Caminho de Cora Coralina, 300km, 10 dias cruzando o cerrado
- Mauro Segura
- há 2 horas
- 33 min de leitura

Estávamos caminhando na estrada de terra, eu e Valdir, em algum lugar entre a Serra de Caxambu e Radiolândia. Já passava de meio-dia e o sol massacrante não dava trégua. Muito calor e muita poeira por conta da terra vermelha. Em cima, um indecente céu azul turquesa sem nuvens. Embaixo, um verde extravagante do raro cerrado preservado, nos cercando por todos os lados.
Identificamos uma caminhonete ao longe, lá atrás, vindo em nossa direção, deixando um rastro vermelho pela terra fina levantada. Eu caminhava e olhava para trás, na expectativa da aproximação do carro.
Quando a caminhonete se aproximou, seguimos o ritual de sempre: encostamos no canto da estrada, próximo da cerca de arame farpado que, costumeiramente, delimita as propriedades rurais e ficamos parados, em segurança, para deixar a caminhonete passar. Mas ela não passou. A caminhonete empoeirada reduziu a velocidade e emparelhou com a gente.
O carro parou, ainda ligado, janela aberta, um sujeito simpático na direção, com chapéu enterrado na cabeça e sorriso ensaiado, perguntou:
- Vocês estão caminhando para onde?
Respondemos que estávamos indo para a cidade de Goiás. Pensei que ele ia oferecer carona.
Ele retrucou:
- Uai, isso é muito longe! De onde vocês estão vindo?
Respondemos que estávamos vindo de Corumbá de Goiás, o que significava já termos andado aproximadamente 120 quilômetros.
Então, com um sorriso largo e genuíno no rosto, exclamou:
- Nossa mãe do céu! Vocês gostam mesmo de caminhar, hein?
Foi impossível não embarcarmos naquela prosa.
Sabe aquela vontade de conversar mais e descobrir quem era aquele senhor que emanava boa energia? Descobrimos que aquele era o Seu Vandinho: um senhor simpático, contador de histórias e morador da região de Radiolândia. Ele não nos ofereceu carona, e nem queríamos.
E foi assim o Caminho todo, conhecendo e interagindo com pessoas especiais como o Seu Vandinho, a Cira, o Nereu, a Dona Gilma, o Seu José Carlos, a Dona Odeth, o Valdir, a Dona Wanderleia, o Cowboy, Dona Sarah, Roni e Rose, Maurinho e Trindade, e vários outros e outras.

O que é o Caminho de Cora Coralina
Esta é a terceira vez que faço o Caminho de Cora Coralina, portanto já tenho uma certa intimidade com o Caminho.
O Caminho de Cora Coralina é uma trilha de longo curso de aproximadamente 300 km, auto guiável (sem necessidade de guia), localizada em Goiás, interligando cidades históricas e povoados, passando por paisagens do cerrado, parques estaduais, antigas rotas coloniais, grandes fazendas e plantações. Ele faz parte da Rede Brasileira de Trilhas de Longo Curso.
O percurso, que pode ser feito a pé ou de bicicleta, homenageia a poetisa Cora Coralina, e tem como moldura a cultura, a história e a natureza da região. Trechos de suas poesias podem ser encontradas em placas ao longo do caminho, o que é bem legal e divertido (falo sobre isso mais a frente).
O Caminho passa por várias cidades e povoados em Goiás. As cidades são: Corumbá de Goiás, Cocalzinho de Goiás, Pirenópolis, São Francisco de Goiás, Jaraguá, Itaguari, Itaberaí e Cidade de Goiás. Alguns dos povoados no percurso são: Caxambu, Radiolândia, Vila Aparecida, Alvelândia, Palestina, São Benedito, Calcilândia e Ferreiro.
A trilha atravessa o bioma do cerrado, conectando diversas unidades de conservação, como o Parque Estadual da Serra dos Pireneus, o Parque Estadual da Serra de Jaraguá e o Parque Estadual da Serra Dourada. O percurso é marcado por muitos trechos de estradas vicinais de terra, sendo que algumas delas eram antigas rotas do ouro. Originalmente, o caminho completo foi fracionado em 13 trechos (ainda está dessa forma no site do caminho), porém ele pode ser dividido e percorrido em diferentes configurações e logística.
Os detalhes do caminho, seus trechos, sinalização, hospedagem, facilidades, operadores, e muito mais, podem ser encontrados no site da Associação do Caminho de Cora Coralina.

Desafios e Belezas do Caminho de Cora Coralina
Os principais desafios: sol, secura e logística
Este caminho, definitivamente, não é um caminho fácil. Enquanto o Caminho da Fé tem como maior desafio a altimetria, o Caminho de Cora Coralina apresenta como maior desafio a tríade: sol e calor intenso, secura do ar e carência de suporte ao peregrino (falta de pontos de apoio).
O cerrado não é para qualquer um. Para fazer o Caminho de Cora há duas necessidades básicas: bom preparo físico e bom planejamento. Se pensa em fazer o caminho sozinho ou sem carro de apoio, então a preparação merece mais atenção.

Por favor não pense que fazer este caminho seja algo difícil ou extraordinário, muito menos que seja algo somente para superatletas. Não é!!!! Apenas faço o ponto da importância de um bom planejamento para evitar surpresas, que sempre ocorrem.
As distâncias são grandes entre as cidades/povoados. É preciso levar muita água e alguma comida na mochila. A terra vermelha empoeirada, sob sol forte, queima a sola dos pés, impregna as meias e os tênis, e incendeia a cabeça. A secura, sempre presente, é extrema em alguns períodos do ano. As vezes caminhamos por quilômetros sem sombra. Falta hospedagem adequada em alguns locais. O suporte ao peregrino é escasso pois existem poucos pontos de apoio. Banheiros não existem, apenas nos estabelecimentos comerciais nos povoados e cidades. Esses são pontos que chamam atenção no Caminho.

