca.


Acordei às 4h ainda com a cabeça muito pesada e enjoo, mas não tomei remédio e vou evitar tomar. Tomei um banho quente e estou me sentindo bem melhor, com incrível vontade de ir para Sala de Meditação.


Como foi dito pejorativamente ontem na palestra gravada em áudio: “é mais um dia no cativeiro, mas também mais um dia próximo do final do cativeiro”.


São 6h25 do Dia 07.


Fui para Sala de Meditação às 4h30, mas só consegui ficar até 5h25. Estava com enorme enjoo, muito mal mesmo. Não meditei Vipassana, apenas Anapana, que é mais fácil e mais leve para minha cabeça.


Voltei para o quarto às 5h25 e dormi até agora, 6h25. Supostamente, esse seria um horário para meditação no quarto, mas eu dormi. Desculpe Senhor Goenka.


Tomei um remédio para enjoo. Me sinto melhor agora.


O sino toca pontualmente às 6h30. É hora do café da manhã. Deixo o dormitório e atravesso as trilhas no meio da mata em direção ao refeitório. O dia está bonito, céu azul com poucas nuvens.  


O sino

Sou o primeiro a chegar no refeitório. Coloco bastante sal na manteiga das torradas. Algo me diz que o meu enjoo vem da falta de sal.


Penso: “Preciso colocar sal na boca no final do dia. É isso que está fazendo a minha noite ruim. Ou talvez seja mais simples. Não é sal e sim necessidade de comida para forrar o estômago e não dormir a noite de estômago vazio. É isso! Fome! É fome que está causando enjoo!


São 9h35 da manhã do Dia 07.


Estou na Sala de Meditação… meditando.


Me sinto bem melhor. A alimentação me fez bem.


Faço a Meditação Vipassana enquanto me sinto bem. Porém, depois de um tempo, a minha cabeça volta a pesar muito. Eu respeito a dor e libero a minha mente para passear. Agora de manhã meditei em meio a pensamentos sobre o apartamento novo, decoração, passeando cômodo por cômodo, sem pressa e detalhadamente. Fazer isso parece aliviar o peso que o exercício da meditação provoca.


Já deu de meditação! Eu daria tudo para estar na minha cidade agora, em Goiânia, estar caminhando em alguma parte. Estou sonhando com isso! Acho vou meditar essa experiência. Vou me imaginar fazendo as caminhadas que faço pela cidade, metro a metro.  


O que estou fazendo aqui? O meu Amor está aqui. O meu carro está aqui. A maravilhosa cidade de Vassouras está pertinho. A gente poderia estar passeando, conhecendo lugares e comendo. Por um instante pensei nisso… no meio da meditação.  


São 12h45 do Dia 07.


É o horário do almoço e descanso.


Fico 1 hora em pé, em uma pequena clareira no meio da mata, na mesma posição, tomando sol, me aquecendo porque dentro do quarto está um gelo. A paisagem da floresta está muito bonita, com o sol resplandecendo nas árvores altas e pássaros muito agitados pelo tempo lindo.


A clareira onde tomava banho de sol no intervalo de 11 às 13h


Penso mais uma vez na experiência que estou vivendo. Em vez de pensar que “já deu de meditação”, eu tenho que agradecer a oportunidade de estar aqui vivendo uma experiência especial e transformadora, em um lugar lindo como esse, construído e preparado com amor e cuidado. Portanto eu tenho que ir até o final do retiro com total dedicação, determinação e compromisso. Esse é o meu papel e o certo a ser feito: aproveitar a oportunidade que é única e especial!

Hoje é o Dia 07. Faltam apenas mais 3 dias. Provavelmente os dias próximos serão os que me trarão os principais resultados e aprendizados que uma experiência como essa oferece.


Durmo, escandalosamente, no horário da meditação no quarto que seria das 13h00 às 14h30. Foi uma transgressão muito benéfica porque me descansou bem para a meditações de firme meditação na Grande Sala de Meditação, programadas para 14h30 e 18h00.


O meu quarto nunca recebe sol diretamente, com exceção do horário de 14h15, quando entra uma frestinha de sol pela janela. O quarto continua uma geladeira.


São 16h45 do Dia 07.


Em 15 minutos o sino vai tocar nos alertando para o lanche das 17h.


Me permito um devaneio: acho que o pessoal está preparando uma surpresa para o lanche. Em vez de laranja, maçã e banana, acho que eles estão preparando mistos quentes bem tostadinhos para gente, com muito queijo e presunto. Até sinto o sabor do misto quente na boca.


São 17h05 do Dia 07.


Chego no refeitório e lá estão elas: laranjas, maçãs e bananas.

Encosto no balcão e “roubo” uma banana, que habilmente entra no bolso do meu casaco. É para o meu lanche depois das 21h. É mais uma transgressão por uma boa causa.


São 21h15 do Dia 07.


Silêncio total no Centro. Apenas o tic-tac do meu relógio. Cheguei há pouco minutos da última meditação. Me sinto cansado. Estava exausto na meditação final. Senti muitas dores no cóccix.


Agora é hora de comer a banana roubada e dormir.


