Eu fui dormir por volta de 21h30. Entrei na frágil barraca com a lanterna de cabeça. A noite estava muito escura, com tempo nublado e muito úmida. O terreno era lama pura, consequência da tempestade que inundou a minha barraca por completo.
As barracas, iluminadas internamente devido as lanternas, criavam um colorido deslumbrante no acampamento. O visual era bonito, contrastando com a dura realidade que eu sentia dentro de minha barraca.
Coloquei o isolante térmico em cima do plástico molhado do fundo da barraca, por cima o colchão inflável e depois o saco de dormir. Todos haviam ido para as suas barracas, criando o momento da “hora de dormir”. Porém, eu estava sem sono, excitado ainda pela experiência que eu estava vivendo e, mais ainda, pelo que ainda estava por vir.
Juro que eu tentei dormir: fechei os olhos, apaguei a lanterna, escuridão total, com o leve som do vento balançando a barraca e o odor de umidade fria dentro do cubículo.
Senti uma sensação de claustrofobia, um início de síndrome do pânico. A barraca pequena me sufocava. O desconforto era imenso, fui envolvido por uma espécie de falta de ar e agonia, então saí correndo da barraca para me resguardar em uma pequena choupana de palha que havia no local.
Acho que fiquei trinta minutos do lado de fora. Sozinho! Havia lama, mas já não chovia. Uma brisa agradável e fria me fazia bem. Apesar do céu noturno dominado pelas nuvens, já dava para ver algumas estrelas. Pensei na incrível oportunidade que estava vivendo e que ainda iria viver. Pensei melhor e concluí que a sensação de medo não era apenas pela barraca sufocante, mas pelos dias que estavam por vir.
Esta era a primeira noite da expedição ao Monte Roraima. Era impossível fechar os olhos e não pensar no desafio físico e psicológico de chegar ao topo do Monte de 2.800 metros de altitude.
Tudo parecia um sonho e ainda impossível. Enfim, indiscutivelmente, esta era a verdadeira razão da minha ansiedade, quase pânico. É como se Deus estivesse me dizendo o que estava à frente nos próximos dias: “Não será fácil, meu filho. Prepare-se”.
Ao descobrir o real motivo, cochichei comigo mesmo: “Estou preparado”.
Voltei para barraca. Aquele dia vivido já tinha sido muito intenso fisicamente. Eu precisava descansar para o dia seguinte, que seria ainda mais difícil. Voltei e dormi… lindamente, consciente de que um dos meus lobos internos estava me sabotando e que eu não deveria dar ouvidos para ele.
Este é um artigo muito longo (o mais longo que já escrevi), repleto de detalhes, imagens e vídeos. Sinto muito pelo excesso de informação, mas escrevo este artigo para mim. Algumas vezes, provavelmente, fui repetitivo. Esta é uma história que preciso registrar porque foi a maior aventura da minha vida.
Mais para frente, eu contarei detalhes do dia a dia da minha experiência na expedição ao Monte Roraima. Até hoje eu não acredito no que realizei e conquistei. Vejo as fotos e ainda me surpreendo, imaginando ter sido um sonho.
3 LIÇÕES DA MINHA EXPERIÊNCIA
Nos últimos dois dias da expedição, eu procurei elaborar os aprendizados mais importantes que me permitiram chegar lá. Espremendo tudo que vi e aprendi, eu cheguei em três lições que foram a base da minha jornada e conquista.
1ª. LIÇÃO: O IMPOSSÍVEL TORNA-SE POSSÍVEL QUANDO DIVIDIMOS O IMPOSSÍVEL EM VÁRIOS PEDAÇOS POSSÍVEIS
Para a maioria das pessoas (como eu!!), subir o Monte Roraima é algo quase impossível. Quando estamos no acampamento do Rio Tek (no final do primeiro dia da expedição, ainda longe da base do Monte) e olhamos para a majestade dos Montes Roraima e Kukenan, a gente não acredita ser capaz de chegar lá.
Aprendi com os guias da expedição o seguinte segredo: em vez de pensar na chegada ao topo do Monte Roraima, o lance é pensar no desafio de cada dia e não se preocupar com o ponto final da jornada. Ou seja, colocar foco total no objetivo do dia seguinte. Isso facilita as coisas e torna o desafio mais possível.
Em resumo: o impossível torna-se possível quando dividimos o impossível em vários pedaços possíveis.
2ª. LIÇÃO: AS COISAS MELHORAM DE REPENTE, QUANDO VOCÊ MENOS ESPERA, BASTA MANTER O FOCO, SER PERSEVERANTE E CULTIVAR UM OTIMISMO REALISTA
Tem momentos em que a jornada está tão difícil e tão exaustiva, que a vontade é desistir no meio do caminho. É como se a esperança daquela experiência extenuante se tornar maravilhosa desaparecesse por completo, torna-se algo impossível.
Aprendi que as coisas podem melhorar quando a gente menos espera, bastando mantermos o foco, sermos perseverantes e cultivarmos um otimismo realista.
Durante a expedição, um dos integrantes do grupo nos apresentou o paradoxo de Stockdale, que foi motivo de conversa em todos os momentos, especialmente naqueles períodos mais desafiadores.
O paradoxo de Stockdale afirma que somente encarar a vida como difícil e sem perspectiva de melhoria pode ser terrível para a motivação. No entanto, o otimismo cego também pode gerar uma frustração igualmente destruidora. Por isso, é preciso conviver com essas duas forças aparentemente antagônicas — o realismo e o otimismo — dentro de si para superar os desafios da vida.
Convivemos e praticamos o paradoxo de Stockdale durante toda a expedição.
3ª. LIÇÃO: RECONHECER NOSSOS LIMITES E PEDIR AJUDA, SEM FILTROS OU VERGONHA, NOS FORTALECE
A expedição ao Monte Roraima é um teste diário de superação, onde corpo e mente, quase sempre, jogam contra você.
Em determinado momento, no meio da expedição, já no topo do Monte Roraima, em uma das atividades, eu falei para o grupo que não seguiria adiante pois estava com muito receio de passar por um local de rochas que se precipitavam em um pequeno abismo.
Falei que estava com medo e inseguro. Reconheci publicamente minhas limitações, me vulnerabilizei e falei que iria esperá-los ali naquele local até eles retornarem daquele caminho. Imediatamente o grupo me encheu de mensagens de solidariedade e incentivo, suporte e ajuda física de alguns. A corrente de apoio criada me motivou a tentar a seguir adiante. E deu certo.
Ao longo da expedição, em alguns momentos, eu falei que estava cansado e o grupo parava para me apoiar. Outros agiam da mesma forma. Tomei consciência em não ultrapassar a linha imaginária do que era risco para mim, para meu bem-estar, confiança e segurança.
Ao longo da expedição adotei o Coronel Barbosa, líder militar aposentado, experiente, um dos integrantes da expedição, como meu Mentor. Ele aceitou o meu pedido e acompanhei-o quase o tempo todo nas longas caminhadas. Ele foi muito generoso, solícito, amigo e professor. Ou seja, eu pedi e ele aceitou me adotar. Muito obrigado!
