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Viagem de cruzeiro: lições da natureza humana no Mediterrâneo

  • Foto do escritor: Mauro Segura
    Mauro Segura
  • há 4 dias
  • 9 min de leitura
A lua cheia vista da varanda da cabine do navio
A lua cheia vista da varanda da cabine do navio - foto de Mauro Segura


Estou dentro da magnífica cabine 15142, localizada no 15º andar do magnífico transatlântico Costa Toscana, o nono maior navio de passageiros do mundo. Navegamos em algum lugar no Mar Mediterrâneo, entre Marseille (França) e Barcelona (Espanha).


É noite, 23h. Valéria está ao meu lado, dormindo o sono das deusas marítimas.


Escrevo esse parágrafo em papel e caneta, ouvindo o som das ondas do mar, que entra pela varanda aberta. Lá fora é breu completo, não se vê mar nem céu: é uma noite sem lua.


Eu não pretendia escrever sobre essa experiência de cruzeiro, mas hoje é o penúltimo dia da viagem, amanhã desembarcaremos e eu não paro de pensar no que vivemos aqui. Foi tudo muito surpreendente, especialmente a parte antropológica da experiência. Foi surpreendentemente desolador...



O ápice do conforto: a cabine e o gigante tecnológico


Antes, porém, vale falar dos pontos surpreendentemente bons.



A cabine perfeita: planejamento que valeu a pena


O primeiro ponto de destaque, sem dúvida, foi a qualidade da cabine. Não foi por acaso. Eu pesquisei muito até reservar esta cabine. Desde o tamanho, a localização e os recursos.


Fiz a reserva com quase dois anos de antecedência. Eu sabia que ia ser especial, vim com essa expectativa e confesso que foi além do que imaginava. Espaçosa, confortável, tudo novo e funcional, super limpo e iluminada.


Dentro da cabine foi tudo perfeito. O banheiro lindo, confortável, reluzente, banho quentinho. A varanda, plena de espaço, veio com tudo que tem direito, desde nascer e pôr do sol no oceano, com lua cheia resplandecente iluminando as ondas do mar como se fosse dia.


cabine do navio com varanda Costa Toscana
A cabine 15142 do navio Costa Toscana, extraordinária!! - Foto de Mauro Segura


A maravilha da engenharia do Costa Toscana


O segundo ponto de destaque, inevitável, foi o gigantismo e a maravilhosa engenharia tecnológica do navio. Tudo foi superlativo: inúmeros espaços para atividades e lazer, restaurantes, bares, piscinas, serviços, vários andares com espaços comuns e generosos de circulação. Chega a ser difícil descrever tudo isso.


Isso é o que vemos e admiramos, e o que está escondido? Estou falando da infraestrutura tecnológica e operacional para fazer tudo isso funcionar de forma silenciosa e quase perfeita, como um reloginho. Como será que um navio como esse funciona? Imagino a complexidade no planejamento e na operação diária de tudo isso.


O meu encantamento nos oito dias de viagem ficou centrado nos dois pontos acima, que dizem respeito ao conforto e tecnologia providos pelo navio. Ao somar o lado humano da experiência, tudo fica mais sombrio e paradoxal, mas não pela tripulação do navio, e sim pelos passageiros.


Popa do navio Costa Toscana
A popa do navio Costa Toscana - foto de Mauro Segura


Impermanência: vivendo conforme as ondas do mar


Agora escrevo este parágrafo dentro do avião, retornando de Barcelona para o Brasil, apertado na poltrona econômica, sob uma luz fugidia que me incomoda.


A vida é repleta de surpresas e assim aconteceu nessa viagem.


Depois de escrever o primeiro parágrafo deste artigo, já lido acima, ainda dentro da maravilhosa cabine, eu dormi por algum tempo.


Por volta de 1 e meia da madrugada, acordei para fazer xixi. Valéria levantou-se também. Ela usou o banheiro e depois fui eu.