Dia 08 – Observador de mim mesmo

29/08/2024


São 4h20 do Dia 08.


Eu tive uma “boa noite” de sono e não acordei com enjoo. O plano de comer uma banana ao deitar parece ter funcionado. Estou bem descansado e disposto. Já tomei banho e agora vou para Sala de Meditação para a meditação das 4h30 da manhã.


São 6h30 do Dia 08.


Estou esperando tocar o sino para o café da manhã. Fiquei apenas uma hora na Sala de Meditação porque me senti com muito sono. Voltei para o quarto por volta de 5h30 e me entreguei ao sono.


Em determinado momento senti a Valéria ao meu lado, dentro do quarto, falando com a voz clara e firme: “Você quer que eu traga uma fatia de abacaxi para você?”. Foi bem claro. Aí despertei. Foi uma alucinação muito real.


São 10h40 do Dia 08.


Eu tenho sentido dores no pescoço nos últimos dias. Manter a posição ereta com essas dores tem sido difícil, mas tenho me esforçado genuinamente.


Estou sentindo muita falta de sol e calor. Na quase totalidade do tempo eu fico dentro da Sala de Meditação ou no quarto, que não entra sol, tem pouca luminosidade, tem muita umidade e faz frio. Saudade do calor, sol e tempo seco de Goiânia.


Aqui no retiro eu fico preso a uma rotina massacrante, com limites rígidos, tudo condicionado para me manter concentrado na mente, o tempo todo. Eu acho que nunca submeti minha mente a algo tão intenso, profundo e contínuo. Não existem estímulos externos e distrações. É tudo interno e angustiante. Esse mergulho profundo em velocidade acelerada e contínua da mente, provavelmente levou o meu cérebro a trabalhar com partes que eu nunca conscientemente havia tocado antes. É uma espécie de expansão da consciência. É por isso que fico tão cansado no dia a dia, sentindo dores de cabeça, enjoo e enxaqueca. Essa meditação não é um exercício de descanso, mas um crossfit mental intenso e desafiador.


A exigência de concentração me dilacera. Até agora, no Dia 08, ainda tenho dificuldade de me manter concentrado e meditando. A minha cabeça se distrai o tempo todo, fazendo emergir lembranças e memórias, as vezes muito vívidas, de coisas e fatos que eu nem lembrava mais. E eu me entrego a esse processo, prejudicando a meditação. Tem sido assim todos os dias e em todas as meditações.

A área de silêncio permanmente que circunda a Grande Sala de Meditação


Ao me sentir preso pelas regras, limites e imposições do retiro, eu vejo o valor da liberdade. Eu consigo expandir esse conceito para minha vida. Enquanto eu me mantenho preso aos meus preconceitos, as minhas verdades, aos meus medos, às minhas zonas de conforto e segurança, eu crio barreiras para minha real liberdade, para novas possibilidades, novos potenciais desconhecidos são ignorados, é impor limites a mim mesmo.


A Meditação Vipassana nos ensina a observar as sensações que sentimos em todas as partes do corpo, em uma contínua e interminável mudança, sem reagirmos ou tomarmos qualquer ação sobre elas. Devemos observar e intencionalmente controlar a nossa mente para reagir somente intencionalmente, com consciência.


O que levo de mais precioso do retiro foi aprender a ser mais observador de tudo que se passa dentro de mim, de minhas sensações diante do que acontece na minha vida, sem me deixar reagir, criar vieses ou atuar sem que eu tenha plena consciência e expansão do que estou sentindo.


Aprendi que a minha felicidade e a minha liberdade não dependem de nada do que está lá fora, e sim da forma como reajo e atuo diante das sensações que meu corpo e minha mente sentem, que mudam o tempo todo. Saio daqui como um observador de mim mesmo.


São 11h01 do Dia 08.


Chego no refeitório. O almoço é arroz integral, feijão preto, inhame com pedações de abobrinha e tomate. Estou com fome e o menu me caiu muito bem. O feijão estava bem gostoso. Acho que foi o dia que mais comi.


Estou sentado no meu local do refeitório. Fico observando o movimento dos homens para lá e para cá.


Observo que primeira pia do lavatório de pratos tem a torneira que sai mais água. Quanto mais à direita, mais as torneiras liberam água e tem o jato mais forte. Com a mente e tempos livres, a gente observa os detalhes.


São 12h50 do Dia 08.


Hoje almocei em 30 minutos. Uso o tempo restante do horário de descanso para tomar sol, olhar a mata, tentar ouvir algum som de pássaros. Pareço um réptil sob o sol: estou estático, só mexendo a cabeça e os olhos. Já estou há mais de uma hora em pé no mesmo lugar.


Está me batendo a sensação que costumo ter nos penúltimos dias de minhas caminhadas de longo curso. Sinto o entusiasmo e a satisfação de “missão cumprida” por estar chegando ao destino, de ver a superação da caminhada cada vez mais próxima. Sinto isso, misturado a alegria do meu retorno para a rotina repleta de coisas bacanas que poderei fazer. Minha mente está com saudade dessas coisas.


