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O poder do storytelling: a mesma história contada de 8 formas diferentes

Recebi um desafio em uma das mentorias. Este artigo é o cumprimento do desafio.

Na conversa com a mentorada, falávamos sobre storytelling e narrativas. Em determinado momento afirmei que qualquer história pode ser contada de diferentes formas, em distintos estilos de linguagem, em diferentes perspectivas, dependendo do ponto de vista de quem conta a história e o que a pessoa deseja transmitir.

Uma pessoa que narra uma história, qualquer história, tem por base o contexto observado a partir de sua própria existência, com percepções e visão do mundo muito individuais e peculiares. Me parece quase impossível que uma pessoa conte uma história – em que a pessoa está envolvida – da mesma forma que outra pessoa, porque cada pessoa é uma pessoa diferente.

Ao conversar sobre as infinitas possibilidades de se contar uma história, a mentorada me jogou o desafio. Ela pediu para eu dar um exemplo de uma história contada sob diferentes perspectivas. Aceitei o desafio me comprometendo a escrever um texto desenvolvendo várias versões de uma mesma história, contada sob prismas e estilos diferentes.

Aqui está o exercício que fiz. As narrativas têm por base uma mesma situação, porém com a visão muito própria do narrador. Aproveitei para agregar variações, como tempo (passado e presente) e estilo de linguagem.

História 1

História 3

Miguel chegou em casa, cansado do trabalho, mas recebeu o pedido da esposa para ir ao mercado e comprar azeite. Eles iam receber amigos naquela noite, pedir pizza, mas faltava azeite em casa, por isso Miguel aceitou resignado a ida ao mercado, já esperando encontrá-lo insuportavelmente cheio e desconfortável. E foi isso que ele encontrou.

Ele pegou o azeite e se dirigiu aos caixas, optando pela fila do caixa de poucas unidades com expectativa de ser atendido mais rapidamente. Neste mercado não havia autoatendimento. A fila estava enorme e a que ele escolheu parecia ser a mais longa de todas.

Na sua frente, na fila, havia uma jovem com roupas surradas, quase rasgadas. Ele se aproximou, mas não se sentiu bem, teve a percepção dela estar malcheirosa, então Miguel deu um passo para trás e ficou observando-a. Ela tinha baixa estatura, cabelos com tintura vencida e sapatos velhos.

Miguel notou que ela empurrava um carrinho quase vazio. Dentro dele havia poucos produtos, um de cada: óleo, feijão, margarina, leite em pó, café, açúcar, macarrão, meia dúzia de ovos, pão, arroz e um biscoito de chocolate. Tudo básico. Ele concluiu que aquela mulher era uma mãe, humilde, carregando alimento para o filho.

Ao chegar perto do caixa, Miguel observou que a mulher colocou a mão na bolsa e tirou uma carteira rosa da Barbie. Demonstrando apreensão, ela abriu a carteira, pegou as poucas notas de dinheiro e moedas e recontou várias vezes, recorrentemente. Então, se agitou demonstrando inquietude, quase desespero.

Miguel, atento, continuou observando a mulher. Ela já estava quase no caixa, apesar da fila avançar lentamente. Ele imaginou que o desespero da mulher era por ter constatado que não teria dinheiro suficiente para pagar as compras. Miguel pensou no seu próprio filho.

Intuitivamente ele botou a mão no bolso do paletó e jogou no chão uma nota de vinte reais. Ele esperou alguns segundos, fez de conta que se abaixava para pegar a nota e chamou a mulher. Ela não respondeu. Miguel chamou duas vezes e ela não respondeu. Então, tocou em seu ombro. Ela, então, finalmente se virou.

Miguel falou para mulher que aquela nota de vinte reais era dela porque ele havia visto tal nota cair de sua bolsa. Ele esticou o braço em sua direção e disse:

“Pode pegar, é seu dinheiro!”

Ela relutou. A mulher não olhou para Miguel. Ele continuou com o braço estendido. Mesmo hesitando, com a cabeça baixa e olhos fugidios por trás dos cabelos longos mal tratados, ela pegou a nota e jogou dentro de sua bolsa maltrapilha. Balbuciou um “obrigado”, quase incompleto, e se virou para frente.

Minutos se passaram. Miguel viu que a mulher passou as compras no caixa, fez o pagamento com notas e moedas, entre elas a nota de vinte reais recém recebida. Ela saiu do mercado em passos curtos, mas apressados.

