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Quanto você está disposto a perder?

Eu lembro bem desse dia, até porque fiz fotos e fica fácil descobrir o dia exato.


Estou no dia 12 de março de 2021.


Abro o armário e me deparo com dezenas de cadernos e pastas com argolas, tipo fichário. Tudo organizadinho. São anotações e estudos, resultado das minhas aulas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), curso de Engenharia Elétrica, datados de 1979 a 1984. Ou seja, passaram-se 30 anos.


Cada pasta tem dezenas de folhas, talvez centenas. Cada pasta é de uma matéria específica do meu curso universitário. Cada pasta tem uma etiqueta na frente, bem escrita, com o nome da matéria e datas. As pastas têm matérias como Cálculo, Física, Geometria Analítica, Química, Mecânica, Circuitos Elétricos, Motores Elétricos e por aí vai.


Escolho aleatoriamente uma das pastas e começo a folhear. É tudo tão organizado e bonito, sem rasuras, com letras claras, esquemas e diagramas feitos com régua, que até parece um livro.


Folheio lentamente, vendo o meu capricho e o meu cuidado extremo em cada página. Escrevia em folhas avulsas, pautadas, tamanhos A4 ou A5 que, depois, eram colocadas no fichário, que ia crescendo exponencialmente. Sem rabiscos ou folhas dobradas. Várias folhas com reforço no furo para não rasgar. Tudo impecável!


Olho com admiração. São muitas e muitas pastas.


Por que tanto capricho?

Por que guardei tudo isso comigo durante 30 anos como se fossem joias?

Por que tanto apego?


Meus cadernos - Foto de Abril de 2021 - Foto de Mauro Segura, com barba :)
Meus cadernos - Foto de Abril de 2021 - Foto de Mauro Segura, com barba :)


DE VOLTA À FACULDADE


Certo dia, na década de 90, fui à UERJ atrás de um documento. Já havia se passado mais de dez anos desde a minha formatura naquela universidade. Andei aleatoriamente pelo imenso prédio de concreto, tentando resgatar alguns restos de memória em minha mente.


Passei em frente a xerox da faculdade. Naquela época tudo era ainda na base da fotocópia. Não havia celulares e notebooks. Ao passar pela loja, eu vi algumas imagens presas na parede. Mesmo de longe, eu reconheci uma delas. Era a fotocópia de uma página que tinha a minha caligrafia. Perguntei ao atendente o que era aquilo. Ele respondeu que aquele era o curso inteiro de Circuitos Elétricos 1 com anotações e muitos exercícios, com todas as respostas. Complementou dizendo que era o caderno de um excelente aluno antigo da faculdade. Pedi mais detalhes e soube que aquela apostila tinha mais de uma centena de páginas, apenas dessa matéria.


Bastaram mais três ou quatro perguntas para descobrir que outros cadernos meus, "xerocados", eram vendidos naquela xerox para os alunos atuais de engenharia, sob o pretexto que não precisavam anotar nada. Ali estava tudo anotado, com perfeição e comodidade. Era só comprar com eles.


Na minha época de aluno os meus cadernos valiam ouro. Muitos pediam meus cadernos emprestados para fazerem cópias. De alguma forma isso virou referencial e costume (e negócio...), porque as cópias foram passando de ano para ano, e se mantiveram na faculdade ainda por mais de um década depois de minha formatura.


Meus cadernos - Abril de 2021 - Foto de Mauro Segura
Meus cadernos - Abril de 2021 - Foto de Mauro Segura


FIEL AOS IDEAIS

Um artigo publicado em 2015, chamado “Se a vida é tão efêmera, por que somos tão apegados às coisas?”, cita que o apego provoca consequências danosas para as nossas vidas e dispara uma questão fundamental:


Quanto você está disposto a perder para se permanecer fiel aos seus ideais, sonhos e objetivos de vida?

Ao longo de nossa existência, nós acumulamos e nos apegamos a coisas e pessoas. Esses acúmulos e apegos se transformam em “castelos ficcionais” em nossas mentes, que precisam ser protegidos. Então construímos muros altos na vã tentativa de protegê-los. A partir daí, as nossas vidas se transformam em “guerras mentais medievais” intermináveis onde a luta pela preservação de nossos apegos e posses é completamente inglória. O resultado é que a vida torna-se difícil e menos prazerosa porque, com o passar do tempo, tais fardos se tornam cada vez mais pesados e difíceis de serem carregados, e surgem sentimentos de insegurança, avareza, insatisfação, prepotência e arrogância.


Somos acumuladores! Eu sou um exemplo disso e acredito que a grande maioria da sociedade também age assim. Acumulamos lembranças materiais e emocionais.