Graças a Deus o frio diminuiu. Dentro do quarto ainda está levemente frio, mas lá fora está bem agradável. Céu azul com poucas nuvens, sol bonito, sinalizando que os próximos dias serão ainda mais agradáveis.


São 14h30 do Dia 08.


Chego na Sala de Meditação para iniciar a meditação de firme determinação.


Vou no meu local, ajeito a cadeirinha, ponho duas almofadinhas para torná-la mais confortável. A sala vai enchendo. Em um ou dois minutos todos já estão em seus lugares. O Professor está lá na frente, imóvel.


Começa a meditação. A voz gravada repete: “Start again, start again”. Em seguida vem o silêncio.


Me concentro fortemente para aplicar a técnica da Meditação Vipassana. Não posso me mexer e nem abrir os olhos. Me sinto bem. Passo pelas partes do corpo e ponho foco na garganta. Me concentro ainda mais e volto a sentir o que eu já havia sentido em dias anteriores: o meu coração bater. Consigo sentir um pulsar na garganta, que acompanha o batimento do meu coração. Chego a ouvi-lo. É muito interessante essa sensação porque mostra que estou aprendendo e evoluindo na técnica.


No entanto, em dez ou quinze minutos a minha mente começa a voar. Ela se nega a continuar obediente. Infelizmente eu não consigo sentir sensações sutis em quase todas as partes do meu corpo, como o professor orienta. Isso me desestimula e cansa. A alegria e orgulho por sentir a pulsação do coração se evapora. A frustração incentiva e autoriza a minha mente para voar para onde desejar.


Então, conscientemente, libero geral. Aceito ocupar a minha mente e fugir da meditação. Faço uma visita mental por todas as casas que morei na minha vida, entrando em todos os cômodos, revendo mobiliário e detalhes até então esquecidos.


Termina a meditação de firme determinação e recebemos 5 minutos de intervalo para descanso.


Na volta, o Professor nos dá a opção de escolha de meditarmos no quarto ou continuarmos na Grande Sala. Cada um faz a sua escolha. Eu decido voltar ao quarto… para dormir.


São 16h30 do Dia 08.


Estou dormindo no quarto desde a hora que entrei.

Tem acontecido um fenômeno. De vez em quando, ao estar dormindo durante o dia, eu tenho a nítida sensação de me ouvir roncar. Ou seja, eu me ouço. Foram vários momentos de me ouvir roncando suavemente.


Eu tomo banho todos os dias sempre nos mesmos horários: por volta de 4h da manhã, quando acordo, e por volta de 17h30, depois da refeição. Acho que sou o único homem do Dormitório 2 que toma dois banhos por dia. Pelo que vejo, a maioria dos homens toma apenas 1 banho por dia e sempre por volta de meio-dia, que é o horário de almoço e descanso. Eles parecem ter razão, pois meio-dia é um horário bem munido de tempo (o intervalo de almoço/descanso vai de 11 às 13h) e temperatura do dia é bem agradável. Por outro lado, os meus banhos ocorrem em horários apertados e em horários de mais frio. Às 4hs da manhã é o pico do frio noturno. O fato da suíte ser todinha para mim, diferente da maioria dos homens no dormitório, me permite escolher o horário mais conveniente para mim. Reconheço que usar quartos e banheiros coletivos é bem mais desconfortável e limitante.


O meu quarto

Na entrada do meu quarto – Dormitório Masculino 02, Suite 02

Daqui a pouco vem o horário do lanche das 17h.


Sonho com uma sopa quentinha de legumes, com massinha de macarrão, regado com azeitinho e torradinhas com manteiga. Sonhar nos intervalos pode! Está autorizado!


Eu acho que se fosse servido salmorejo com presunto de parma no lanche da tarde, ainda assim haveria homens preferindo comer laranja e banana. Tem uns tipos estranhos aqui.


Chego no refeitório e estão lá elas: banana, laranja e maçã.



Dia 09 – Sentimentos confusos e conflitantes

30/08/2024


São 4h20 da manhã do Dia 09.


Hoje tive a melhor noite de toda jornada no retiro. Dormi muito bem, com sono restaurador. Me sinto descansado. Tomo um banho quentinho. O frio dentro do quarto está reduzido, quase na temperatura ideal. Tudo perfeito, associado que esse é o penúltimo dia. Agora irei para Sala de Meditação e iniciar a meditação das 4h30. Acho que nunca me senti tão bem-disposto para a primeira meditação como agora.


São 4h55 do Dia 09.


Voltei para o quarto. Havia somente mais 5 homens comigo na Sala. Desisti de continuar porque comecei a cochilar no meio da meditação. Aconteceu algumas vezes, o que vai contra o espírito do Vipassana, que é meditar com a mente alerta e atenta.


Me entrego ao sono dentro do quarto. Durmo até às 6h30 e vou para o café da manhã no refeitório. Penso que o importante é me manter descansado e esperto para as meditações de firme determinação que terei ao longo do dia.


São 7h00 da manhã do Dia 09.


Estou no quarto e já tomei o café da manhã. O tempo lá fora está lindo, com céu azul e sol nascendo. No entanto, dentro do quarto ainda sinto frio, lembrando a geladeira dos últimos dias. Fico cochilando até levantar para a meditação das 8 horas.