Aprendi que reconhecer os limites e pedir ajuda, nos fortalece. Ter um mentor, estabelece uma referência e uma fonte de apoio e aconselhamento nos momentos mais difíceis.
O SONHO
Eu já conhecia, há muitos anos, um pouco da mística do Monte Roraima, mas o sonho de ir ao Monte surgiu ao assistir o filme da Disney “Up – Altas Aventuras”. Era apenas um sonho, como tantos outros, que muitas vezes colocamos num cantinho da mente e nunca mais acessamos.
Nos anos mais recentes, quando comecei a fazer trilhas de forma contínua, a possibilidade de participar de uma expedição ao Monte Roraima saiu do campo dos sonhos e entrou no campo dos desejos de realizações possíveis.
Ao descobrir que existem empresas especializadas nesta expedição, eu iniciei um trabalho de estudo e busca, até chegar nas agências que me proveram todos as necessidades e serviços para a realização desta conquista. Elas estão citadas no final do artigo, mas aqui já a agradeço a “Pés no Cerrado” e a “Monte Roraima Travel”. Well done!
O Monte Roraima é o 7º ponto mais alto do Brasil e se estende por 3 países: Brasil, Venezuela e Guiana. Ele integra o conjunto de montanhas chamadas de Tepui, com relevo raro em forma de mesa. Tepui é uma palavra de origem indígena pemon que significa Monte ou Montanha.
A única forma de subir o Monte Roraima é pela única “fenda” existente no paredão, chamada de “La Rampa”, que fica no lado da Venezuela. Por isso, para subir o Monte, é preciso ir para este país.
CHEGADA EM BOA VISTA
Cheguei em Boa Vista, capital de Roraima, no dia 05/09/2023, às 1h45 da madrugada. Dei entrada no hotel e cuidei logo de dormir. Acordei e tratei de bater perna na cidade. Me surpreendi com a cidade repleta de avenidas largas. Caminhei bastante, mesmo sob temperatura de 35C e sol forte.
DIÁRIO
O que você lerá daqui para frente tem origem nas minhas anotações ao longo da expedição. Dentro da mochila carreguei caderno e caneta. Sempre que possível, eu anotava impressões e fatos vividos, carregando com toques de emoção. Tipicamente escrevi a maior parte dos registros durante a noite, mas também fiz escritos durante alguns intervalos de descanso e relax em pleno sol. Com o passar dos dias, o caderno foi se transformando em diário, todo amassadinho, sujo e melado, como tinha que ser. O artigo apresenta tudo que anotei, acrescido de lembranças adicionais, porém me mantendo fiel ao que escrevi no “calor do momento”. Além disso, o artigo está repleto de pequenos vídeos que gravei ao longo da expedição, muitas vezes sendo prolixo e ou cometendo erros.
A EXPEDIÇÃO
No dia 06/09/23, por volta de 4h50 da manhã, o transporte enviado pela agência foi buscar o grupo no hotel. Eram dois carros Spin.
O grupo era formado por 10 pessoas, sendo 8 homens e 2 mulheres.
Com os dois carros lotados de gente, mochilas, malas e diversos materiais, partimos em direção à fronteira com Venezuela. Saímos sem o café da manhã, com a promessa de nos alimentarmos no meio da viagem.
No meio do trajeto, paramos em um café de estrada, chamado “Recanto da Paçoca”, que estava lotado. O lugar era bem simples, com serviço de qualidade questionável, banheiros péssimos, mas claramente era a única parada possível na viagem até a Venezuela. No entanto, tomei um bom café acompanhado de uma espécie de pão de queijo de tabuleiro.
VICENTE
No “Recanto da Paçoca”, me chamou a atenção a quantidade de carros tipo táxi carregados de gente, malas, trouxas e tudo que possamos imaginar.
Em um dos carros havia uma caixa típica de transporte de animais. O calor estava insuportável e a grande caixa estava em cima do carro. Se havia algum animal ali lá dentro, ele estava sufocado. Fiquei preocupado. Vi que não havia ninguém dentro do carro.
Em poucos minutos se aproximou um sujeito com aparentes 30 anos de idade, de sorriso farto, porém sem os dois dentes da frente, roupas muito simples e simpático. Perguntei sobre a caixa em cima do carro. Ele disse que ali estavam 4 cães, mas que eu não me preocupasse porque ele estava cuidando deles. Puxei conversa com ele.
Ele me contou que é venezuelano e que estava retornando com a família para Venezuela. Toda a vida dele estava naquele carro. Além dele, havia mais 4 adultos da família, 1 criança pequena, o motorista da cooperativa, 1 galinha, 1 pato, 1 gato e um isopor cheio de comida e bebida. O carro estava lotado por dentro e carregado por fora, especialmente no teto. Vicente sorria, mostrando gratidão por estar voltando para sua terra, com sua família e todas as suas coisas. Ele disse que a sua vida toda estava naquele carro.
Me arrependi de não ter feito uma foto com o Vicente. Seria formidável. Me restou apenas fazer a foto a seguir, registrando o carro com a sua mudança e a sua família escondida dentro do automóvel.
FRONTEIRA BRASIL-VENEZUELA
De Boa Vista até Pacaraima, cidade brasileira colada na fronteira com a Venezuela, foram 214 km em 4 horas de viagem, em uma estrada (BR-174) de asfalto de qualidade sofrível e perigosa, devido aos carros, ônibus e caminhões que ficavam cruzando a pista para fugir dos buracos.
Chegamos em Pacaraima por volta de 9 horas. Tivemos que carimbar o passaporte no posto da Polícia Federal do Brasil.
Mais adiante, poucos quilômetros depois, chegamos ao Posto de Imigração e Controle de Fronteira da Venezuela, onde meu passaporte foi carimbado, registrando a minha entrada na Venezuela.
Ainda na fronteira, trocamos de transporte. Deixamos os Spins e entramos em Toyotas 4×4. Todas as mochilas e cargas foram transferidas para os novos carros. Ali conhecemos nossos guias da expedição, que são venezuelanos e descendentes indígenas. Todos muito simpáticos, atenciosos, falando um bom portunhol e jovens. Foi um momento muito agradável.
VIAJANDO DE 4×4 NA VENEZUELA
Entrando na Venezuela, o péssimo asfalto brasileiro foi esquecido rapidamente. A Troncal-10 é uma estrada com asfalto bem conservado, quase um tapete.
Quase quinze quilômetros depois, chegamos na cidade de Santa Elena de Uairén, onde paramos para um xixi basicão e comprar água. O sol estava massacrante e a parada caiu muito bem para todos. Acho que ficamos parados por vinte minutos ou mais.
De lá, seguimos em asfalto até a localidade de San Francisco de Yuruani, em um percurso de 83 km (a partir da fronteira). Apesar da boa estrada, os 4×4 supercarregados não conseguiram desenvolver alta velocidade. Tive a sorte de viajar no banco da frente, ao lado do motorista, onde pude desfrutar de mais espaço para as pernas e ter melhor visão da paisagem.