Guardamos, dentro de casa, lembrancinhas, objetos, roupinhas e um monte de bugigangas como se fossem pequenos tesouros de nossas vidas. Também carregamos lembranças mentais de momentos de felicidade efêmera, arrependimentos, expectativas, mágoas, rancores, desejos, sonhos e um monte de imagens mentais que ocupam a nossa mente, tornando-se pesos e âncoras, criando vieses, roubando espaço para novas possibilidades, oportunidades e perspectivas.


No fim de tudo, nos tornamos seres pesados, externamente e internamente, porque optamos por viver uma vida irreal ancorada em coisas que não nos libertam e não nos tornam mais leves e fluidos.


Quase sem querer, nos tornamos um pouco marionetes daquilo que imaginamos ser a partir de tudo que acumulamos na vida e não aceitamos largá-los pelo receio de perdermos algo valioso, quando na verdade, são apenas pedras e pesos que não nos deixam ir mais longe.


Meus cadernos - Foto de Abril de 2021 - Foto de Mauro Segura
Meus cadernos - Foto de Abril de 2021 - Foto de Mauro Segura


MINHA HISTÓRIA

Iniciei uma grande transformação de vida, anos atrás, em função de uma perda importante, já contada e recontada no meu blog.


O ano de 2020 foi fundamental em minha vida. O meu contexto de vida me levou para uma oportunidade única da minha existência, me jogando em uma questão crucial que dependia apenas de mim: ou me jogava em uma vida completamente nova e diferente do que havia vivido até então, que representava desconhecimento e insegurança, ou voltava para a minha vida antiga, dentro dos limites conhecidos, com poucos riscos e plenamente seguro.


Ao longo daquele ano, eu não aceitei os lamentos e o clamor impiedoso da perda que emergiam dentro de mim. Optei por escolher os ganhos e as possibilidades do novo caminho, do desconhecido. Optei por me abrir para um futuro impensado, porém tendo por base tudo que aprendi e conquistei como ser humano ao longo da minha vida.


A vida é a experiência e não o resultado.

Se eu retornasse para a minha vida antiga, eu estaria jogando fora a oportunidade de construir uma nova história. Eu precisava de uma nova experiência. Havia uma luz dentro de mim que me gerava entusiasmo e gratidão pela oportunidade oferecida pelo universo.


Era um sentimento estranho, que misturava a negação e a dor da perda, a sensação de estar em uma caverna sem saída, com a certeza de que aquela era uma oportunidade incrível de mudança de plano existencial, de passagem de portal.


Havia diante de mim um abismo gigante, que me chamava para ele. Eu dava passos lentos em direção a ele. Cabia a mim, apenas, me jogar e bater as asas para voar para novos horizontes.


Optar pelas possibilidades é mudar a perspectiva de vida.

Meus cadernos e a mudança - Abril de 2021 - Foto de Mauro Segura
Meus cadernos e a mudança - Abril de 2021 - Foto de Mauro Segura


AS PASTAS

Ao longo de 2020 e 2021 eu me desfiz ou ressignifiquei quase tudo que eu havia acumulado na vida. Foi um processo de coragem, resiliência e dor intensa. Não estou apenas falando das coisas materiais, mas também de emoções, laços e âncoras mentais.


Nada foi fácil, nada foi simples, nada foi leve.


Em alguns momentos eu me sentia cortando a própria pele, com se estivesse traindo e ferindo pessoas, até eu mesmo. Feridas eram abertas, que viravam cicatrizes. Porém, toda cicatriz é algo que conta uma história, é uma marca, mas não dói mais. Apenas está ali, para nos lembrar de algo importante.


Em abril de 2021 eu escrevi um artigo chamado “Desapego, Escolhas e Mudanças”, onde conto uma parte do meu exercício de desapego. Também fiz um vídeo naquele mesmo período e publiquei no meu blog. Esse vídeo ficou bem legal. Aliás, esse é o único vídeo que produzi ao longo de todo esse tempo. Portanto é algo raro porque é um registro daquele tempo.


Quanto às minhas pastas maravilhosas, que viraram cadernos desejados sendo vendidos na universidade, elas tiveram um destino pouco nobre... ou talvez muito nobre.


As centenas e centenas de folhas de papel, com todo o meu curso de engenharia elétrica, viraram papel de embrulho para a minha mudança de residência e, principalmente, para envolver os objetos mais sensíveis que doei, como louças, pratos, copos, quadros, CDs, DVDs etc.


No fim de tudo, de alguma forma, elas fizeram parte da minha mudança.


Meus cadernos - Foto de Abril de 2021 - Foto de Mauro Segura
Meus cadernos - Foto de Abril de 2021 - Foto de Mauro Segura


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