São 9h15 do Dia 09.


Já participei da meditação de firme determinação das 8 às 9hs.


Recebemos 5 minutos de descanso e voltamos para a Grande Sala para a sessão seguinte de meditação. O sol entra pelas janelas e invade o ambiente, deixando-o mais iluminado. Adoro o visual da Sala de Meditação nesse horário da manhã.


Através de áudio gravado, ouvimos novas instruções ditadas pelo próprio Senhor Goenka. Ele diz que é hora de expandirmos o exercício da meditação, não somente indo da cabeça aos pés e dos pés à cabeça, mas também da esquerda para direita, da direita para esquerda, de frente para trás, de trás para frente, atravessando todo o corpo, percorrendo dentro do corpo, em fluxo livre, procurando “tocar mentalmente” todas as partes do corpo, identificando sensações grosseiras (como calor, coceira etc.) e sensações sutis (como pulsação). Eu tenho uma grande dificuldade com isso. Eu tento, tento… insisto… me concentro, mas pouco avanço no exercício de observar sensações.


Insisto por quinze minutos, ou mais, e sinto que a minha mente começa a voar. Impossível controlá-la. Aceito, resignado, a sua independência. Tento ocupá-la com pensamentos aleatórios sobre a vida, coisas para fazer, coisas que fiz e outras distrações.


São 16h20 do Dia 09.


Estou na Sala de Meditação e o Professor libera todos para meditar no quarto. Alguns poucos decidem continuar na Sala de Meditação. Eu sou um dos primeiros a sair.


O dia lá fora está esplendoroso, céu azul, mata verde, clima maravilhoso e perfeito para uma caminhada e contemplação. Eu estou aqui preso na geladeira do quarto.  


Confesso que cansei de meditar. Não quero mais! Chega! Eu queria pegar a Valeria e sair da meditação agora, nesse minuto! Acabou a descoberta, acabou o prazer, acabou a busca! Acho que não vem mais nada de novo, por isso a falta de entusiasmo em continuar. Esta falta de motivação prejudica muito as minhas atividades aqui, especialmente a minha concentração.


Aqui no retiro eu tive muito tempo para pensar na vida, de todas as formas, em todos os tempos e com muita intensidade. Aqui eu agradeci, mais uma vez, por estar vivendo a vida que vivo agora. Agradeci por toda a trajetória de minha existência que me levou até o presente. Aqui eu me casei de novo com a Valeria, renovei meus votos, agradeci a benção por ter ao meu lado um ser humano especial, uma mulher maravilhosa, que busca, sonha, constrói o que eu também estou buscando: felicidade, amor, harmonia, paz, cumplicidade, compromisso mútuo de constituirmos uma vida conjunta com doação, gratidão, amor incondicional, generosidade, ética, moral e uma vida elevada espiritualmente, permitindo sermos nós mesmos, de forma genuína e autêntica.


Valéria é um anjo na minha vida. Todas as vezes que vivo momentos de grande reflexão sobre a minha vida, surge evidente a importância da Valéria para minha transformação e ressignificação de vida. Ela mudou a minha vida e continuo mudando a cada dia. Me sinto amado e querido.


Hoje é Dia 09. Amanhã será Dia 10! Acho que eles estão preparando uma surpresa no lanche das 17h. Sonho com cachorro-quente: pão francês fresquinho, salsicha hot-dog, molho de cebola e tomate, ketchup e mostarda.


São 17h00 do Dia 09.


Vou para o refeitório. Na subida da longa e interminável rampa para o refeitório, sinto cheiro de pipoca. É a minha mente me pregando uma peça.


Chego no refeitório e lá estão: laranja, banana e maçã.


Depois de todos os dias observando o grupo de homens, é fácil constatar que a grande maioria são homens na faixa de 30 e poucos anos. Eu devo ser o mais velho. Sou o único de cabelo branco. Tem um outro senhor de cabelos grisalhos, mas que está na faixa dos 50 aos 60 anos. Não vi nenhum adolescente por aqui. Deve haver uns 4 ou 5 homens na faixa dos 40.


São 21h15 do Dia 09.


Estou no quarto.


É final do Dia 09 e vivo sentimentos confusos e conflitantes. Estou feliz pelo retiro está terminando, afinal eu vivi intensamente a experiência e acho que consegui captar muito bem a técnica de Meditação Vipassana.


No entanto, ao sair daqui, voltarei para o mundo das demandas, dos compromissos, das expectativas e das obrigações. Dentro do retiro eu não vivo nada disso, sem demandas ou pressões, somente a meditação.


Eu sei que o retiro é apenas uma pequena janela de tempo de vida, mas ele cria um descompromisso e distanciamento da realidade externa, me colocando 100% do tempo voltado apenas para mim.


Vou sentir falta desse ambiente totalmente dedicado para o meu Eu.



Dia 10 – Anicca

31/08/2024


Finalmente ele chegou: o último dia!


Em vários momentos eu pensei que não viveria o último dia, que eu não chegaria até ele, porque simplesmente sairia antes e desistiria de tudo. Estou feliz por ter superado o desafio, por ter sido resiliente e por ter me dado a oportunidade de evoluir.