Um pouco antes de San Francisco de Yuruani, os 4×4 saíram do asfalto para tomar a estrada que nos leva para um dos portais do Parque Nacional de Canaima. Até este ponto, deste a fronteira, já havíamos passado 2 horas de viagem dentro dos 4×4.
Paramos no posto de entrada para registro, que fica próximo da comunidade indígena Kumarakapay. Este posto é um ponto de controle turístico do Parque. Acho que gastamos ali uns 15 minutos.
Seguimos em estrada de terra por aproximadamente 30 km. Apesar da “curta” distância, levamos 1 hora para percorrê-la devido às condições da via. A estrada começa em condições razoáveis, mas depois se transforma em uma estrada com vários desníveis, pedras e valas. Ali entendi o motivo de estarmos em robustos 4×4.
Ao longo da viagem, o Monte Roraima vai surgindo no horizonte, um pouco indefinido e enevoado, devido a imensa distância, mas seu desenho é magnético, quase impossível deixar de se fixar nele. Confesso, ali rolou uma dose de ansiedade.
O nosso destino era a Aldeia Indígena de Paraitepuy, que é o real ponto de partida da expedição.
Chegamos em Paraitepuy às 12h30, com sol a pino.
1º DIA – 06/09/23
Apesar do primeiro dia ter se iniciado em Boa Vista às 5 horas da manhã, a sensação que senti quando cheguei em Paraitepuy é que a expedição verdadeiramente começava ali. O clima é diferente. O espírito é diferente. Ali criamos intimidade com os nossos guias, os carregadores e os indígenas que farão parte da nossa expedição. Todos muito alegres, simpáticos e servis. Eles realmente praticam o “espírito de servir”.
O clima leve, com abundância de sorrisos e boa vontade, gera uma sensação de confiança e cumplicidade, gerando rapidamente uma percepção de união e colaboração de todo o grupo. Existe uma alegria no ar de estarmos todos ali para uma aventura e conquista. Os guias, sabiamente, entendem como estabelecer este clima desde o início.
É fácil constatar, em poucos minutos, o quanto a comunidade de Paraitepuy é carente e humilde, e o quanto a subsistência daquela aldeia depende dos trilheiros que diariamente circulam por ali iniciando e terminando as expedições ao Monte. Quando contratamos guias e carregadores locais, nós estamos ajudando economicamente aquela comunidade. No entanto, é fácil também constatar que ali deveria haver mais infraestrutura, suporte e apoio de agentes governamentais, que geraria benefícios concretos para todos. Este não é um assunto que desejo explorar aqui, mas escrevo no intuito de registrar que foi impossível não pensar nisso durante todo o tempo que estive ali.
É na Aldeia de Paraitepuy que temos a primeira visão imponente do Monte Roraima e de seu irmão, o Monte Kukenan (Tepui Kukénan). Por estarem muito distantes de nós, eles surgem descoloridos, com tom azulado, criando um skyline que captura os olhos.
Assim que chegamos, os 4×4 foram descarregados. Nos dirigimos para a cabana de controle e vigilância do Parque (Puesto de Guarda), onde fornecemos nossos dados pessoais e assinamos o livro de controle do Parque registrando o início da nossa expedição.
Por volta de 13 horas rolou a primeira refeição da expedição. Como estávamos para partir em caminhada, nos foi servido um sanduichão e refresco, em uma das cabanas. Iríamos encarar sol forte, tempo quente, com muito esforço físico, por isso, sabiamente, não almoçamos um prato de comida pesado e tradicional. O objetivo era alimentar e colocar carboidrato para dentro.
Eram 13h40 quando iniciamos a caminhada da tarde, o primeiro trecho da aventura. Depois de concluída a expedição, entendi que este trecho foi o mais fácil. Porém, neste primeiro dia, onde músculos e cabeça ainda estão frios, esta caminhada me pareceu intensa e difícil.
Logo no início da caminhada, no segundo ou terceiro quilômetro, nós tivemos que enfrentar uma íngreme subida. O guia nos disse que esta subida é chamada de “prova do novato”, numa clara alusão de que aquela “pequena subida” é uma prova do que virá pela frente.
A tal “prova do novato” me faz parar para reajustar os tênis de caminhada. Afrouxei os cadarços e reapertei os calçados, na expectativa de me dar mais firmeza e segurança. Passei uma nova camada mais reforçada de protetor solar, ajeitei a bandana para esconder o pescoço do sol forte e bebi vários goles de água. Estava pronto para continuar.
Atravessamos a “Grande Savana” (Gran Sabana), que formam lindos campos de vegetação rasteira, que geram contrastes coloridos com o belo azul do céu. Caminhamos olhando os dois montes icônicos a nossa frente. Pelo menos o sol está em nossas costas, amenizando a incidência de raios solares. Não existe sombra ou abrigo.
A primeira sensação ao ver os montes distantes é de encantamento, pela majestade e por tudo que eles invocam. Depois surge uma sensação difícil de descrever, talvez de medo, de incredulidade de que vou conseguir alcançar o Monte Roraima e subir até o topo. Eu parei muitas vezes para ver o monte e lidar com meu ceticismo. Pensava: será que vou chegar lá e conseguir subir tudo aquilo?
Da Aldeia de Paraitepuy até o Acampamento do Rio Tek, caminhamos por 14 km em aproximadamente 4 horas. Saímos sob sol massacrante, depois o tempo fechou e choveu um pouco, depois o sol surgiu de novo, logo em seguida veio uma nova chuva e assim foi. Ali, no primeiro dia, descobri que a alternância do clima, de sol e chuva, de calor e frio, seria uma constante durante toda expedição.
Chegamos ao Acampamento do Rio Tek próximo das 18 horas, com o sol já escondido e a noite se aproximando. O tempo estava nublado, com chuva fina. As barracas individuais já estavam montadas, responsabilidade da equipe de apoio da expedição.
Larguei a mochila em uma barraca, peguei toalha, sabonete e roupas limpas e corri para o Rio Tek tomar um banho. A água corrente do rio tinha temperatura fria, mas suportável. Não deu para mergulhar porque as pedras eram muito escorregadias e me senti inseguro, mas consegui tomar um bom e refrescante banho. Os mosquitinhos chamados de puri puri me picavam, especialmente mordendo meus tornozelos e zunindo nas minhas orelhas.
Voltei para barraca. Já quase escuro, conheci melhor meu novo lar. Sensação de aperto. Lá dentro eu tinha a minha mochila de ataque (mochila mais leve, que me acompanhou em todo momento com material básico, pesando no total 4 ou 5kg), a mochila cargueira (com 12kg de material pessoal, que foi levada em toda expedição pelo Eliu, carregador que contratei), o saco de dormir, o colchão inflável, o isolante térmico e os bastões de caminhada.