Voltei para cama, mas desconfiei do som prolongado da água enchendo a caixa de água do vaso. Levantei e descobri que água não parava de entrar. Lentamente o vaso transbordava. Não era um problema de entupimento do vaso e sim de entrada ininterrupta de água.


Cabe dizer que a descarga do vaso sanitário do navio é igual a existente nos aviões, que funciona por meio de um sistema a vácuo, usando forte sucção e não somente água, semelhante a um aspirador. O barulho alto característico é resultado da abertura de uma válvula no fundo do vaso, que puxa instantaneamente os dejetos.


A água insistente começou a transbordar do vaso e a inundar o banheiro, certamente invadiria a cabine. Passei a apertar compulsivamente a descarga do vaso, jogar as toalhas pelo chão do banheiro, na tentativa de controlar os danos.


Sem entrar em mais detalhes, liguei para emergência do navio. Fomos atendidos prontamente e o conserto foi feito, com a troca de válvula e algo mais, demorando quase duas horas até o final do processo de intervenção dos profissionais do navio. O reparo foi feito por fora da cabine, com o pessoal nos incomodando o mínimo possível, porém “levando a nossa última noite no navio para o saco”.


Essa experiência mudou um pouco o “grande finale” da cabine do navio.


A cabine, até então perfeita, deixou de ser perfeita, mostrando que tudo precisa ser ponderado, que um simples fato pode mudar as coisas e criar um contexto, que não podemos celebrar a vitória antes do final da partida.


É a impermanência da vida, tudo está em constante mudança e nada é permanente ou duradouro. Aceitar a impermanência reduz o sofrimento causado pela resistência às mudanças inevitáveis da vida, como a perda de uma pessoa querida ou o simples vazamento de uma caixa de água no vaso na última noite de seu cruzeiro dos sonhos.


Aprendi muito sobre isso no Vipassana, que foi uma experiência transformadora. Recomendo muito o artigo do blog “10 Dias em um Retiro de Meditação Vipassana”.


Aceitar a impermanência nos ajuda a não nos apegarmos excessivamente ao presente e a entendermos que o desconforto e a dor também são temporárias. É libertador quando trabalhamos a aceitação dentro da mente e reconhecemos que não podemos controlar tudo, o que nos convida ao desapego do desejo de controle, abrindo espaço para novas experiências e aceitar a vida como ela é, com seus altos e baixos.


No final de tudo, é entender que nada dura para sempre, o que nos lembra que devemos viver e aproveitar cada momento que o universo nos oferece, porque em instantes um novo contexto pode estar em curso.


Como a vida sempre nos surpreende, no dia seguinte, ao deixarmos o navio e realizarmos o “check-in” no delicioso hotel Allegro em Barcelona, fomos presenteados com um excepcional upgrade de quarto, indo para um quarto superior com sala, terraço e banheira. Um quarto mega espaçoso, confortável, repleto de mimos, que transformou a nossa última estada em Barcelona em algo muito especial. Foi uma surpresa e tanto, que apreciamos muito.


Essa sequência de experiências, paradoxais, não somente exemplifica como foi a nossa viagem na Europa, mas representa como a vida funciona de verdade. A nossa existência envolve alternância de fatos o tempo todo. O que é bom em determinado momento, pode não ser tão bom instantes depois. Saber lidar e conviver com isso, me parece o segredo para uma boa vida.


Naquela noite anterior, ao encararmos com resignação, paciência e bom humor o “naufrágio da cabine”, acredito que estabelecemos um ambiente positivo para que o destino nos presenteasse com o upgrade do quarto no dia seguinte. Era o universo conspirando a nosso favor por nos mostrarmos agradecidos e felizes com o que ele nos provia.


Esse foi mais um aprendizado de vida. Foi aqui que encontrei espaço para uma ressignificação: o propósito daquela viagem, que eu acreditava ser apenas o lazer, revelou-se como uma lição sobre desapego e fluxo.