As recompensas: paisagens, poesias e sabores
Por outro lado, o Caminho de Cora contrapõe as dificuldades com paisagens deslumbrantes, diversidade de ambientes e natureza abundante em seus 300 km.
Ao longo do caminho, principalmente na segunda metade do percurso, de Jaraguá à Cidade de Goiás, encontramos várias placas com poemas de Cora Coralina, que fazem o caminhante parar para ler, refletir, sendo que algumas vezes encontramos bancos ao lado das placas, permitindo um breve descanso. Aí o Caminho entrega o seu melhor.
Manter a cabeça levantada é o segredo para o envolvimento e conexão com a natureza.
Se o caminhante andar de cabeça levantada, especialmente nos meses de setembro e outubro, vai observar cajuzinho, manga, cagaita, jabuticaba, goiaba e outras frutas durante toda a caminhada. Vai poder pegar no pé e comer ao longo do caminho. Também vai ver tucanos, gaviões, araras, seriemas, maritacas e bandos de periquitos.

Paz e silêncio reinam soberanos no Caminho, com exceção da entrada e saída das maiores cidades, como Jaraguá, Pirenópolis e Itaberaí, onde o movimento de pessoas e veículos emolduram o ambiente urbano.
A plenitude gerada pelo andar em silêncio no caminho, ouvindo apenas os próprios passos tocando na terra e o cantar dos pássaros, é difícil de descrever. Só fazendo mesmo para entender o que isso significa.”

Por vezes, o caminhante vai ter que fugir dos cães das propriedades rurais ao longo do caminho, que adoram o frescor de um tornozelo novo. Porém, a grande maioria surge com o rabinho balançando, querendo mais festa do que briga.
Vai se amedrontar também com centenas de bois e vacas, as vezes muito próximos, livres e sem cerca, que nos encaram de forma ameaçadora e até tentam se aproximar mais, o que sempre me perturba muito.
Vai atravessar enormes fazendas com grandes rebanhos e enormes plantações, especialmente de soja, evidenciando que o cerrado natural e intocável, lentamente, vai sendo engolido pelo homem. Cabe dizer que as plantações criam cenários lindos de contraste de cores e visão infinita. Eu, particularmente, aprecio muito cruzar as áreas de grandes culturas.

Vai se apaixonar pelo povo da região, simpático, com suas histórias, simplicidade e hospitalidade. Todos são adoradores de prosa solta. Todos gostam de receber bem os caminhantes, mostrando que Goiás é um estado acolhedor e plural. Eu moro em Goiânia há quase cinco anos e vivo no dia a dia o que estou falando.
Também vai se apaixonar pela comida, muitas vezes feita em fogão a lenha e deliciosa. Incluindo pão de queijo, biscoito de queijo e empadão goiano.

Boas referências sobre o Caminho de Cora Coralina
Eu não pretendo tornar este artigo um documento orientativo, com dicas preciosas para os desejosos de fazer o caminho. Aqui quero contar, apenas, a minha experiência e percepção pessoal, bem como incluir um monte de fotos, porque o Caminho de Cora Coralina é antes de tudo, uma experiência visual.
Também destaco o que considero imperdível no Caminho. Mais à frente vou apresentar pontos de destaque já conhecidos, mas também pessoas e experiências que me foram marcantes.
Existem muitos depoimentos na web com dicas e orientações, bem mais completas do que eu conseguiria apresentar aqui. Recomendo muito o próprio site do Caminho, já apontado anteriormente.
Recomendo dois vídeos do “Vida de Mochila” no Youtube. São muito bons. O primeiro tem imagens espetaculares e o segundo responde muitas dúvidas sobre o caminho. Porém, cabe dizer, que o Youtube está repleto de depoimentos de caminhantes descrevendo suas experiências, alguns muito bons.
Vídeo “Um mochileiro no Caminho de Cora Coralina – Documentário completo” – Vida de Mochila
Vídeo “Assista antes de fazer o Caminho de Cora Coralina” – Vida de Mochila
Para leitura, encontrei dois bons textos, com boas narrativas, dicas e imagens.
“Caminho de Cora Coralina – ‘Guia’ dos 300km no cerrado goiano” do Mochilão Sabático
“Caminho de Cora Coralina – De Corumbá de Goiás à Cidade de Goiás” do “A vida é feita de momentos”

Planejando a Jornada: Sozinho ou em Grupo?
O propósito de caminhar: sozinho versus em grupo
Este artigo aqui fala sobre a minha experiência em outubro de 2025, que fiz com um pequeno grupo. Éramos somente 5 pessoas, com um carro de apoio. Porém cabe dizer, que eu já fiz este mesmo caminho sozinho e sem suporte.
Fazer um caminho sozinho ou em grupo carrega muitas diferenças. Sempre falo para as pessoas que eu prefiro fazer sozinho, por diversas razões. Já escrevi sobre isso detalhadamente em meu blog, as vantagens e desvantagens, no artigo “Caminho da Fé: uma caminhada solitária de 317 km”, que recomendo muito a leitura. Considero que este artigo está no Top 3 artigos de todo o blog. Dentro do artigo existe um pequeno capítulo chamado “Caminhar sozinho ou em grupo?”
Fazer um caminho em grupo, significa se ajustar às características do grupo. Aqui vou dar dois exemplos.
De forma geral, ao fazer um caminho, as pessoas demonstram ansiedade com o ponto de chegada de cada dia. Cria-se uma expectativa de horário, que passa a ser perseguido como um objetivo. Portanto, o local de chegada de cada trecho a ser percorrido torna-se prioridade do dia e estabelece o ritmo da caminhada.
Por outro lado, quando eu faço um caminho sozinho, eu normalmente fico muito relaxado em relação à chegada. Meu foco e prazer é o caminho em si. É o durante, e não o final. Por diversas vezes, eu paro para descansar, para contemplar uma paisagem, sentir um vento refrescante, curtir uma sombra generosa, observar um bando de pássaros pousados em uma árvore, fazer um pequeno desvio do caminho para conhecer algo que não estava no plano original e por aí vai. Obviamente que isso acumula atrasos e empurra o horário de chegada para frente. Eu não me preocupo com isso, mas quando estamos em grupo, quase sempre isso vira um problema. As pessoas tendem a não parar para apreciar momentos aleatórios, efêmeros e desimportantes. As paradas, normalmente, dizem respeito somente a hidratação ou comer algo. São poucos minutos produtivos e focados para o que precisa ser feito e, então, pé na estrada novamente.