Como organizar a barraca? O primeiro dia de barraca é sempre o mais difícil. A gente não sabe muito bem onde estão as coisas, como achar e reorganizar. Aliás, o “tira tudo” e o “põe tudo” nas mochilas foi uma atividade recorrente durante toda a expedição. Obviamente que, nos últimos dias, esse processo vai ficando mais fácil porque a gente cria determinadas rotinas, tem mais clareza do que vai precisar, mas o abre-fecha das mochilas foi repetido diariamente dezenas de vezes. Aqui tem um ponto adicional, como o Monte Roraima tem um clima muito úmido, nós fomos alertados para colocarmos tudo em sacos plásticos estanques para evitarmos que nossas roupas e pertences ficassem molhadas devido à umidade intensa. Portanto, o barulho de sacos plásticos também foi algo comum durante toda expedição.
A chuva, que estava fraca, apertou um pouco. Dentro da barraca as coisas não estavam boas. Havia água no piso plástico da barraca, enquanto alguns pingos caiam em partes diversas e, também, do teto. Em resumo: a barraca estava inundada. Cabe esclarecer que não havia problema com a barraca, que estava em excelentes condições. O problema foi o enorme volume de água que caía do céu, associado ao vento forte que espalhava água por todos os lados.
Com a parada momentânea da chuva, eu saí da barraca usando lanterna de cabeça e me posicionei em uma das cabanas de palhoça. Logo a chuva voltou. Em poucos minutos caiu o mundo. Choveu torrencialmente, com trovões e relâmpagos.
Fui para outra cabana, onde o pessoal de apoio estava fazendo nosso jantar. Lá me senti mais resguardado do vento e da chuva. Fiquei um bom tempo por lá conversando e me relacionando com todos, em um ambiente muito agradável e divertido. Acho que o jantar (arroz, frango e maionese) só foi servido quase 90 minutos depois.
Depois do delicioso jantar (frango, maionese e arroz), constatei que a área do acampamento estava toda inundada, com muita lama. Voltei para barraca. Ali vivi a experiência que contei no início deste artigo, uma sensação de quase pânico. Não foi nada legal. A barraca não segurou a chuva e ficou toda molhada por dentro, vazando água pelo teto e pela base plástica.
Resumo do 1º dia:
Viagem de carro de Boa Vista até fronteira com Venezuela – 214 km em 4 horas
Viagem de 4×4 da fronteira até Paraitepuy –113 km em 3 horas
Caminhada de Paraitepuy até Acampamento do Rio Tek – 14 Km em 4 horas
2º DIA – 07/09/23
Acordei bem, descansado. O amanhecer estava lindo.
A lama havia desaparecido e se tornado em piso sólido. As barracas coloridas, tingindo o verde da vegetação e o céu azul, com o Monte Kukenan ao longe, criavam um cartão postal lindíssimo.
Tomamos um café da manhã delicioso. Comemos domplin com ovo mexido. Aprendi com Manuel, o líder da expedição, a receita de domplin, que um pãozinho salgado bem gostoso e fácil de fazer
Objetivo do 2o. dia da expedição: caminharmos do Acampamento do Rio Tek até o Acampamento Base, com estimativa de realizarmos os 11 km em 6 ou 7 horas, subindo aproximadamente 1.000 metros.
Logo no início tivemos que atravessar o Rio Tek. E dois quilômetros adiante, foi a vez do Rio Kukenan. Em ambos, a recomendação foi tirar os calçados e realizar a travessia de meia, devido às pedras muito escorregadias. O primeiro rio foi bem fácil. Já o segundo rio exigiu a ajuda dos guias. Eles apontam quais pedras pisar, dão apoio e mãos, com a água na altura dos nossos joelhos. Exige bastante cuidado.
O caminho ao Acampamento Base foi árduo, com muitas subidas e descidas, sendo muitas vezes terrenos rochosos, com pedras soltas. Não considerei um caminho difícil, porque caminhamos lentamente, com muitas pausas. O desafio foi a chuva, que foi intensa em alguns momentos. Os pingos eram congelantes. O grupo se dispersava por várias vezes, respeitando o ritmo e a capacidade física de cada um. Os carregadores, que falarei mais adiante, formavam um grupo a parte, devido a agilidade e força que eles demonstravam.
Fiz muitas fotos neste caminho cruzando a Grande Savana. Os efeitos do céu, com os montes distantes, criavam belos cartões postais.
Como falei, uma boa parte do caminho foi sob chuva, as vezes com chuva intensa. Nestes momentos, o uso de capa de chuva foi a salvação da lavoura. Apesar de desconfortáveis, porque geram imenso calor corporal devido a sua impermeabilidade, a capa nos protege de nos ensoparmos completamente.
No meio do caminho, passamos por um local chamado Acampamento Militar (não tinha nada de militar. Na verdade, era uma pequena formação rochosa com poucas árvores), onde almoçamos sob chuva fina, aproveitando uma pequena brecha do tempo, já que vínhamos sob chuva pesada. Neste local surgiram muitos mosquitos e fui salvo pela tela mosquiteira de rosto que levei comigo.
Chegamos no Acampamento Base um pouco depois de 15h. O que chama atenção neste local é o gigantismo do paredão do Monte Roraima a nossa frente.
As barracas já estavam montadas. Escolhi uma, coloquei a minha mochila dentro, separei roupas limpas e toalha e partir para tentar tomar um banho.
No Acampamento Base não havia um rio, mas sim um pequeno córrego, cuja água vem do Monte Roraima. Este riacho era um pouco distante, em um local com acesso mais difícil e desconfortável, mas um “banho de caneca” era necessário. O riacho tinha uma água hiper gelada, por isso os nativos chamam de “geladeira”. Só deu para entrar com água até as canelas, que congelaram. Tomei banho de cuia e me dei por feliz.
O final de tarde no Acampamento Base foi super agradável. Desta vez não choveu. Conversamos muito, acompanhados de um providencial café, compartilhando nossas apreensões sobre o dia seguinte, o 3o dia da expedição, onde teremos que subir a “La Rampa”.
O céu limpo foi um presente de Deus. Nas primeiras horas da noite o céu ficou super estrelado. Coloquei o meu smartphone no modo manual de fotografia e fiz algumas fotos da Via Láctea que estava acima de nossas cabeças.
A madrugada na barraca foi bem difícil. O sereno forte e a temperatura baixa foram bem desagradáveis. Senti frio durante à noite. O terreno estava levemente inclinado e meu saco de dormir deslizava a todo momento. A noite senti meus pés “congelarem”, porque eles escorregaram para fora do isolante térmico por diversas vezes.
A primeira noite com a barraca inundada e o segundo dia com a chuva intensa ao longo da caminhada (entre o primeiro e segundo acampamentos), colocaram na minha cabeça que a experiência iria exigir muito mais equilíbrio psicológico e resiliência do que eu havia imaginado. Ou seja, mais do que o esforço externo, a superação seria interna, e demandante.