Miguel chegou em casa e levou uma bronca de sua esposa. Ele comprou a marca errada de azeite.

História 4

“Hoje vai ser um dia daqueles. Olha o movimento. Mais tarde isso aqui vai explodir de gente.”

“Acho melhor ficarmos mais próximos da porta. Lá o ângulo de visão é melhor.”

“Seu fone está funcionando? Estou com o fone de ouvido enterrado na orelha, mesmo assim é difícil de ouvir por causa do barulho.”

“Pode repetir? Não ouvi.”

“Entrou uma mulher estranha. Vestido vermelho e chinelo de dedo. Fique de olho nela.”

“Entendido. Onde ela está agora?”

“No corredor dos biscoitos. Não se aproxime para não chamar a atenção. Parece que ela está falando com outra mulher.”

“Ela tem um comportamento estranho, está zigue zagueando pelos corredores. Já colocou produtos no carro e retirou depois. Pode estar tentando roubar.”

“Ela está indo na direção dos caixas. Entrou na fila. Tem um senhor atrás.”

“Cuidado que ela pode tentar roubar este senhor. Preciso de reforço no setor C. Preciso de alguém na porta se ela tentar fugir correndo.”

“Como está?”

“Tudo tranquilo.”

“Tem um chamado no setor A. Vou para lá. Fiquem vocês dois aí. Se necessário, se aproximem um pouco dela para ela sentir que está sendo vigiada.”

Quinze minutos depois.

“Atenção. Ela está pegando algo do senhor.”

“Não! Não! É o senhor que deu algo para ela. Acho que foi dinheiro. Ela colocou dentro de sua bolsa.”

“Foi algum produto?”

“Não! Foi dinheiro mesmo!”

Cinco minutos depois.

“A mulher de vermelho está saindo do mercado. Está passando na minha frente. Devo intervir?”

“Não! Está tudo bem. Ela está liberada.”

História 5

Foram mais de mil quilômetros de viagem, cortando o país, sob um calor escaldante, a partir do centro-oeste. Passei horas no aperto, sem espaço, me sentindo amassado, dentro de um caminhão gigante. Me jogaram para cá, para lá. Nem entendia direito o que estava acontecendo. Fiquei muito tempo na escuridão, em ambientes sufocantes, mas um dia fiz uma viagem diferente, até chegar ao destino desconhecido.

Cheguei em um lugar enorme, muito iluminado, fresquinho e colorido. Mas também muito barulhento. Fiquei grudado ao lado de muitos iguais a mim. Tudo arrumadinho, de forma arejada e organizada. De onde estou, tenho uma visão privilegiada. Vi pessoas passando na minha frente, para lá e para cá. Ao redor, um monte de coisas diferentes. Algumas mãos me tocavam, mas nada acontecia.

De repente, uma jovem linda me pega. Me sinto amassado, mas ela é carinhosa. Ela me olha e me pousa docemente em um lugar confortável, cheio de espaço. Lá me sinto muito à vontade. Ele me leva para passear. Vejo um monte de coisas que nunca vi antes. Ficamos um tempão parados, com um monte de gente em volta.

Ela me tira do lugar onde estava, me arrastando em uma pista metálica. Outra pessoa me pega e me lança uma luzinha vermelha em cima. Fico num canto até ser jogado, finalmente dentro de um saco plástico. Sou um saco de arroz.

Conclusão

As cinco histórias acima são exemplos de storytelling ao redor de uma mesma situação. Pensei em mais versões, porém as narrativas acima foram suficientes para o meu desafio.

Se você achou interessante este exercício, recomendo a leitura do excelente post “Tipos de narrador”, publicado no site Brasil Escola. O texto esclarece e exemplifica muito bem o ponto de que uma determinada história contada contém a perspectiva particular do narrador. Uma história pode ser apresentada de forma mais subjetiva, aproximando o leitor das alegrias ou angústias da personagem, ou ainda de maneira distante e objetiva, tratando os acontecimentos da trama de maneira neutra, sem interferências. Uma narrativa intimista opta por um narrador em primeira pessoa ou um narrador onisciente intruso, que entende as nuances dos pensamentos das personagens e expõe tudo ao leitor. Por outro lado, uma história focada na trama pode conter um narrador observador ou narrador onisciente neutro, que não interfere no juízo de valor de seus leitores. São muitas possibilidades.