Outra questão que sempre surge é alimentação, especialmente almoço. Em um grupo, a maioria se mostra preocupada com o almoço, de chegar no ponto de chegada do dia em tempo de saborear um almoço em horário decente. Isso faz as pessoas acelerarem e se preocuparem em demasia com a evolução e performance da caminhada, contribuindo ainda mais para evitar paradas aleatórias.
Quando eu caminho sozinho, eu nunca me preocupo com o almoço. Levo bastante água na mochila e alguns alimentos para me dar energia, como bananada, rapadura, alguma coisa salgada, e nada mais. Me contento enormemente com uma “almojanta” quando eu chegar no ponto de chegada, ou seja, uma única refeição diária que funciona como almoço e jantar combinados, quase sempre no final da tarde, antes de anoitecer. Esse é o meu esquema ideal: uma única refeição, normalmente gigante, que daria inveja a qualquer neandertal. Em Goiás tem a invenção do século, chamada “Jantinha”, que conto mais a frente, que surge perfeita para o caminhante de Cora.
Portanto, existem muitas questões entre fazer um caminho sozinho ou em grupo.
Conforme escrevi naquele artigo já citado, é muito mais seguro fazer um caminho em um grupo do que sozinho. Isso é inquestionável e deve ser considerado.
No caminho que relato aqui no artigo, eu me senti um sortudo abençoado porque o grupo era excepcional: pessoas de bem, generosas, inteligentes, bem-humoradas e empáticas. Todas de bem com a vida. Todas encarando o caminho como uma experiência de desenvolvimento pessoal, conexão com a natureza e com o superior. Isso faz tudo ficar mais prazeroso e leve. A química do grupo foi evidente.

O grupo
O grupo inicial era formado por 5 pessoas: eu, o casal Patrícia e Valdir, Rui e Alberto. No meio do caminho, conforme já previsto, Alberto nos deixou e entrou Marcio Villar. Portanto, o grupo final caminhante se manteve com 5 pessoas.
Houve um sexto participante do grupo, que foi o Nicco, da "Pés do Cerrado", suporte e condutor do carro de apoio ao longo de todo o Caminho, nos provendo água, frutas e outros recursos preciosos. Também foi o fotógrafo em vários momentos. No entanto, cabe dizer que ele não caminhou conosco. Ele faz parte da equipe do “Pés no Cerrado”, que foi a operadora que planejou e prestou apoio ao grupo (contato e detalhes no final do artigo).
Todos do grupo são de Goiânia, com exceção de Marcio, que é do Rio de Janeiro. Todos estão acima dos 50 anos de idade, o que cria um elo comum interessante. Eu tenho 65 anos. Rui, o mais velho do grupo, tem 68 anos. O “garoto” era Valdir, com 55 anos.

Nenhum do grupo é atleta, com exceção do Marcio Villar, ultramaratonista conhecido e repleto de recordes. Portanto, cada um se preparou fisicamente como podia para a empreitada e Marcio teve que segurar a “onda” para seguir no passo do grupo.
Na maioria das vezes, o grupo caminhou unido. Em alguns momentos o grupo se espaçou, com dezenas ou poucas centenas de metros de distância entre os caminhantes. Em algumas situações a conversa rolou solta e animada, em várias outras caminhamos em silêncio absoluto, contemplativos e solitários, em fila indiana. Algumas vezes nos dividimos em subgrupos, dois pra lá, dois pra cá e um sozinho. As configurações foram diversas. Houve momentos em que um ou outro pegou carona no carro de apoio, especialmente no caso de cansaço extremo. Eu consegui não usar o carro em nenhum momento por conta de cansaço.
Em algumas situações, procurando evitar caminharmos em rodovias de asfalto e sem acostamento, nós usamos o carro de apoio. A principal preocupação foi com a segurança. Nas estradas de Goiás é comum a passagem de enormes carretas, algumas com duas unidades de carga, parecidas com um trem e, quase sempre, o acostamento é bem reduzido.

O Melhor do Caminho: trechos e experiências imperdíveis
Os trechos que mais gostei
Dos 300km percorridos, eu gostei muito de duas partes, que são completamente diferentes.
A primeira parte vai de Cocalzinho a Radiolândia, o que inclui 3 trechos do Caminho, com passagem pela Serra dos Pireneus, por Pirenópolis e Serra do Caxambu. Isso dá aproximadamente 70km e contém o relevo mais acentuado de todo caminho. Essa parte inclui a subida e a descida da Serra dos Pireneus, o Pico dos Pireneus, o Refúgio Avalon, atravessa Pirenópolis que é uma cidade linda, passa pela Serra do Caxambu (que exige muito do caminhante porque é uma trilha na mata), para finalmente chegar na Pousada Jardim das Flores em Radiolândia.


A Serra do Pireneus está dentro do Parque Estadual da Serra dos Pireneus e é um ecossistema protegido, formado basicamente pelo chamado “cerrado rupestre”. Já a Serra de Caxambu apresenta uma mata primária bem preservada e até fechada, em alguns trechos.
A segunda parte que mais gostei incorpora as últimas duas “pernas” do Caminho: vai de São Benedito à Cidade de Goiás. Aqui o caminhante atravessa grandes plantações, grandes campos, passa pelas corujas, a mística Cruz do Chico Mineiro, algumas pequenas e leves serras, lindos visuais até a chegada no final oficial do caminho, Cidade Goiás e Casa Museu de Cora Coralina. Gostei demais dessa parte, pois exige menos esforço físico, já que são trechos quase sempre planos, com poucos aclives e declives, porém com vários atrativos e muita contemplação.