Ingenuamente, imaginei que os dias seguintes seriam piores em termos de pressão e esforço por conta dos desafios diante de nós. Depois descobri que não foi bem assim. No momento que descobri que o medo real estava dentro de minha cabeça, e que eu conseguia dominá-lo de alguma forma, tudo passou a ficar mais fácil.
Resumo do 2º dia
Caminhada do Acampamento do Rio Tek ao Acampamento Base – 11 km em 6h30, com subida de 1.000 metros.
3º DIA – 08/09/23
O dia nasceu lindo no Acampamento Base.
Havia dezenas de barracas denunciando que outros grupos, talvez mais dois grupos além do nosso, estava ocupando o acampamento.
Um pouco antes de partimos do Acampamento Base, eu fiz o meu primeiro “Número 2” da expedição, inaugurando o uso da casinha. Desculpe escrever sobre isso, mas todas as vitórias merecem ser contadas!
Olhar de onde estamos para o topo do Monte Roraima causa uma sensação de incapacidade e medo. O paredão assusta. Muitas e muitas vezes peguei meus companheiros e companheiras de jornada contemplando o colosso diante de nós.
O líder e guia da expedição, Manuel Benavides, juntou todos para uma reunião de planejamento e preparação, quando ele deu instruções básicas do plano a ser seguido para o dia.
Hoje é o dia de “ataque ao Monte”, ou seja, sairemos do Acampamento Base, entraremos pela floresta que circunda o imenso paredão do Monte, vamos subir pela fenda, também conhecida como “A Rampa” (La Rampa), para finalmente chegarmos no topo do Monte. Este percurso tem aproximadamente 4km, é muito íngreme, com elevação de 850 metros. A questão é que o trajeto não é continuamente para cima, existem subidas e descidas acentuadas, exigindo muito do trilheiro. O grupo precisa estar bem instruído e consciente das dificuldades, sabendo como proceder diante dos obstáculos.
Partimos do Acampamento Base às 8h30. O grupo estava energizado e confiante.
A subida foi é difícil e perigosa. Como disse, este não é um trajeto apenas de subida. É um sobe e desce o tempo todo. Rochas, raízes escorregadias, árvores caídas, pedras soltas, subidas intensas, terreno molhado e lamacento em alguns trechos. Por outro lado, uma boa parte da subida é realizada dentro da floresta, o que nos protege do sol impiedoso e nos refresca.
Os bastões foram fundamentais. Nas subidas eles atuavam com alavancas. Nas descidas como bengalas. Sem eles a minha performance e segurança seriam diferentes.
Em determinado momento, exatamente no meio do trajeto, passamos por uma pequena queda d´água, formando um pequenino córrego, com água gelada descendo do Monte, criando um ambiente mágico. Enchi de água gelada as minhas garrafas plásticas. Ali, naquele local, encostamos, finalmente, no paredão. Não tive como evitar, fui lá para colocar a mão no mágico paredão e me alimentar de sua energia.
Seguimos em frente, parando por diversas vezes para descansar e beber água. Em dois momentos comi barrinhas de cereal e rapadura. A rapadura dá energia, joga glicose no sangue, gerando disposição e vigor físico. A rapadura foi uma grande companheira nos momentos de fraqueza e cansaço.
O trajeto passa por dois pequenos mirantes, o que nos permite sentir a evolução da subida, permitindo ver o acampamento de onde saímos, cada vez mais distante.
Quando chegamos no segundo mirante, já na segunda metade do percurso, vislumbramos, com clareza, o famoso Paço das Lágrimas. Este ponto conhecido marca o início da parte mais íngreme do percurso, honrando o nome “A Rampa”. A partir deste ponto não tem mais floresta e tudo vira apenas rocha e pedras soltas. "Escalaminharemos" muito próximo do paredão e tudo ficará mais grandioso, perigoso e assustador, exigindo atenção redobrada e esforço físico adicional.
O Paço das Lágrimas (Paso de Las Lagrimas) ganhou este nome por estar sempre gotejando. É uma poeira molhada que cai do topo do paredão. Em dias de chuva, as gotas se transformam em cachoeira e a trilha vira corredeira. É um trecho super íngreme devido às rochas escorregadias e traiçoeiras.
Ver o Paço das Lágrimas, a partir do mirante, nos causa a sensação de que será impossível superar o aquele trecho. Já extenuados pelo esforço até aquele trecho, ficou claro que a parte mais difícil ainda estava a nossa frente.
Uma dor na minha coxa esquerda começou a surgir forte. Eu sentia a perna latejar. Meus companheiros falaram que isso é normal, devido ao esforço extremo. Neste momento o grupo já havia se dispersado. Praticamente havíamos nos separados em 3 subgrupos, organizados espontaneamente em função do passo de cada um e das paradas de respiro ao longo do caminho.
O Paço das Lágrimas é realmente o clímax da expedição. É difícil, desafiador, perigoso, exige cuidado e atenção, colaboração do grupo, paciência e lentidão. A gente se enrola um pouco, com a mochila nas costas, com os bastões nas mãos e tendo que andar de quatro para usar as mãos como apoio nas rochas, tudo ao mesmo tempo. Em determinados momentos, nos transformamos em felinos sobre rochas.
O trecho final até o topo foi realizado na base da superação física e psicológica… na fé e do “não parar para pensar muito no que está fazendo, apenas faz e segue em frente”. A Rampa exige muito do trilheiro.
A chegada no topo é uma sensação de vitória, mesmo esgotado e com as pernas bambas. Enquanto meus amigos se deitavam nas rochas, deixando esvair um evidente cansaço extremo, eu ainda estava tomado pelo entusiasmo de ter chegado lá.
Caminhei por aquela parte do cume, sobre as rochas de aparência extraterrestre, olhando o paredão do Monte e o horizonte infinito que se misturava com as nuvens. Eu estava extasiado com a aquela beleza. Pedi para fazerem fotos de mim diante daquele painel deslumbrante.
O grupo foi chegando lentamente no topo do Monte e logo estávamos juntos novamente. Alguns choravam, outros sorriam descontroladamente. Todos felizes. Todos vitoriosos. Todos emocionados.
Eram 13h30. Subir La Rampa até o topo, desde o Acampamento Base, nos exigiu 5 horas de caminhada e esforço. No entanto, naquele ponto do topo, ainda estávamos “longe” do nosso hotel no Monte Roraima. Para chegarmos lá, ainda teríamos que caminhar mais 3 ou 4 quilômetros, sob sol forte. Cabe dizer que o Monte fica muito próximo da linha do Equador e a 2.800 metros altitude. Ou seja, o sol se posiciona perpendicular às nossas cabeças e o ar é um pouco mais rarefeito devido a altitude. Portanto, o impacto do sol sobre nós é intenso.
Os primeiros passos no monte sagrado mostraram uma paisagem diferente, um pouco lunar, um pouco desértica, mas sem areia, apenas rochas amorfas, elevações, fendas, abismos e aridez. O céu tinha azul intenso e nuvens brancas. Flores e plantas diferentes davam algum colorido ao ambiente monocromático. O lugar inóspito é de “outro mundo”. Mais adiante falarei mais sobre isso.