O curso foi impactante nos primeiros dias, teve um momento crucial e de grande intensidade que ocorreu comigo no Dia 04, quase desisti. No Dia 06 eu consegui ressignificar a minha experiência do retiro. Acho que as coisas só se fecharam e se conectaram a partir do Dia 07 ou, talvez, do Dia 08, quando então os aprendizados emergiram de forma mais clara, o corpo parecia já ter se moldado à rotina inegociável e a mente entendido que tudo dependia exclusivamente dela. Esse foi um processo contínuo e cumulativo. Creio que deve ser assim com todos os alunos. Não dá para pular etapas, tem que passar por cada fase como um vídeo game, mesmo que por alguns momentos o participante questione o valor e o propósito de determinadas coisas, exercícios e regras. Levo esse retiro para o resto da vida. Ele acelerou brutalmente o meu desenvolvimento pessoal.


Penso no meu ato de pegar a vassoura na tentativa de varrer a varanda da sala de meditação no Dia 06. Como fui idiota ao fazer isso. Um verdadeiro absurdo. Sinto vergonha do que eu fiz. Eu fui tão ignorante e insensível que eu fui varrer a varanda da Grande Sala no horário das entrevistas individuais que rolavam dentro da sala, quando o Professor e Alek estavam lá dentro e precisavam de concentração máxima. Era a minha mente tentando se ocupar, travestida de uma boa ação. Aquela atitude foi um tremendo erro, demonstrando que estava desconectado do propósito do retiro e perturbado com todo o processo.


Hoje é o último dia, portanto, é o dia do “Foda-se”. É o dia do “foda-se” para a agenda pesada. “Foda-se” para as meditações que ainda vou ter que fazer, “foda-se” para as obrigações, “foda-se” para a banana que vou ter que comer mais uma vez às 17h. “Foda-se” tudo. É o último dia. Amanhã estarei livre.


São 7h55 da manhã do Dia 10.


Chego na varanda da Sala de Meditação e vejo um grande e longo aviso na parede.


Os novos quadros de aviso no Dia 10, na varanda da Grande Sala de Meditação

O aviso mostra que a agenda de hoje será diferente da agenda dos dias anteriores. Fico feliz porque finalmente a rotina será quebrada. No entanto, fica claro que esse será um dia carregado de atividades, muito intenso, quando eu esperava que fosse mais relax. Vamos aprender novas técnicas de meditação. Vamos assistir duas palestras gravadas em vídeo, sendo uma delas a apresentação de Senhor Goenka em uma sessão na ONU. Estas serão as únicas palestras em vídeo de todo retiro.


Uma coisa me chama a atenção no aviso: “O nobre silêncio será mantido até às 10 horas da manhã.


A última meditação de firme meditação tem início rigorosamente às 8h00 da manhã.


Estão todos na Sala de Meditação, o sol atravessa as janelas e uma luz intensa invade o ambiente. Tudo parece brilhar. A minha mente está em festa por ser o último dia e absolutamente se nega a meditar. Indecentemente, transgrido as regras e abro os olhos durante longo tempo, olhando cada detalhe do ambiente, percorrendo tudo e todos, buscando memorizar tudo que vivi e aprendi ao longo desses dias. Tudo muito intenso e incrível.


São 9h05 da manhã do Dia 10.


Após o intervalo, todos voltamos para Sala de Meditação e tem início uma longa palestra gravada em áudio. Essa palestra dura aproximadamente 1 hora, quando é então é dito que o “nobre silêncio” está terminado a partir de agora. Somente na Sala de Meditação e nos arredores será preciso manter silêncio absoluto.


São 10h15 da manhã do Dia 10.


O Professor nos libera para meditarmos dentro dos quartos.


Os homens saem da Sala em silêncio, mas eles estão diferentes. Sinto que alguns deles estão loucos para falar. Perto do dormitório, um pequeno grupo de homens vai se formando, com alguns deles falando sem parar. Eu passo direto, dando um pequeno aceno com a cabeça. Vou ao bebedouro, encho a minha garrafa de água e vou para o quarto. Não sinto vontade de conversar. No entanto, a conversa do lado de fora não para. Dá para ouvir várias vozes falando ao mesmo tempo, se atropelando. Não ouço o tic-tac do relógio.


Tento me concentrar para encontrar um silêncio interior, independentemente do que rola lá fora. É o último dia e quero fazer dele ainda um dia sereno e silencioso, porém mais leve. Penso no que levo do retiro.


O maior aprendizado aqui foi aprender a observar as minhas sensações internas, sem reagir, apenas observá-las. Elas aparecem e desaparecem. É a lei da impermanência. A palavra em pali, que significa “impermanência”, é Anicca, que diz respeito à constante mutação de todas as coisas que compõe o universo.


Nas palestras do Senhor Goenka, ao longo de todos os dias de curso, ele repetiu a palavra “Anicca” inúmeras vezes durante as instruções. Isso foi uma marca do curso, algo que ficou carimbado na minha mente.

Até hoje eu repito “Anicca” em silêncio em algumas situações do meu cotidiano, especialmente as mais desagradáveis, como se fosse uma mensagem interna para minha consciência: “Calma, não reaja, apenas observe, vai passar. Tudo passa”.