Pontos altos e experiências únicas
A minha experiência mostrou que existem coisas imperdíveis no Caminho, que tornam a experiência mais especial, tornam-se boas lembranças e cria na gente um desejo de voltar. A lista a seguir está em ordem aleatória.
Pico dos Pireneus
Na minha opinião, atravessar a Serra dos Pireneus e não fazer um pequeno desvio para subir o Pico dos Pireneus, é perder um dos pontos mais bacanas do caminho. Em todas as vezes que fiz o Caminho de Cora, eu fui ao pico. É um programa imperdível. O desvio representa apenas 2,5km no percurso (ida e volta).
O Pico dos Pireneus é o ponto mais alto da Serra dos Pireneus, com 1.380 metros de altitude. Isso pode soar como algo difícil de chegar lá, mas não se iluda, já estando na serra, o esforço não é grande para se chegar ao Pico. Na verdade, é muito aprazível. A subida ao pico é de apenas 200 metros de altimetria, talvez menos. Subir a serra é que o maior desafio.
No topo há uma capelinha dedicada à Santíssima Trindade, que é bonita, mas o grande show acontece quando olhamos para baixo e temos uma vista de 360 graus de toda a Serra do Pireneus ao redor de nós, com uma vegetação totalmente preservada, o cerrado rupestre, verde abundante, as “cidades” de pedra, o Morro Cabeludo e várias cidades surgindo no horizonte distante (Pirenópolis, Corumbá, Cocalzinho etc.), quase infinito. Tudo isso cercado de um vento que nunca para. Todas as vezes que subi no Pico, o ventilador de Deus estava ligado na potência máxima.
A Serra dos Pireneus está dentro do Parque Estadual dos Pirineus (PEP). Visite o bonito site do PEP.



Cruz de Chico Mineiro na região de Ferreiro
A Cruz do Chico Mineiro é um dos principais marcos históricos no Caminho de Cora Coralina. Ela marca o local onde o lendário tropeiro e boiadeiro Chico Mineiro foi morto em uma emboscada.
Não se sabe muito bem os detalhes, mas Chico Mineiro realmente existiu. No entanto, sua história é contada há décadas e isso foi criando tinturas, alegorias poéticas transformando-se em lendas diversas sobre o acontecido. Essa história foi contada e imortalizada na famosa canção "Chico Mineiro" de Tonico e Tinoco. Como diz a música, o local da emboscada fica no “sertão de Goiás”, no meio da mata, antes do Povoado de Ferreiro e perto das ruínas do Arraial de Ouro Fino.
Não foi a primeira vez que estive ao lado da cruz. A mística cruz tem algo diferente, porque ao nos aproximarmos dela, com respeito e em silêncio, rola uma energia diferente. A placa no local, ao lado da cruz, conta a história e nos joga dentro do contexto, fazendo a gente imaginar os fatos e nos teletransportando para uma imaginária cena da emboscada. Entretanto, ao olharmos em volta, não vemos nada além da pequena clareira, a mata ao redor, o silêncio constante e respeitoso, sem pássaros, apenas a brisa acalentadora nos acariciando e nos jogando em outra dimensão.


Serra de Jaraguá
Como já dito antes, o Caminho de Cora Coralina inclui várias serras. Vale muito destacar a Serra de Jaraguá. Desta vez eu não subi a serra, como fiz em outras vezes que fiz o Caminho. Isso foi planejado previamente.
A Serra de Jaraguá é linda e imperdível, porém a subida e descida exigem muito do caminhante. É duro, viu? A subida tem início na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que é uma igrejinha simples, toda branca e muito linda. O local é aprazível, possibilita lindas fotos, dá vontade de ficar mais tempo na pequena pracinha em frente da igreja, mas falta sombra.
Da igreja até a Rampa de Voo-Livre de Jaraguá, que fica no topo da serra, são quase 5 km de caminhada, com altimetria de mais de 350 metros, com terra fina vermelha enchendo o tênis e com vegetação predominantemente de cerrado, como árvores de pequeno porte, tortuosas e com cascas grossas. Ou seja, sombra é algo raro.
O presente no final da empreitada é uma das vistas mais deslumbrantes de todo o Caminho (talvez seja a mais impactante). Enfim, vale muito a pena! E, depois, vem a descida.


As corujas entre Itaguari e Calcilândia
Tem uma determinada parte do Caminho, um pouco antes e um pouco depois de São Benedito, que o caminhante recebe uma companhia inesperada.
Elas ficam pousadas no topo das estacas das cercas, empinadas, elegantes, soberanas, com ar de superioridade e donas da região. O corpo ereto, parece mostrar indiferença, mas a cabeça gira para todos os lados, acompanhando o caminhante com atenção, cada passo dado, denunciando que aquela área tem dono... ou dona.
São as corujas, sempre lindas, com olhos magnéticos que parecem nos hipnotizar. Elas tomam contam de seus ninhos e filhotes, que estão em buracos no chão de terra, feitos por elas próprias. É por isso que elas são chamadas de corujas buraqueiras.
É impossível ficar indiferente diante de tanta beleza e imponência. É interessante se aproximar lentamente para ver as corujas levantando voo com suas lindas asas. Porém, o legal mesmo, é deixá-las quietas, calmas e tranquilas de que não vamos perturbá-las, muito menos mexer com seus filhotes corujinhas.