Você curtiu? Que outras narrativas poderiam ser contadas a partir da situação imaginada nas cinco histórias acima? Que outras perspectivas, narradores e personagens poderiam dar novas nuances e temperos? Adoraria receber novas ideias.

ATUALIZAÇÃO DO ARTIGO (em 06/09/2022)

Após a publicação do artigo no blog e no LinkedIn, eu recebi muitas mensagens legais, mas duas delas foram especiais porque foram contribuições de novas histórias agregando novas perspectivas e dimensões diferentes ao exercício que eu havia feito. Eu adorei!!

Por isso, tomo a liberdade de incluir estas duas maravilhosas histórias ao artigo original. Muito obrigado Flavia Gamonar e Michele M. B. Vertulo.

História 6 – por Flavia Gamonar

Seis da manhã e toca o despertador.

Eu mal fui deitar depois de cuidar do meu filho, que queimou de febre até duas da manhã. Preciso levantar porque um longo dia me espera. Tenho que fazer o café, dar banho, trocar e levar para a creche. Depois, esperar o ônibus e começar mais um dia de trabalho. Almoço? Vai ser qualquer coisa, nem consegui pensar em mim.

Não posso atrasar nem um minuto hoje, já levei bronca essa semana porque atrasei duas vezes.

Era só mais um dia comum passando compras no caixa, mas confesso que uma mulher me chamou atenção aquele dia. Eu me vi muito nela, sabe? Dava pra sentir um pouco do que ela sentia, afinal, estava com poucos itens nas mãos, básicos e parecia preocupada, cabisbaixa. Vi que um senhor entregou um dinheiro para ela e isso a deixou surpresa, talvez até um pouco mais animada. Ela pagou e saiu rápido, como se tivesse com pressa, assustada. Não sei exatamente o que aconteceu, mas o olhar dela mexeu comigo.

História 7 – por Michele M. B. Vertulo

Era fim de mês e passei no mercado para a despesa mensal, afinal não tenho muito tempo para ficar indo ao mercado. Estava com carrinho cheio, mas ainda faltavam os biscoitos que meus filhos adoram e eu não poderia chegar em casa sem seus doces prediletos e lanchinho para merenda na escola.

No corredor dos biscoitos vejo uma moça humilde, com poucas coisas no carrinho, coisas básicas e ela também pega um biscoito e imagino que como eu ela também é mãe. Eu a chamo, gostaria de poder ajudar com suas compras para que pudesse levar mais para seus filhos. Eu a chamo, pergunto se precisa de ajuda para pagar suas compras porque eu também já ia passar no caixa, mas o mercado está barulhento demais e acho que ela não me ouviu apesar de ter olhado em minha direção. Sem responder qualquer coisa ela se vira e segue apressada para o caixa rápido.

Eu sigo para caixas normais para grandes compras. De onde estou a vejo revirar sua bolsa, parecia muito aflita e talvez não tivesse como pagar o pouco que comprou. Sigo em direção a ela, eu realmente queria ajudá-la, mas vejo que o senhor atrás dela consegue ajudá-la com uma nota de 20 reais.

Saio do mercado feliz, pois vejo que ainda existem boas pessoas.

História 8 – por Daniel Takao

Trabalhei o dia inteiro. Estou bem cansado hoje mas não deixarei de cumprir minha meta semanal de trabalho adicional para complementar minha renda e conseguir dar entrada no meu primeiro imóvel.

Chegando no supermercado, toca o aplicativo! Maravilha… compra pequena, só alimentos e não precisarei andar por todo o supermercado. Pego os itens rapidamente para entregar logo e voltar para fazer a próxima entrega.

Chego no caixa, fila gigante! Observo os caixas, as pessoas na fila, e penso comigo quanto tempo terei de ficar ali.

Estou atrás de um homem de terno com apenas 1 item na mão e penso comigo: “Dei sorte que a pessoas estão com pouquíssimos itens na mão”. Esse homem joga uma nota no chão, ele mesmo se agacha pra pegar e a dá para a mulher na sua frente. Penso comigo: “Isso nunca aconteceria comigo”, mas ao olhar a mulher, percebo que ela parece precisar muito mais do que eu, com suas poucas compras e filhos a acompanhando.

“Belo exemplo deste homem, quero poder fazer o mesmo”. Saio para fazer a primeira entrega da noite com mais energia que quando cheguei.