Fica evidente que no topo do monte temos sempre que caminhar perto dos guias, caso contrário, vamos nos perder e isso será trágico. Como falei antes, o Monte Roraima é um tepui, uma elevação enorme com formato de mesa, onde o topo tem mais de 30 quilômetros quadrados, ou seja, é enorme. Por outro lado, em poucos minutos, descobrimos que o topo está longe de ser algo plano. Caminhar no topo será um sobe-desce constante, passando por rochas, fendas, elevações e vales de todos os tipos.
Caminhamos um pouco mais de 3 km até o nosso “hotel”, que nos tomou mais de 1h30 de zigue-zague por paisagens muito loucas! O “hotel” era distante e se chamava “Balbina”. Chegamos no “hotel” por volta de 16 horas. Todos cansados, suados, mas entusiasmados e impactados pela paisagem do Monte e…. famintos!
“Hotel” no Monte Roraima não é propriamente o hotel que nós conhecemos. “Hotéis” no Monte são grutas ou cavernas que permitem a acomodação de barracas, com alguma proteção de chuva e vento, que são constantes no topo do tepui. A questão é que estes espaços não são propriamente planos e de fácil acesso, muitas vezes exige caminhar e pular sobre rochas e terrenos alagados. Além disso, as barracas, muitas vezes, ficam distantes uma das outras, para melhor se aproveitarem dos vãos criados pelas grutas e rochas gigantes.
Nosso hotel fica dentro de uma elevação de rochas gigantes, de todos os tamanhos, o que exige grande esforço para locomoção dentro do espaço, que é totalmente desuniforme, com significativos desníveis, rampas perigosas, pedras desniveladas e perigosas.
Por ter sido um dos primeiros a chegar no “hotel Balbina”, eu tive o privilégio de escolher uma barraca antes da maioria dos integrantes do grupo, por isso escolhi uma barraca “bacana” (entenderam o bacana entre aspas?) para mim. Aliás, eu caminhei quase o tempo todo no pelotão da frente do grupo neste dia. Ao chegar primeiro, eu pude escolher uma barraca em boa posição.
O “bacana” da barraca foi por ela estar em terreno plano, sob uma gruta bem iluminada e colada a um espaço que chamamos depois de “terraço do acampamento”, por ser um local onde o grupo ficava reunido por longas horas. Me senti em posição privilegiada. Por outro lado, o teto da gruta era baixo e me exigia entrar e sair da barraca agachado, em uma posição bastante desconfortável, quase caindo na barraca ao lado. Por algumas vezes, nos dias seguintes, eu bati com a cabeça na rocha do teto da gruta, machucando minha “careca” várias vezes. Acho que levei comigo uma “marquinha” do Monte no meu cucuruco.
O finalzinho da tarde foi usado para organizar o interior da barraca, para o arruma-arruma das mochilas, para descansar e para tomar banho com lenço umedecido. Sem chance de banho com água! Não havia água perto do hotel… qualquer tipo de água. Os guias saíam com panelas e vasilhames para buscar água nos arredores de nossa localidade. Nos dias seguintes, esta dependência de água dentro do hotel trazida pelos guias, virou rotina.
Pedimos para mudar a posição da casinha do cocô. Ela estava longe, em um lugar que exigiria excepcional capacidade de equilíbrio de andar sobre rochas. Imaginamos o perigo que seria em um momento de chuva e neblina.
A noite veio trazendo a escuridão. Como havia nuvens, o céu estava negro, que misturado a negritude das rochas, fazia tudo ficar muito escuro. Em algum momento entrou uma neblina que prejudicou ainda mais a visibilidade. As lanternas de cabeça tornaram-se nossas amigas.
Perto das 20 horas jantamos uma comida divina: macarrão com carne moída. Tudo muito saboroso e bem temperado. Eu repeti esta refeição. Foi a única vez na expedição que eu pedi para repetir uma refeição inteira.
A comida foi farta durante toda expedição, onde podíamos solicitar repetições quantas vezes desejássemos. Tudo era feito com carinho e em quantidade. A cozinha provisória montada na gruta era surreal, a localização doida e as condições mínimas.
Nada no Monte Roraima é definitivo, ou seja, cada expedição tem que levar e trazer tudo de volta. Isso significa cozinha, barracas, materiais etc. Inclusive o cocô que fazemos no Monte, que ficam em saquinhos, tem que voltar conosco para fora do Parque.
Fez muito frio à noite, mas do lado de fora da barraca. Dentro dela, eu não senti frio e me senti protegido. Foi uma noite muito boa, sem stress, pânico ou ansiedade, apesar de todo ambiente estranho.
Acordei no meio da madrugada para fazer xixi e vi um céu magnífico de lua e estrelas. As nuvens e neblina já haviam se dissipado. Fiquei um bom tempo acordado dentro da barraca, durante a madrugada, pensando na vida, agradecendo a Deus por estar vivendo aquela experiência e ter a vida que tenho hoje. Foi um momento de conversar com Deus, deitado relaxadamente em uma das obras primas de sua criação.
Resumo do 3º dia.
Ataque ao Monte Roraima- Escalaminhada do Acampamento Base ao topo do Monte (La Rampa) – 4 km – 5 hs – subida de 850 metros
Caminhada do topo até o Hotel Balbina – entre 3 e 4 km, em 1h30
4º DIA – 09/09/23
Hoje acordei muito descansado e renovado.
O plano do dia inclui uma caminhada de aproximadamente 12 km e contempla as atrações tradicionais do Monte: Mirante La Ventana, Mirante do Abismo, Vale dos Cristais, as Jacuzzis e El Maverick.
Saímos do hotel por volta de 8h30, logo após o café da manhã, sob um céu de sol acanhado e muito frio.
No início da caminhada, passamos pela famosa Pedra da Tartaruga. Lá fizemos o registro divertido a seguir, simulando uma cena do filme “Up – Altas Aventuras”.
O primeiro ponto que chegamos foi o Mirante La Ventana. Ele é especial porque oferece uma visão privilegiada do horizonte, da Grande Savana e do Monte Kukenan. Muitos afirmam que este é o mirante mais sensacional do Monte. Enfrentamos muita neblina e nuvens, prejudicando a visibilidade. Mesmo assim foi lindo e inesquecível. Fizemos boas fotos.
O segundo ponto visitado foi o Mirante do Abismo, que tem vista para o lado da Guiana. Chegamos em um momento de intensas nuvens e neblina, com poucas chances de ver a grandiosidade do mirante. Mesmo assim deu para curtir e sentir a energia do local.
Seguimos caminhada em direção as Jacuzzis.
As Jacuzzis são piscinas naturais de água transparente, cercadas por formações rochosas e forradas no fundo com cristais e quartzos brancos brilhantes, que formam reflexos cintilantes. Tudo ficou mais encantador porque chegamos nas jacuzzis com sol quente e gostoso. Tomei um banho delicioso, o melhor de toda expedição. Foi tudo tão sensacional, que curti aquilo tudo como se estivesse em um spa.