Cagaita, caju e jabuticaba
Fiz o Caminho na segunda quinzena de outubro que, sem dúvida, traz nuances únicas para a experiência. Uma das principais diz respeito às frutas, que muitas vezes podemos pegar no pé livremente e de forma abundante. Os melhores meses para isso são setembro e outubro, portanto eu peguei o finalzinho da temporada.
A fruta que mais se oferece no Caminho, desavergonhadamente, é o caju. Porém, a que mais me encantou foi a cagaita.
Eu nunca tinha ouvido falar em cagaita. O nome não favorece, é feio, mas a frutinha é saborosa. É pequenina, com casca amarelo esverdeada, macia, a polpa é bem suculenta, com sabor é super agradável, levemente ácida.
Ao longo do caminho, a diversão era pegar no pé e continuar a caminhada comendo. Preocupado com possíveis efeitos, pesquisei na internet e descobri que a cagaita deve ser consumida observando alguns cuidados. Isso porque a fruta, se consumida aquecida pelo sol e em grande quantidade, tem um forte efeito laxativo. Bem, essa é uma das explicações populares para o nome “cagaita”. De minha parte, eu não sofri desse problema. Até porque eu também consumi muita jabuticaba no caminho, que é famosa por ser uma fruta que prende e que ajuda a regular o intestino. Enfim, o segredo foi a combinação de cagaita e jabuticaba, dupla imbatível deliciosa do cerrado.





Refúgio Avalon na chegada à Pirenópolis
Um pouco antes de surgir à cidade de Pirenópolis, nós passamos pelo Refúgio Avalon, que se torna um oásis depois da intensa e extenuante descida da Serra dos Pireneus.
Na Avalon, o papo com o dono, Seu José Carlos, é imperdível. É um contador de histórias e nos recebe com um refresco cortesia de capim limão, supergelado e delicioso. Te garanto, você não faz ideia do que este refresco representa depois de mais de uma dezena de quilômetros caminhando sob sol massacrante.
Na Avalon é possível almoçar, suas especialidades são galinha caipira e panelinha. Mas não é só isso, tem banho no Rio das Almas e cachoeira, vários lugares para descansar com redes, sombra abundante, floresta densa e preservada, e vários outros atrativos no Refúgio. O desafio é encontrar tempo para conhecer tudo. Não é por acaso que o nome é Refúgio. Em resumo, Avalon é uma das paradas obrigatórias no Caminho de Cora Coralina.


Hospedagem na Cira em Radiolândia
A Pousada Jardim das Flores em Radiolândia é pequena e tem uma acanhada fachada. Não se iluda, ela é especial, principalmente por conta da dona da pousada, a Cira, que esbanja simpatia, cuidado e atendimento aos caminhantes. Cira tem muitas histórias, especialmente de centenas de caminhantes que já passaram por ela, e seu carisma é incrível.
A limpeza e os detalhes da pousada, a hospitalidade e o atendimento que recebemos é muito singular. Sabe um lugar que é cuidado com enorme carinho e atenção genuína aos detalhes? Pois é... é o que rola nesta pousada. A cozinha aberta, com uma grande mesa no meio e voltada para uma área livre, torna-se o principal ambiente de convivência da pousada.
Cira cuida da alimentação e do bem-estar dos caminhantes como nenhum outro lugar ao longo de todo caminho. Enfim, em Radiolândia, a Pousada Jardim das Flores é hospedagem obrigatória! Conheça a Cira e depois me conta aqui.




Casa do Nereu
No final do Caminho, faltando apenas 5 km para chegarmos no destino (Cidade de Goiás), a gente passa pela Igreja São João Batista do Ferreiro, que parece isolada na beira da estrada de terra e no meio da vegetação. Mas logo ali, perto, está a casa do Nereu, feita de tijolos aparentes.
Nereu nos intercepta no caminho e nos convida para entrar. Apresenta a sua parede- museu repleta de relíquias rurais, conta a história de cada peça, oferece café e rosquinhas, sempre com sua ararinha nos ombros e mais de dez cachorros andando pela casa.
Nereu é uma simpatia e mostra a felicidade por estar recebendo visitantes. A casa é simples, mas é grande, repleta de utensílios, eletrodomésticos e eletrônicos antigos, o que torna tudo muito interessante. Eu adorei o momento, senti vontade de passar o dia inteiro com Nereu, ouvindo suas histórias e sorvendo sua simpatia e leveza de vida.



Bar do Cowboy
Em Calcilândia chegamos ao Bar do Cowboy... e foi o próprio Cowboy que nos recebeu. Ele é muito simpático e mostra uma enorme satisfação em receber caminhantes. Essa é uma parada que vale muito a pena! Ali tem um pequeno mercado, que nos ajuda com mantimentos, e um bar anexado, bem interessante e decorado.
Cowboy serve suco de laranja e uma deliciosa porção de pastéis feitos com massa de milho, e recheados de carne ou frango. Tudo feito na hora!! Pastéis quentinhos e deliciosos! Suco gelado e natural!
Cowboy nos contou que ganhou o título de melhor comerciante do Povoado. E, com riso solto, emenda dizendo que ele é o único comerciante da região.
No Bar, Cowboy dá o recado através de uma placa, que diz: “A rusticidade desse ambiente não permite tocar funk”. Dentro do banheiro dos homens tem outra: “Ei, Cowboy. Aqui é o Bar do Cowboy e não o curral. Jogue o papel no lixo, dê descarga, mire certo e deixe o banheiro limpo. A faxina não é por minha conta!”



Cozinha colaborativa em Vila Aparecida
Entre Jaraguá e Alvelândia, surge o Povoado de Vila Aparecida. Lá a parada obrigatória é a Cozinha Colaborativa, comandada pelo simpático casal Roni e Rose.
Café e suco de caju feito na hora. Foi assim que eles nos receberam. Ao lado, um pequeno comércio abastece o caminhante e oferece bom apoio ao peregrino, com banheiro, boa companhia, simpatia e local de sombra e descanso.
Na calçada e fora do espaço da cozinha, dá para ver a praça principal de Vila Aparecida, a linda igreja e o campo de futebol, recentemente renovado.
Esta é uma daquelas paradas de apoio ao peregrino que não podemos passar batido. É parada indispensável.