Saio do retiro trazendo mais consciência para a minha mente inconsciente e impulsiva, com técnicas e recursos para que eu não responda imediatamente as minhas sensações conforme elas vão surgindo. Essa será uma busca constante daqui para frente.   


São 12h45 do Dia 10.


Volto para o quarto depois do almoço, que começou às 11h. Fiquei um tempão no refeitório.


Estou muito feliz porque no almoço de hoje homens e mulheres puderam se ver. A grande porta dentro do refeitório que isola homens e mulheres foi aberta. Pudemos ver uns aos outros. A grande varanda que circunda o refeitório também teve circulação liberada.


Finalmente, eu e Valéria nos encontramos, pudemos nos falar, mas ainda sem nos tocar. Ficamos conversando por quase uma hora, eufóricos porque temos uma tonelada de coisas para trocarmos. Ela está linda, bem entusiasmada com o retiro, orgulhosa de si mesma por conta de sua superação em todos os desafios que viveu ao longo dos dias. Achei ela mais magra.


Tomo um banho rápido e corro para a Sala de Vídeo para ouvir uma palestra em vídeo às 13h. É a primeira vez, em dias, que não fico lagarteando sob o sol durante o horário do almoço/descanso.


O vídeo apresenta o discurso do Senhor Goenka em Agosto/2000 na Assembleia Geral da ONU, aos participantes do Millenium World Peace Summit.


Eis a seguir o vídeo que assisti.




São 16h15 do Dia 10.


O gerente da área masculina, Alek, organiza uma pequena reunião com o grupo de homens para dividir as tarefas de limpeza do Centro que será realizada amanhã.


Estão todos felizes e soltos. A sisudez e o isolamento social já se foram. Muitos sorrisos e piadas rolam no meio da reunião leve, porém, como sempre no retiro, a atividade tem uma pauta rigorosa a ser seguida.


Amanhã, Dia 11, teremos que limpar todas as áreas do Centro Dhamma Santi, incluindo quartos, refeitório, cozinha, sala de meditação, as áreas comuns etc. Recebemos a missão de deixar o Centro mais limpo do que quando chegamos.


Nessa divisão de tarefas, eu fico na turma que limpará a Sala de Meditação, a sala das almofadas e a varanda do Centro.


A reunião liderada por Alek mostra uma nova versão sobre sua personalidade. Na verdade, tenho impressão que passo a conhecer um outro Alek, mais sorridente, bonachão, fazendo piadas e muito leve. Ele fala sobre sua história de vida.


Alek conta que saiu da Ucrânia por volta de 2013, vindo direto para o Brasil. Ele saiu do país porque perdeu tudo devido a guerra entre Rússia e Ucrânia e diz que as relações entre os dois países têm sido hostis há muito tempo. Alek trabalhava com desenvolvimento e gestão de pessoas, tinha um bom emprego, boa casa, mas a guerra o fez perder tudo. Ele viveu a guerra e, de certa forma, ainda vive. E ele repetiu: perdi tudo mesmo! Veio para o Brasil com uma mochila e mais nada. Ao longo de dez anos vive no Brasil, e ainda vive dependente dos outros. É fácil constatar que Alek é uma pessoa superinteligente, conhecedora do mundo, dócil, apesar do visual carrancudo ucraniano. Ele diz que perdeu mais de 35 quilos de peso por conta da meditação, contando que era uma pessoa doente, infeliz e amargurada. A meditação mudou tudo. Ele atua como voluntário de Meditação Vipassana há anos. Tem gratidão por todos que o ajudam com roupas, mantimentos ou qualquer coisa. Seu sorriso e olhar emanam doçura e paz. Enfim, essa história me cravou uma espada no coração porque passei todo o retiro julgando Alek como um militar e insensível ser humano, quando a realidade é o extremo oposto, sendo Alek uma pessoa maravilhosa, humana, de extrema generosidade e gratidão por tudo.


Ali, ouvindo Alek contando a sua história, a vergonha inunda meu coração, penso que preciso ser mais Alek na vida, que a história e toda a luz emanada por ele não foram em vão, porque aprendi com tudo isso. Essa história improvável, paralela ao retiro, me marcou muito.


São 17h00 do Dia 10.


Chego no refeitório para o lanche da tarde e tenho uma grande surpresa. Dessa vez não foi sonho, mas realidade.


Em vez do indefectível trio laranja+banana+maçã, fomos agraciados com uma gostosa sopa de ervilha, torradas e pipoca doce e salgada. Mais uma vez pude ver e falar com a Valéria, voltando aos poucos à realidade. Ainda sem contato físico.


O ambiente dentro do refeitório está elétrico.


A última meditação de hoje do retiro, de 18 às 19h, foi bem tranquila para mim. Eu estava bem, concentrado, relaxado, sabendo que era o momento final. Logo depois veio a palestra e a agenda do dia terminou às 20h15.


São 20h30 do Dia 10.