Colosseo do navio Costa Toscana
Colosseo, o impressionante teatro de 3 andares no coração do navio Costa Toscana - foto de Mauro Segura


A metáfora de "O Poço" em alto-mar


"O Poço" é um filme da Netflix muito impactante e perturbador. Ele apresenta um mundo imaginário, distópico e claustrofóbico, onde a sobrevivência se transforma em uma luta brutal. Em uma prisão vertical, presos habitam andares desconhecidos, no qual não sabemos quantos deles existem, mas cada um confinado a um espaço limitado. A única fonte de alimento vem de uma plataforma que desce diariamente, trazendo um banquete para os que estão no alto, enquanto os prisioneiros dos andares inferiores lutam para sobreviver em meio à escassez e ao desespero. A cada mês, os detentos são transferidos para andares diferentes, aumentando o clima de tensão e incerteza.


O filme explora a natureza humana, questionando a solidariedade e a moralidade em um sistema cruel. O comportamento das pessoas em relação à comida é uma metáfora para a desigualdade e o egoísmo social, onde os que estão no topo consomem em excesso e os do fundo ficam com os restos ou com fome.


A falta de solidariedade leva a atos extremos de violência e canibalismo nos andares mais baixos, enquanto a estrutura do próprio sistema incentiva o conflito e a disputa pela sobrevivência.


Assistir este filme demanda um bocado de estômago.


Se desejar, leia o artigo "Filme 'O Poço' explicado: a arapuca cósmica que tira o pior de nós" no site Cingnose que apresenta uma completa análise do filme, com todas as suas simbologias e metáforas.



O lado animal no cruzeiro: uma metáfora viva


O que vivemos no navio nos lembrou o contexto do “O Poço”. Foi a Valéria que teve esta sacada, despertando uma enorme expansão de consciência ao longo da viagem e, também, nos criando um enorme desconforto difícil de lidar e conviver.


A experiência de cruzeiro nos mostrou o lado animal do ser humano, que está pagando por lazer, prazer e fartura, e pretende brigar por “este direito comprado” a qualquer custo.


O navio Costa Toscana é um gigante. Não é exagero falar que o navio é uma cidade flutuante com mais de 6.700 passageiros e 1.600 tripulantes a bordo. É fácil imaginar a complexidade de alimentar, prestar serviços e prover entretenimento para tantas pessoas, que estão ali com altas perspectivas e sem nenhuma disposição em abrir mãos de seus sonhos, desejos e fantasias.



O comportamento nos restaurantes: a luta pela comida


O que vivemos no navio foi dantesco, especialmente no ambiente dos restaurantes. Os serviços de café da manhã e almoço eram buffets com uma oferta inimaginável de comida, onde as pessoas apresentavam um comportamento estranho, pegando uma quantidade imensa de comida e levando para mesa, como se fossem banquetes de Luiz XIV, indo muito além da capacidade de consumo.


Foi comum vermos os restaurantes cheios e lotados, em um nível de ruído perturbador, com pessoas empurrando umas às outras, nem sempre obedecendo as costumeiras filas, na busca por mesas desocupadas ou meramente para obter uma xícara de café.


Vimos famílias inteiras, agitadas, parecendo “lutar por comida” para encher exageradamente os seus pratos, como no “O Poço”. Os próprios atendentes do navio, que estão nas diversas estações de comida, parecem jogar a comida no prato, sem cuidado ou atenção para o que estão fazendo. Eles exageram nas porções, colaborando para a espiral consumista alimentar e descontrolada existente. Enfim, difícil de descrever, lamentável de lembrar.


Li alguns artigos na internet comentando que filas e aglomerações são mais comuns nos gigantescos navios por conta do número de passageiros, especialmente nas horas das refeições, em alguns shows e em momentos especiais, como a partida e chegada nas principais cidades.