Fazenda Caiçara
A Fazenda Caiçara é daquelas paradas que parecem um oásis no meio do deserto. Nós ficamos hospedados lá. É uma hospedagem bem rural, simples em vários aspectos, mas o espaço é bom, o ambiente faz a gente se sentir à vontade, e isso acontece especialmente pela recepção do Maurinho, dono da fazenda, e pela sua esposa Trindade. É o casal que faz as coisas ficarem mais especiais. E não é só isso. Tem a comida... ahhh, a comida. Tudo feito no fogão a lenha, inclusive o pão de queijo, o bolo da tarde, o feijão e o café. O queijo e leite também são feitos lá. Tudo coordenado pela Trindade.
Mesmo que não se hospede por lá, minha recomendação é que você pare por lá, entre Pirenópolis e o Povoado de Caxambu, para usufruir de um banheiro limpo, se hidratar, comer algo e ter uma prosa com o Maurinho, que adora receber os caminhantes. Te garanto que você não vai se arrepender.





As placas de Cora Coralina
Ao longo de todo caminho, mais especialmente na segunda metade, encontramos placas com versos, trechos de poemas e poesias da Cora Coralina.
As placas marcam o percurso e são um grande atrativo do Caminho. É muito divertido e interessante parar para ler e refletir. Nosso grupo parou em quase todas as placas, não apenas para ler e curtir, mas para descansar. Cada placa funcionou como uma parada obrigatória.
Algumas placas tinham trechos mais longos, em outras alguns poucos versos. Um dos que mais gostei diz assim: “Não tenho medo de envelhecer, tenho medo de ficar velha”. Entendo que essa frase não é um verso propriamente de Cora, mas sim uma citação popular inspirada em seus pensamentos sobre o envelhecimento, e não algo de sua autoria. A frase reflete a filosofia de vida da poetisa, que viveu até os 95 anos e sempre manteve a vitalidade e a lucidez. Ela defendia a ideia de que o envelhecimento físico é inevitável, mas o "ficar velha" (no sentido de perder a curiosidade, a capacidade de sonhar e a vontade de viver) é uma escolha pessoal.
Além das placas com poemas e poesias, existem placas indicativas de direção, placas descrevendo o percurso, placas descrevendo determinados atrativos etc. Tudo isso é muito bom e ajuda muito o caminhante.





Jantinha
A “Jantinha” é uma invenção extraordinária de Goiás. Às vezes é negligenciada, como algo comum e desimportante, mas é uma grande invenção. Pode ser encontrada em qualquer esquina, em qualquer cidade ou povoado, dentro do estado.
Jantinha é um prato tradicional de Goiás, faz parte da identidade social e dos costumes dos goianos. Ao procurar saber mais, descobri que a jantinha foi oficialmente declarada “Patrimônio Cultural Imaterial de Goiânia” em 2022.
A composição clássica da jantinha é uma combinação imbatível: arroz branco, feijão tropeiro, vinagrete, mandioca cozida (ou frita) e um espetinho de carne, que pode ser de boi, frango ou porco. Já vi de queijo também. Pronto! Simples e perfeita!
Como disse antes, todo lugar tem uma jantinha. Para o caminhante do Caminho de Cora Coralina, a jantinha surge maravilhosa. O difícil é comer somente uma jantinha depois de 30km queimando calorias. Mas não tem problema, é só pedir mais uma.


Nosso roteiro do Caminho de Cora Coralina
Compartilho abaixo o nosso roteiro programado, com datas, distâncias e hospedagens. O roteiro foi preparado pela "pés no Cerrado". Na caminhada, decidimos por algumas pequenas mudanças, mas que não vale a pena detalhar aqui.
Destaco que não recomendo o Rancho do João em Pirenópolis, certamente existem muitas opções melhores na cidade.
Das hospedagens, recomendo muito o Jardim das Flores em Radiolândia. Não deixe de ler as observações para cada hospedagem.
Dia 00 - 20/10/25 - De Goiânia para Corumbá de Goiás, de carro (138km)
Pousada Recanto da Serrinha
Dia 01 – 21/10/25 - De Corumbá de Goiás à Cocalzinho de Goiás
24,18km
Hospedagem em Cocalzinho, na Pousada Riacho dos Pireneus
(excelente pousada, quase uma chácara, muito aprazível e com atrativos, além do fogão à lenha, porém fica um pouco distante do trajeto de Caminho de Coralina. Usamos o carro de apoio para nos levar e trazer).
Dia 02 – 22/10/25 - De Cocalzinho de Goiás à Pirenópolis
31,66km
Hospedagem em Pirenópolis, no Rancho do João
(Eu não recomendo o Rancho do João em Pirenópolis, certamente existem muitas opções melhores na cidade).
Dia 03 - 23/10/25 - Do início da Estrada de Terra à Fazenda Caiçara
20,7km
Hospedagem na Fazenda Caiçara
(boa experiência, porém fique ciente que é um espaço rústico, simples, com conforto limitado e no meio de uma fazenda, distante de qualquer povoado e cidade. Eu recomendo como experiência)
Dia 04 - 24/10/25 - Da Fazenda Caiçara à Radiolândia
27,37km
Hospedagem em Radiolândia, na Pousada Jardim das Flores
(esta pousada, comandada pela Cira, é uma das melhores experiências de pousada no Caminho)
Dia 05 - 25/10/25 - De Radiolândia à São Francisco de Goiás
26,33km
Hospedagem em São Francisco de Goiás, no Hotel Cruzeiro de São José
(o hotel tem uma infraestrutura moderna, é amplo, mas carece de manutenção e conveniências. Não tem almoço e jantar, e encontra-se distante do centro da cidade, o que é negativo. Uber não existe na cidade. A alternativa é pedir para alguém do hotel encontrar um transporte)
Dia 06 – 26/10/25 - De São Francisco de Goiás à Jaraguá
27,02km
Hospedagem em Jaraguá na casa de amigos
Dia 07 – 27/10/25 - Da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos em Jaraguá à Alvelândia
34,05km
Hospedagem em Jaraguá na casa de amigos (fomos de carro de apoio para lá)
Dia 08 - 28/10/25 - De Alvelândia à São Benedito
30km
Hospedagem em Itaberaí, no Hotel Ell Palace (fomos de carro de apoio para lá)
(eu fiquei em um bom quarto no hotel. O café da manhã foi excelente. A localização do hotel é boa. A única coisa que não gostei foi do atendimento na recepção).
Dia 09 - 29/10/25 - De São Benedito à Pousada Caminho de Cora
29,3km
Hospedagem na Cidade de Goiás, na Pousada Chacará da Dinda (o carro de apoio no levou pela falta de hospedagem em São Benedito)
(Boa pousada. O meu quarto era bem confortável. Cercado por muito verde. A Dona Sarah, dona da pousada, nos atende com toda atenção e carinho. O café da manhã foi excelente. O único ponto de alerta é a localização, pois é necessária uma caminhada de 1 km para chegar no centro da Cidade de Goiás. Recomendo a pousada!!!)
Dia 10 - 30/10/25 - Da Pousada Caminho de Cora à Cidade de Goiás
28,75km
No meio da tarde, retorno à Goiânia com carro de apoio