Volto para suíte e faço uma boa limpeza no quarto e banheiro, com desinfetante, detergente, escova e pano. Retiro as traças e pequeninas aranhas do teto do aposento. Dou uma varrida cuidadosa e passo pano de chão. Faço faxina geral no banheiro. Vou no lavatório coletivo do dormitório e lavo a cortina plástica do box do banheiro no tanque. A suíte fica um brinco. Com o trabalho realizado, vou ao meu prêmio merecido: um banho quentinho.



Dia 11 - A saída do "cativeiro"

01/09/2024


São 2h30 da madrugada.


Olho para o relógio não acreditando. Estou tentando dormir desde às 22h de ontem. Entre cochilos mal dormidos e dezenas de virada de cama, eu desisto da luta inglória de tentar dormir. Há mais de 30 minutos que tomei um remédio para dor de cabeça na vã esperança de abrandar a minha mente acelerada e ansiosa pela liberdade eminente.


O silêncio no Centro é ensurdecedor. Será que só eu estou acordado? Não há vestígio de qualquer som, com exceção do tic-tac do meu relógio, que continua incomodando o Centro e determinando o meu ritmo da vida.


Vou no banheiro pisando em ovos, imaginando que meus colegas de dormitório também estão fingindo que estão dormindo e muito cuidadosos em seus pensamentos, capazes de trai-los e num momento imprudente, produzir todos os sons possíveis e festivos pela saída eminente do cativeiro.


Tic-tac, tic-tac, tic-tac.


O sino deve tocar somente às 4h. Até lá me resta apenas me curvar a essa última meditação indesejada e não planejada. Pelo menos é uma meditação que posso fazer deitado, com olhos abertos e movimentos livres.


São 4h00 da manhã do Dia 11.


O sino toca, mas eu estou acordado desde ontem.


Abro um sorriso momentâneo, um sorriso que só os campeões produzem, imaginando levantar o troféu de uma prova bem cumprida, com tudo que uma grande jornada merece: sofrimento, dificuldade, o quase desistir, o poço profundo e o voo da fênix.


O silêncio continua total no Centro.  Tomo um banho quentinho e me sinto revigorado, ansioso para sair do Centro e ver o que aconteceu no mundo nos últimos 10 dias.


Olho para o relógio. O tempo parece desacelerado e os ponteiros do relógio andam mais lentamente.


Decido entregar esse último momento de silêncio e possibilidade de concentração disponível para fazer uma retrospectiva de tudo que vivi e aprendi. O retiro merece isso. O Senhor Goenka merece isso.


São 5h15 da manhã do Dia 11.


O sino toca avisando que é hora da única atividade rígida da agenda prevista para hoje.


Vamos para a Sala de Meditação, cruzando a trilha sob um céu azul celeste e muitos sons de pássaros. É o universo dizendo “bom dia”.


Na Sala de Meditação encontro um clima completamente diferente dos dias anteriores. Vejo sorrisos, cabeças levantadas, movimentos vigorosos, bocas falantes e roupas coloridas.


Como sempre, rola uma mensagem gravada em áudio. Difícil prestar atenção.


Entoamos alguns cânticos e ouvimos a última palestra em áudio, que tenta resumir o que vivemos ao longo do retiro, nos fortalecendo e nos incentivando na prática de Vipassana assim que deixarmos o Centro.


A agenda na Grande Sala termina por volta de 6h30.


Ao sair da Sala de Meditação, nos dispersamos. Alguns grupos já começam a limpeza do Centro, como o meu grupo, outros farão isso mais tarde, como o grupo da cozinha/refeitório que só poderá atuar depois de terminado o café da manhã.


São 8h00 da manhã do Dia 11.


Estamos todos no café da manhã: falantes, eufóricos e alegres. Rola uma sensação festiva no ar e uma energia muito boa. Pego o meu café e atravesso a porta que separa homens e mulheres. Vou para perto de Valéria. Não tem mais como ficarmos distantes. Valéria conversa com suas amigas recentes de retiro.  


No lado de fora do refeitório, na grande e longa varanda que abraça o ambiente, tem mesas com vários livros e documentos sobre a história do Vipassana, fotos e mensagens do Senhor Goenka e da operação do Vipassana ao redor do mundo, além outros temas paralelos. Cartazes também estão lá, com imagens. Matérias de jornais e revistas citam que a Meditação Vipassana surpreende o mundo tecnológico e acelerado que vivemos, pois surge como uma alternativa para ajudar o ser humano a ficar mais centrado em sua essência, permitindo uma profunda viagem interior, quando tudo parece nos levar para cada vez mais longe do nosso verdadeiro eu. Fico encantado com todo o material exposto e leio curioso.


A ampla varanda que circunda o refeitório e a recepção do Centro no Dia 11

Procuro Alek para conversar por alguns minutos. Peço uma foto com ele e ele demonstra ter gostado do pedido.  


Eu e Alek

Pego a Valéria e vamos conhecer o Centro todo. Agora tudo está livre para ser visitado. Vou nos dormitórios das mulheres e conheço a suíte da Valéria. Levo ela até o meu dormitório. Visitamos as celas de meditação, que parecem solitárias e são usadas exclusivamente pelos alunos antigos. Enfim, circulamos pelo Centro todo e faço muitas fotos. O dia está maravilhoso e o Centro tem ares de resort rústico, possibilitando paisagens maravilhosas.