O pessoal de apoio da expedição fez feijoada, que foi servida na área das jacuzzis. Como pode aquele pessoal levar cozinha, comida, utensílios etc, para aquele local? Achei incrível! A feijoada estava deliciosa. Não repeti para evitar ficar com muita comida no estômago porque ainda iríamos caminhar muito, mas juro que estava com vontade de mais um prato.
A experiência da jacuzzi associada ao almoço de feijoada, fez daquele momento um dos supermomentos da expedição.
De lá, seguimos para o Vale dos Cristais.
O Vale dos Cristais é incrível. Andamos sobre milhares de pequenos cristais de quartzo brilhantes em formatos completamente diversos. Muitos cristais estão soltos no solo, mas muitos outros estão incrustados nas rochas. Há vários locais no Monte Roraima repleto de cristais, o Vale talvez seja onde eles aparecem de forma mais volumosa, criando um ambiente de energia e beleza.
De lá, seguimos para El Maverick, uma gigantesca formação rochosa que é o ponto culminante do Monte Roraima. Parte do grupo resolveu não ir, optando por retornar ao hotel, mas metade do grupo seguiu para o Maverick.
Subir o Maverick exigiu esforço e disposição. Fomos abençoados com tempo aberto.
Do alto do Maverick vislumbramos paisagens incríveis, para o interior do Monte, que nos permitiu ver a imensidão daquele monte sagrado e inóspito, bem como para o horizonte, onde víamos as nuvens e a Grande Savana. Lá eu consegui registrar imagens maravilhosas.
Andar no Monte Roraima cria uma sensação de algo fora do planeta. As paisagens mudam, parecem existir microambientes (microssistemas) diferentes.
Chegamos no nosso hotel por volta de 16 horas.
O final da tarde e início da noite foi de muito papo e diversão de todo o grupo. O descer do sol foi bem bonito, mas o frio chegou intenso no hotel.
Protegido do frio, encapuzado e com luvas, passei todo o tempo junto com o grupo no “terraço do hotel”. Me sentia cansado, mas bem fisicamente.
Fomos para dentro das barracas por volta de 20 horas, por conta da intensa neblina e da chuva, depois de jantarmos sopa de macarrão, legumes e apresuntado.
Eu sentia o dorso das minhas mãos um pouco quente. Constatei que as mãos tinham sofrido insolação, por conta da posição causada pelo uso diário e constante dos bastões.
Por volta de 21 horas caiu uma chuva torrencial em toda região do Hotel Balbina, mas eu estou super bem protegido dentro da barraca, que está sob uma imensa rocha, apesar da chuva cair bem pertinho dela. O forte som da água caindo das rochas assusta, mas é gostoso.
Nada assustou mais do que a aranha que encontrei dentro da barraca, mas eu tive a iniciativa de esmagar a aranha com vontade, numa ação de desespero e medo. Desculpe por isso, mas não deu para salvar o “pequeno” animal.
Nesta noite eu vi o céu mais estrelado da minha vida. Nunca havia visto nada igual. Foi quando levantei para fazer xixi por volta de 1h30 da manhã. Fiquei o máximo de tempo que consegui fora da barraca, até frio o intenso se tornar insuportável.
Resumo do 4º dia.Caminhada no Monte Roraima:
La Ventana, Vale dos Cristais, Jacuzzis e Maverick – total de 12 km em 7h30.
5º DIA – 10/09/23
Acordei às 6h30. Senti frio durante a madrugada. Não foi uma noite confortável. Fez muito frio, estimo algo ao redor de 5C. Ninguém sabe dizer ao certo.
Logo que levantei, fui fazer xixi e depois fazer o “Número. 2” na casinha. Foi o meu segundo “Número 2” da expedição. Tudo funcionou na casinha. Coloquei o saco na cadeira (o saco não se encaixa perfeitamente na cadeira). Dentro do saco plástico tem cal. A gente não pode fazer o Número 1 no saco, apenas o Número 2. Depois de se limpar com papel higiênico (o papel deve ser jogado no saco), devemos fechar bem o saco e colocá-lo do lado de fora da “casinha”.
Olhei as minhas mãos e confirmei: os dorsos, de ambas as mãos, estavam bem queimados, vermelhos, com manchas, como se bolhas fossem surgir. A partir daquele momento decidi aplicar protetor solar de hora e hora nos locais avermelhados.
Um quati surgiu andando no hotel e causou alvoroço. Todos querendo fazer uma foto dele. Certamente ele estava lá atrás de alimento.
Hoje saímos do hotel às 8 horas, logo depois do café da manhã, que foi ovos mexidos com 4 cream crackers (este foi o café da manhã mais fraco da expedição, mas saí me sentindo alimentado).
O programa previa uma caminhada à Tríplice Fronteira. Por unanimidade, o grupo optou por outro programa. A nova agenda previa a caminhada ao Mirante dos Guacharos, Jardim das Fadas e o Cânion de Los Guacharos.
Este percurso estimava um total de 7 km a serem percorridos.
Na saída do nosso hotel eu saí vestindo luvas e casaco, pois estava muito frio. Como queimei muito o dorso das mãos, eu passei muito protetor solar nas mãos para protegê-las. Eu estava de luvas e acreditava que pudesse passar uma boa parte do tempo com elas. Ledo engano, em dez minutos minhas mãos estavam suadas, as luvas estavam fazendo minhas mãos pegarem fogo. Abandonei as luvas e besuntei protetor solar mais uma vez.
Como sempre, o caminho foi repleto de subidas e descidas sobre as rochas, o tempo todo. Joelhos e tornozelos foram testados mais uma vez, exigindo muito esforço físico e equilíbrio. Seguindo o conselho que recebi, optei por usar somente um bastão que foi fundamental para o fazer o tripé ao caminhar, deixando a outra mão livre para apoio em pedras e rochas.
O Mirante dos Guacharos foi espetacular porque pegamos o céu e horizonte limpos. Passamos um bom tempo naquele lugar porque o visual era incrível. Dali tínhamos uma boa visão do Monte Kukenan, do Acampamento Base e do horizonte infinito.
Seguindo a caminhada, passamos por formações maravilhosas que se misturavam com a flora local, criando cenários de outro planeta.
No caminho para o Jardim das Fadas, a primeira atração, tivemos que passar por um local perigoso, fiquei com receio de continuar e anunciei a minha desistência. Mas o pessoal me incentivou e me ajudou a passar por aquele pequeno abismo. Este foi um dos aprendizados citados no início deste artigo.
Chegamos no Jardim das Fadas, um lugar lindo, com água brotando de rochas e criando quedas de água limpa e cristalina.
De lá seguimos para o Cânion de Los Guacharos. A fenda, enorme e misteriosa, é um ambiente perfeito para os guacharos, uma espécie de ave que habita as bordas das grutas e cavernas.