Dicas finais e considerações pessoais
O poder do diário de viagem
Eu adoro escrever... para mim mesmo. Gosto de registros, fotos e lembranças de minhas viagens e caminhos. Para este caminho eu levei um pequeno caderno, novinho em folha, fininho, capa vermelha, com apenas 48 folhas. Optei por um caderno bem leve, porém com capa dura para facilitar a escrita em qualquer momento. Ahhh, e mais duas canetas Bic.
Isso vale ouro porque lá vou registrando a evolução do caminho, meus pensamentos, dificuldades, superações, enfim, devaneios de todo tipo.
Eu só consigo escrever artigos como esse por conta dos registros do caderno. Foi assim que fiz no Caminho da Fé, na Expedição ao Monte Roraima e vários outros.

Ler os cadernos tempos depois é uma excelente experiência pessoal de “viagem no tempo”. Ver a caligrafia estremecida, o papel encardido sujo de lama, o registro de determinados momentos em tempo real, sem o filtro da memória sabotadora ou iludida, é sempre muito especial.
Recomendo muito para meus amigos e amigas que busquem criar diários para suas fases ou experiências de vida. Quando colocamos as coisas no papel, nos obrigamos a pensar um pouco mais, vamos um pouco mais além do que os pensamentos efêmeros, inevitavelmente organizamos nossas ideias e novas linhas de pensamentos surgem. Deixar a mente fluir e escrever o que aparece é uma catarse, uma forma maravilhosa de autorreflexão e autoconhecimento.

Equipamentos essenciais para o Caminho
Falar do que é essencial numa caminhada de longo curso é muito particular, porém tenho algumas recomendações para este caminho, por experiência própria.
1- Chapéu
Não dá para fazer o Caminho de Cora Coralina sem chapéu. O sol impiedoso não dá trégua. Parece óbvio, mas já vi gente esquecendo o chapéu.
2- Bandana
Super versátil e de grande utilidade prática. Serve para proteger pescoço, cabeça, rosto etc. Também serve como gorro, máscara, munhequeira, faixa na cabeça etc. No meu caso, foi crucial como proteção solar para o pescoço e como máscara por conta da poeira fina.

3- Luvas
No meu caso foi fundamental. O sol queima o dorso das mãos e protegê-las torna-se essencial. Você pode passar protetor solar, mas o suor e o movimento das mãos acabam por reduzir a eficácia desta proteção. Além de tudo, luvas aumenta a “pegada” dos bastões.
4- Bastões de caminhada
Durante muito tempo eu considerei bastões de caminhada algo desnecessário e pouco eficaz. Hoje a minha opinião é diametralmente oposta. Os bastões ajudam muito no equilíbrio, proporcionando mais estabilidade, especialmente em terrenos irregulares. Eles também reduzem o impacto nas articulações, como joelhos e tornozelos, e melhoram a postura. Recomendo muito.

5- Camisetas dryfit de manga comprida
São camisas muito leves, que não retém o suor, tem proteção UV e secam rápido. Imbatíveis. Levei 3 e usei-as todos os dias.
6- Protetor solar e vaselina sólida
O uso de protetor solar é mandatório e acho que nem preciso justificar. Porém, a vaselina sólida nem todo muito conhece e faz uso. A vaselina sólida é usada em caminhadas para prevenir bolhas e assaduras, criando uma barreira lubrificante que reduz o atrito entre a pele, a roupa ou o calçado. Sempre de manhã, antes de vestir as meias, eu besuntava generosamente os meus pés com vaselina sólida, e depois tratava de colocar a meia por cima. A melecada só durava poucos minutos, porque a pele do pé tratava de absorver o creme. Eu não tive nenhuma lesão no pé, nenhuma bolha ou assadura durante os 300km.
Recomendo o artigo “Bolhas nos pés: como evitar e tratar” no blog “Elas vivem sozinhas”.


Passaporte e Certificado
Quem faz o Caminho de Cora Coralina, não pode deixar de obter o "Passaporte do Peregrino” e o “Certificado do Peregrino”.
O passaporte é um documento físico que serve como registro da jornada, onde o caminhante vai coletando carimbos em diferentes pontos do trajeto. É divertido! Já o certificado é uma espécie de diploma de validação que é obtida ao completar o caminho, na Casa de Cora Coralina.
Tanto o passaporte, quanto o certificado, são lindos... muito mais bonitos do que o famoso Caminho da Fé.
Veja informações sobre eles na “Associação do Caminho de Cora Coralina”.