Os serviços de buffet no café da manhã e almoço, que me despertaram os paralelos citados acima, foram diametralmente diferentes do jantar, onde o serviço foi servido a la carte, com menus variados todas as noites, pratos elaborados e elegantes, em um ambiente mais tranquilo e ordenados. A experiência nos jantares foi muito mais prazerosa do que nas outras refeições.



O navio como um reino medieval


O paralelo do “O Poço” com o nosso cruzeiro despertou em minha mente outras ondas de imaginação.


Momentaneamente pensei no cruzeiro como um “reino auto-contido” e delimitado pelo navio, onde os passageiros são os reis, rainhas e nobres da corte, sendo servidos o tempo todo dentro de suas exigências desmedidas, teimosias e fantasias, enquanto que os tripulantes são os serviçais, trabalhando em demasia, falando idiomas diferentes, apenas abaixando a cabeça para servir, sem nenhuma conexão genuína e emocional com a realeza. Existe um fosso abissal entre os passageiros e os tripulantes.


Cabe dizer que no caso do navio Costa Toscana, os tripulantes têm contrato de 7 meses (em média) com a Costa, onde eles passam o tempo todo embarcados, trabalhando uma média de 10 a 12 horas por dia, 7 dias por semana, em um ritmo intenso e cíclico. Ou seja, são longas jornadas e poucas folgas. Os contratos geralmente oferecem benefícios como salário em dólar, a possibilidade de conhecer diversos países e culturas, e a oportunidade de crescimento profissional. Isso me foi contado por mais de um tripulante ao longo da viagem.


Em nenhum momento tive conhecimento ou acesso ao espaço onde os tripulantes descansam, se alimentam, se distraem e dormem, quando não estão servindo os passageiros. Existe uma cidade desconhecida da tripulação dentro do navio, possivelmente nas pontes (é assim que são chamados os andares no navio) mais baixas, escondidas sob a estrutura de aço do navio.


Me lembrei do império, onde existe a corte, os nobres, os súditos e os serviçais. A realeza tem tudo, os serviçais vivem segregados e existem apenas para servir.


Tudo isso me incomodou muito pois vivi uma experiência estranha, onde a realeza não era uma sociedade, mas um bando de pessoas apenas preocupadas consigo mesmo, sem conexão e interesse pelos outros, como no enredo do “O Poço” já citado.



pôr do sol visto da cabine do navio Costa Toscana
Varanda da cabine no navio Costa Toscana, quando o sol deita no mar - foto de Mauro Segura


Vale a pena uma viagem de cruzeiro?


Não se iluda. Apesar da minha ranzinzice e negatividade, a experiência de cruzeiro merece ser vivida, pelo menos uma vez, para que uma opinião própria seja formada.


Conheço pessoas que adoram cruzeiros e outras que simplesmente odeiam. Eu acredito que eu e Valéria não voltaremos a viver uma nova experiência de cruzeiro, pois preferimos outras opções.


No site “Melhores Destinos” tem um excelente artigo intitulado “Férias em alto mar: por que passei a gostar de viajar em cruzeiros”. Ali o autor do artigo pondera sobre sua mudança de percepção a respeito de uma viagem de cruzeiro. No final do artigo, ao ler o imenso debate nas dezenas de comentários existentes, fica evidente as enormes diferenças de visões e percepções a sobre este tipo de viagem.


Apesar de tudo, confesso, foi muito emocionante estar na varanda da cabine e ver o sol se pondo no infinito, onde a linha do mar se encontra com o céu, em uma explosão de cores sem fim. A mesma emoção aconteceu nas noites de lua cheia. Foi grandioso e magnético.


E tudo ficou mais mágico e inesquecível, como foi no nosso caso, quando também vivemos tudo isso deitados na cama de cabine, através da “parede” de vidro da varanda, ouvindo o som das ondas do mar e sentindo uma paz infinita.



A varanda da cabine do navio Costa Toscana
Vendo o Mar Mediterrâneo de dentro da cabine do Costa Toscana - foto de Mauro Segura

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