Do alto da fenda é possível ver as enormes paredes entrecortadas do cânion e ouvir o som gritado pelas aves, que ecoam pelas rochas. Alguns do grupo se penduraram (com segurança) na borda das rochas na tentativa de fotografar os animais e ouvir melhor os sons estranhos.
Monte Roraima continuou me surpreendendo e apresentando paisagens deslumbrantes. O grupo imprimia um ritmo de caminhada que exigia a minha atenção e acompanhamento, mas a minha real vontade era ter mais tempo de contemplação e curtição dos locais que estávamos atravessando.
Voltamos para o hotel e chegamos por volta de 13h30. Teríamos o resto do dia para ficar no hotel e descansar. Tivemos sorte porque toda manhã foi de tempo bom e sol luminoso.
Minhas mãos estavam muito queimadas e o protetor solar continuou sendo aplicado generosamente de hora em hora.
Almoçamos macarrão com atum. Estava delicioso e nós, famintos.
Logo depois do almoço, tomei um banho dentro da barraca… com lenços umedecidos!
Passamos a tarde toda no hotel, descansando e conversando. À tarde, o sol foi desaparecendo e a neblina chegando, lentamente, o frio veio junto. O tempo fechou. Rolou café e pipoca.
Por volta de 17h veio uma chuva leve, com muito vento. A sensação de frio aumentou consideravelmente.
Durante estes dias, por várias vezes, pensei sobre o que me levou a viver esta experiência de passar este tempo vivendo sob um desconforto constante.
Frio, cansaço físico, stress por andar nas rochas com desníveis constantes, riscos e perigo para todos os lados, falta de banho e higiene, medo, sensação de impotência e incapacidade, dormir em barraca sob chão duro, caminhar distâncias enormes com altitude desafiadora. Por que se submeter a isso? O que está por trás disso tudo?
Jantamos às 19h30 e fomos dormir logo em seguida por conta do intenso frio.
Resumo do 5º dia:
Caminhada no Monte Roraima: Mirante dos Guacharos, Jardim das Fadas e o Cânion Los Guarachos – total de 7 km em 5h30.
6º DIA – 11/09/23
Dormi mal a noite passada. Acordei várias vezes. Por duas vezes, levantei para fazer xixi enfrentando um vento congelante. Sair e entrar na barraca é um sacrifício devido ao frio intenso e à posição da barraca. Mais uma vez, acho que a temperatura chegou a 5C.
Acordei às 4h50. Chegou o dia de descermos o Monte Roraima. Na minha cabeça, surgia sempre a imagem de La Rampa. Descer a fenda do Monte Roraima me parecia um desafio igual ou até mais difícil do que a subida.
Arrumei as mochilas, separando roupas limpas e sujas, o que levaria comigo na mochila de ataque e o que iria na mochila cargueira com o carregador. Este processo me deu trabalho, ponderando muito o que eu levaria na minha mochila para evitar pesos adicionais desnecessários.
Dentro da mochila de ataque comigo havia capa de chuva, remédios, protetor solar, uma camisa extra, power bank para o smartphone, duas garrafas de água, papel higiênico, sacos plásticos, par extra de meias (para usar na travessia dos rios) etc.
Tomamos o café da manhã (mingau de aveia com corn flakes) às 6h00.
Deu tempo para fazer o meu terceiro e último “Número 2” da expedição. Peço desculpas mais uma vez por registrar isso, mas isto também faz parte da história da minha experiência.
O céu estava completamente limpo, sem nuvens no céu, o que era um lindo prenúncio de uma dia espetacular!!
Saímos do hotel às 6h30, respeitando o horário combinado e com todos motivados para um dia que prometia ser intenso e desafiador.
Caminhamos 4km no topo do Monte, por aproximadamente 1h45. Minhas mãos estavam enxarcadas de protetor solar. Eu passava o creme de hora em hora durante todo o trajeto com medo das queimaduras piorarem. Tentei até usar luvas na caminhada, mas o calor e a sensação de falta de firmeza ao segurar os bastões me perturbavam.
Chegamos no ponto do topo que iniciava a descida às 7h45 da manhã.
A descida do Monte nos consumiu 4h15 de caminhada pesada. Foram 4 km, com desnível de 850 metros. La Rampa é um desafio. Como era previsto, a parte mais difícil foi atravessar o Paço das Lágrimas. Mais uma vez fomos abençoados com bom tempo, o que ajudou demais.
A descida foi extenuante e forçou meus joelhos e, no meu caso, principalmente, os tornozelos. Ter equipamentos de qualidade como tênis de caminhada reforçado e bastões foi fundamental para a minha performance e segurança.
Ao longo da descida, o grupo foi se dividindo espontaneamente em 3 subgrupos, conforme o “passo de cada um”, portanto os subgrupos foram chegando em tempos diferentes no Acampamento Base. Acho que o primeiro subgrupo chegou 40 minutos antes do último.
No trecho final de La Rampa, um pedaço de rocha se soltou do paredão, fazendo um barulho forte e nos assustamos.
Chegamos no Acampamento Base por volta de 12h.
Chegar no Acampamento Base é um alívio. Na verdade, eu acho que é mais do que isso. Atrevo a dizer que ali, exatamente ali no Acampamento Base, vivemos uma sensação de vitória, de realização e a certeza da conquista pessoal do Monte Roraima. O trecho ainda a ser percorrido, do Acampamento Base até o ponto final da expedição, parecia ser estupidamente mais fácil perante tudo que já havíamos realizado até aquele ponto. Ou seja, o mais desafiador já havia sido vencido. O sentimento de conquista e realização inundou o coração de todo grupo. Havia ali, naquele momento, uma leveza e alegria contagiantes. Éramos todos “conquistadores” do monte sagrado. Olhar o paredão nos fazia encher o peito de autoestima e orgulho pela superação de nossos maiores medos e incertezas.
Era 12h20 no Acampamento Base quando nos foi servido risoto de frango com milho e ervilha. Delicioso! Mais uma vez, tive vontade de repetir, mas controlei minha vontade pois ainda caminharíamos várias horas até o destino daquele dia: o Acampamento do Rio Tek.
Por volta de 12h40 iniciamos a caminhada da tarde. O tempo estava ótimo, ensolarado, com algumas nuvens e uma brisa leve. O sol estava de frente, na nossa cara. Eu continuei, como vinha fazendo desde o amanhecer, besuntando as minhas mãos com protetor solar.
Mais uma vez o grupo andou em subgrupos, conforme a vitalidade e disposição de cada um. Estávamos cansados, mas vitoriosos.
A previsão era andarmos 11 km até o Acampamento do Rio Tek.
Na maior parte do tempo eu caminhei em silêncio, olhando repetidamente a beleza da Grande Savana, os imensos campos verdes com o céu tingido pelo branco das nuvens. De vez em quando eu parava e olhava para trás, contemplando os montes sagrados, na tentativa de guardar na memória aquele momento inesquecível.