Suporte e Operadora
É altamente recomendável que o caminhante, independentemente se faz o caminho sozinho ou em grupo, contrate o suporte e apoio de uma operadora especializada.
No caso do Caminho de Cora Coralina, a melhor opção é a empresa de turismo de aventura “Pés no Cerrado Hiking & Trekking”. Sem dúvida é a operadora que tem mais experiência neste caminho.
Em todas as vezes que fiz o caminho, eu tive a “Pés no Cerrado” me ajudando e me acompanhando, mesmo que remotamente. Recomendo!
Caminhada de autoconhecimento: a jornada que vai além do físico
Há uma diferença fundamental entre enfrentar uma trilha como um desafio atlético e percorrê-la como uma jornada de autoconhecimento. O propósito altera completamente o espírito da experiência.
Para mim, a motivação nunca foi encontrar respostas prontas para perguntas como "o que vou alcançar?" ou "que aprendizado isso me trará?". Frequentemente, essas compreensões só surgem no final, como um presente da estrada.
Minha busca sempre foi pelo autodesenvolvimento.
Em todos os meus caminhos, incluindo o Caminho de Cora Coralina descrito neste artigo, eu acabo embarcando em uma verdadeira viagem para dentro de mim mesmo. Tem momentos que parece que entro em um estado de meditação profunda. Isso ocorre mais frequentemente quando estou caminhando sozinho, mas acontece em grupo também. Ando por quilômetros com a mente tão absorta em meu mundo interior que as paisagens externas se tornaram quase irrelevantes.
Nessas longas caminhadas eu ressignifico meu passado, reavalio prioridades, acesso o meu eu mais genuíno, tomo decisões e traço novos rumos para minha vida.
O final sempre se repete: a cada caminho concluído, volto não apenas com quilômetros no corpo, mas mais leve, mais consciente e infinitamente mais conectado comigo mesmo. A caminhada, no fim, é sobre quem nos tornamos ao longo do percurso.

A jornada interna: como a mente se transforma em longas caminhadas
Eu já escrevi sobre isso anteriormente no blog, mas vale a pena abordar de novo esse tema.
Ao embarcar em uma caminhada de longo curso, levo comigo apenas o essencial. Busco viajar com uma mente deliberadamente vazia. O celular serve apenas como bússola digital (google maps e o aplicativo wikiloc). Todo o resto, como músicas, podcasts e notícias, ficam para trás. Essa desconexão não é um sacrifício, mas é uma condição que me imponho para me conectar plenamente com o "mundo do caminho". E, quase sem perceber, um processo interno se inicia.
Os primeiros dias: a mente pragmática
No início, a mente age como um instrumento de sobrevivência. Toda a atenção está voltada para o corpo, para a respiração e o inevitável cansaço, os ajustes da mochila nas costas, o terreno irregular, a roupa preguenta de suor.
É uma fase muito racional e prática, dominada por cálculos como: quantos quilômetros já andei e ainda faltam, como fazer para lavar a roupa na próxima hospedagem, como está a quantidade de água na garrafinha etc.
Nessa fase, a consciência está no fazer o caminho, lidando com o desconforto e executando e validando o plano desenhando.

O ponto de virada: a abertura dos sentidos
Por volta do quarto dia, ocorre uma mudança sutil. O corpo, já adaptado ao ritmo, deixa de demandar tanta atenção. A mente, então, relaxa sua guarda e começa a se abrir. É quando o caminho verdadeiramente se revela.
Parece que os sentidos se aguçam: o canto dos pássaros soa mais alto e torna-se mais nítido, o céu parece mais azul e o vento, quando surge, refresca o rosto como um carinho.
Deixo de apenas atravessar a paisagem e começo a fazer parte dela. A experiência se torna sinestésica, e o prazer de simplesmente estar ali se sobrepõe à obsessão por chegar. É uma fase de grande contemplação da natureza que me cerca.

A fase da clareza: a mente que se expande
A partir do sexto dia, a transformação se aprofunda. A sensação de paz e liberdade torna-se tão presente que surge o desejo de que aquele estado nunca cesse. Com a mente calma e o corpo seguro, o olhar se volta para dentro. A introspecção chega de forma espontânea, em longas meditações ambulantes.
É nesta fase que inicio uma profunda viagem interna, conectando passado, presente e futuro. Problemas que pareciam crônicos se mostram solúveis, e decisões importantes ganham uma clareza surpreendente.
Nesse espaço mágico de silêncio e auto-observação, eu ganho uma clareza de pensamento rara no dia a dia. Problemas que pareciam insolúveis revelam suas soluções. Decisões importantes são tomadas com uma serenidade que surpreende. É uma fase de expansão, onde sou tomado por um bem-estar profundo e uma sensação de transcendência.
Este processo, que já vivi em tantos caminhos, é o verdadeiro tesouro que busco em cada caminhada. E ele floresce com mais intensidade quando estou sozinho. Porém, mesmo em grupo, a magia acontece, talvez em menor grau, mas ela sempre acontece.

O que fica do Caminho
Ao final de 10 dias e 300 km, compreendo que nunca estive caminhando apenas para a Cidade de Goiás.
Indiscutivelmente, chegar ao destino representa uma grande conquista e superação, até uma sensação de vitória. O passaporte carimbado e o certificado assinado são os troféus dessa “consagração”.
Por outro lado, a chegada é altamente frustrante, porque significa o fim. Pelo menos, o fim da experiência física. A conclusão do caminho tem um sabor de término prematuro, o rompimento de um prazer que só crescia, recheado de uma leveza e paz de espírito por estar vivendo distante do “mundo real”.
É isso mesmo. Fazer um caminho como este cria um contexto que parece me tirar do mundo em que vivo. É como se, na largada, eu atravessasse um portal para uma dimensão paralela, e na chegada, um novo portal me joga de volta para a realidade pesada de agendas, compromissos, demandas e expectativas.
Sempre aprendo nas longas caminhadas que faço. Sempre começo de um jeito e termino de outro. Sempre evoluo.
Em todas elas, constatei que o melhor da experiência não é a chegada, mas sim o caminho. Parece clichê, mas é a pura verdade. Por isso, mesmo alcançando com sucesso a linha de chegada, me penalizo por ter que deixá-lo.
No entanto, de alguma forma que não sei explicar, o melhor de tudo é que o caminho fica dentro de mim. Tudo que vivi, senti, aprendi e evoluí, eu carrego comigo... para sempre.





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