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Precisamos reaprender a olhar

O artigo “Sentados e observando” de Jonas Furtado, editor-chefe do Meio & Mensagem, diz que tem momentos na vida em que precisamos “sentar e observar”, não tomar nenhuma decisão da qual possamos nos arrepender depois. E conta uma história pessoal que marcou a sua vida.

Ele conta a experiência vivida com o irmão em dias de surf na praia, quando o irmão agia completamente diferente dele. Ao chegar na praia com o irmão, Jonas já queria se jogar direto no mar, sem se preocupar em montar uma estratégia prévia para “pegar” as ondas. Por outro lado, o irmão queria sentar e observar, sem pressa. Segundo o irmão, a observação era necessária para uma análise adequada das variáveis que influenciam um dia de surf: quanto tempo havia entre as séries de ondas; qual onda era a maior e qual a melhor da série; qual o fluxo e a força da correnteza; qual o melhor caminho para varar a arrebentação, levando o menor número possível de vagalhões na cabeça.

Num dia típico, quanto mais desafiadoras eram as condições das ondas, mais ficavam observando. Jonas olhava tudo distraído. Na maiorias das vezes, olhava e não via nada. Tudo que aquele contemplar propiciava a ele era ansiedade e, em dias de grandes ressacas, medo. Quando finalmente entravam na água, o irmão partia a largas braçadas pelo caminho rumo ao fundo, já planejado pela sua severa observação, enquanto Jonas agonizava em meio à zona de impacto com sua ausência de estratégia. E quando Jonas finalmente conseguia atravessar a arrebentação, o seu esforço tinha sido tamanho que ele chegava no pico com os níveis de energia e concentração tão baixos que minavam suas chances de sucesso. E então, quando a ação para valer realmente começava, muitas vezes só restava a ele sentar na prancha e olhar.

Obviamente que o Jonas dos dias de hoje já não é mais aquele camarada afoito descrito no artigo, mas certamente, como todos nós, ele segue aprimorando o seu “timing”. Essa história contada por ele é riquíssima e tem um incrível paralelo com a atualidade. Vivemos uma sociedade em que a velocidade parece ser determinante para tudo, na vida pessoal e, principalmente, na vida profissional.

Senso de urgência, fazer mais rápido, partir na frente, tudo isso nos tira o tempo de “sentar e observar”.

Muitas vezes fazemos planos de ação sem ter o conhecimento e o embasamento adequados, porque o mais importante é fazer o navio partir do porto, mesmo que as vezes não tenhamos muita certeza dos mares que vamos enfrentar e a clareza de onde queremos chegar. Estar minimamente na direção certa parece já ser suficiente, depois a gente corrige o curso. Metodologias como scrum e agile parecem referendar essa nova forma de trabalho.

“Sentar e observar” provoca ansiedade, as vezes até a sensação de perda de tempo.

Em uma época em que as empresas montam salas de reunião sem cadeiras para que tudo seja mais rápido, focando na produtividade e agilidade, parece que “sentar” já começa a ser questionado. E o que dizer do “observar”? Esse fator “contemplação” parece ser ainda mais difícil. E tudo fica pior quando você consegue tempo para olhar, mas não consegue ver ou aprender nada.

Há muitos anos, bem no início da minha carreira, entrei numa empresa fabril onde o meu chefe tinha “cabeça branca”. Era um senhor muito experiente, afável e generoso. Lembro que, no primeiro dia de trabalho, ele me recebeu muito bem, apesar da minha ansiedade natural em começar logo a fazer alguma coisa, de colocar a mão na massa imediatamente. Entrei na sala dele, esperando receber uma tarefa ou serviço específico. Tenho a recordação clara dele olhando para mim, divertindo-se com a minha impetuosidade.

Ele falou algo mais ou menos assim: “Mauro, não fique ansioso. Passe os seus dois primeiros dias olhando como funciona a fábrica. Encontre um lugar para sentar e observar a produção. Veja a movimentação dos funcionários, o deslocamento dos carrinhos de peças e o que desejar. Pegue um caderno e anote tudo que achar interessante. O que funciona bem e o que não funciona. Também anote dúvidas e perguntas. No terceiro dia venha ao escritório dos desenhistas projetistas e faça a mesma coisa. No quarto dia vem falar comigo para me contar o que aprendeu”.

Confesso que duas coisas me incomodaram. A primeira foi não ter clareza do que ele queria. A segunda é que meus novos colegas de trabalho pudessem me ver como uma espécie de espião.

O resultado daquela experiência foi interessante. Nenhum dos colegas se sentiu espionado. Passei os dias anotando páginas e páginas das coisas que vi. Fiz desenhos, anotei o número de vezes que determinados funcionários iam de um lado para o outro, a distância que eles caminhavam para ir ao bebedouro, os motivos das paradas na linha de produção, etc. Aquela lista com dezenas de anotações se transformou num conversa de algumas horas com meu chefe, que mais tarde contribuíram no preparo de alguns planos de ação de mudanças de processos, redistribuição de tarefas e até dos espaços de circulação de pessoas e alimentação. O chefe tomou vantagem de pegar um cara novo como eu, sem nenhum conhecimento, vício ou relação pessoal dentro da empresa. Estou certo que levei para ele pontos e questões que ninguém dentro da empresa pensaria em colocar, até mesmo ele, simplesmente porque todos ali não conseguiam sair de “dentro da caixa” para observá-la de fora.

Essa foi uma experiência que carreguei para a minha vida. Toda vez que assumo uma nova tarefa ou responsabilidade, trato de controlar a minha ansiedade natural de partir imediatamente para ações e “mostrar serviço”. Não é fácil lidar com essa ansiedade, mas aprendi a dosar os meus impulsos. As vezes, em meu dia a dia, me sinto como naquele dia da fábrica. Fico sentado observando tudo ao meu redor, mais vendo do que sendo visto, mais ouvindo do que falando, tentando entender o vento, as ondas e os surfistas ao meu redor. Obrigado, Jonas.