A Grande Sala de Meditação vazia, no Dia 11

O refeitório masculino, na euforia do Café da Manhã do Dia 11

Por volta de 10h30 da manhã, entramos no carro e partimos.


Saímos do interior do Rio em direção a Goiânia, nossa casa. Foram 1.300 km percorridos em mais de 17 horas de viagem. Fizemos o trajeto em dois dias. Dormimos no meio do caminho porque não nos parecia conveniente fazer a viagem em uma pernada só. Passamos a viagem falando o tempo todo sobre o retiro… sem parar.



Dias depois…


Desde o final do retiro que tenho pensado muito em tudo que vivi e experimentei.


Foi a experiência mais desafiadora de minha vida, embora parte do desafio tenha sido amenizado pelas transgressões que cometi ao longo dos dias… e me pareceram muitas!


Roubei uma banana e trouxe para o quarto, tomei remédios para dores durante vários dias, li e reli todas as bulas de remédios e produtos que tinha. Também, por várias vezes, durante as meditações, aceitei conscientemente a minha cabeça voadora e abandonei a técnica de meditação para ocupar a minha mente com temas aleatórios, simplesmente para consumir tempo, sob a justificativa de abrandar a tortura e evitar as minhas enxaquecas. Em vários momentos vi meus colegas de retiro e busquei ver suas expressões faciais, o que é fora das regras, tentando imaginar cada um, dando nomes aleatórios a eles, julgando-os, olhando o que comiam e até pensavam. Teve o lance da limpeza do dormitório em um dia, em que eu não fui pego. Mas aí aconteceu o fato do dia seguinte, também com a vassoura, em que o Alek me pegou e me fulminou. Tudo para ocupar a minha mente indisciplinada. Acho que sou capaz de listar dezenas de pequenas transgressões que realizei o tempo todo, sempre com boas justificativas e razões para realizá-las. Desculpe por isso, Senhor Goenka. É uma vergonha, mas reconhecê-las e expô-las aqui é uma forma de honestidade comigo mesmo e mostrar que sou fraco e vulnerável. De nenhuma forma eu incentivo qualquer um a agir dessa maneira em um curso de meditação, mas foi a minha realidade.


Por outro lado, as transgressões se evaporam diante da incrível evolução que alcancei no controle do corpo e da mente ao longo do retiro, no entendimento e na certeza de que a verdadeira vida que vivemos está dentro de nós. Talvez esses dez dias representem uma evolução pessoal de anos, por conta do impacto e da intensidade que o retiro provoca. Não é por acaso que muitas pessoas voltam a fazer novos retiros, apesar do sofrimento e do desafio de superação que elas vivem no primeiro curso.  


Certamente que recomendo que todas as pessoas vivam uma experiência como essa, apesar de considerar que a grande maioria das pessoas que conheço não me parecem preparadas para essa empreitada. Por outro lado, essa questão de preparação é muito relativa, afinal o retiro é uma jornada pessoal, individual, única, onde cada um tem a sua própria vivência e evolução, encarando suas sombras, pesadelos e limitações. É subir um degrau por vez, na escada da vida, conforme sua capacidade e determinação. Com esse retiro, eu subi mais um pouquinho.


Chego ao final do retiro de forma bem leve e muito agradecido pela experiência, pela minha capacidade de superação e por tudo que vivi e aprendi. Também me sinto muito agradecido pela Valéria ter aceitado o desafio e ter vindo comigo. Mesmo estando ela longe e separada de mim durante todos os dias do retiro, eu a senti perto de mim e sempre comigo. Pensava: “Estamos juntos nessa”.



A grande lição


Nos últimos anos, a filosofia e a espiritualidade me ensinaram que a minha felicidade está dentro de mim, na forma como vejo e reajo aos fatos da vida. Tudo depende de como a minha mente trabalha diante de tudo que passo no dia a dia. Tenho tentado trabalhar isso nos últimos anos, mas sempre de forma suave, controlada e até um pouco teórica.


O Retiro de Meditação Vipassana me permitiu viver uma experiência real, intensa e massacrante desse processo. Ao ficar 10 dias confinado, em completo silêncio, me submetendo a dezenas de horas de meditação sem poder me movimentar, em posições de desconforto, em um ambiente sem qualquer estímulo, eu vivenciei de fato uma experiência extrema que levou o meu controle da mente ao limite. No retiro eu vivi na prática o conceito de controlar minhas reações diante de sensações intensamente perturbadoras, angustiantes e dolorosas.


Aqui eu entendi de fato o que é observar as sensações e não reagir a elas, ou seja, eu aprendi técnicas que me ajudam a dar mais consciência para minha mente inconsciente, me permitindo controlá-la melhor, purificando-a e elevando meu espírito e sabedoria.


Foi a experiência mais intensa da minha vida.

Obrigado, Senhor Goenka.


“Bhavatu Sabba Mangalam” – “Que todos os seres sejam felizes!”


Links da Vipassana Brasil:


Eu e Valéria na Porteira de Entrada do Dhamma Santi, no Dia 11


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