top of page

A arte de perder tempo com minha mãe (e por que isso vale a pena)

  • Foto do escritor: Mauro Segura
    Mauro Segura
  • há 4 dias
  • 9 min de leitura

Atualizado: há 3 dias

Fazendo compras na feira de domingo
Minha mãe na feira de domingo

A feira de domingo e os passos que ensinam paciência


Bairro do Andaraí, Rio de Janeiro, 06 de julho de 2025


Caminho na rua com a minha mãe, de mãos dadas, em direção à feira de domingo. Cheguei no Rio de Janeiro há dois dias e a feira de domingo é um programa indispensável.


Na minha mão esquerda, seguro a mão direita de minha mãe. Na minha mão direita, levo o carrinho de feira, ainda vazio, porém pesado pela estrutura de ferro. Andamos a passos bem lentos desde a saída de sua casa. A feira fica a poucas centenas de metros de distância.


Minha mãe tem 93 anos. A artrose inconveniente dificulta o seu caminhar. A dor recorrente no joelho direito já virou uma companheira indesejada e rotineira. Ela está bem arrumada, afinal a feira é um dos seus principais programas da semana.


Tento acelerar o seu passo, mas ela parece não se importar com a minha insistência. Forço a barra, mas ela não reage. Chegamos no cruzamento de ruas com grande movimento de carros. Motos avançam o sinal de trânsito, que já virou fato comum na cidade. A atenção é necessária porque atravessar a rua é um processo.


Ali, olhando os carros passando, segurando a mão de minha mãe, “a minha ficha caiu”.


Na minha mente, a minha pressa e impaciência transformavam a ida à feira com minha mãe em um “anti-programa”. Por eu não estar querendo fazer aquilo, a minha cabeça estava verdadeiramente em outro lugar. Quem estava ali, ao lado da minha mãe, não era eu por inteiro, apenas uma parte, talvez a pior parte.



O momento que tudo mudou

Porém, naquele cruzamento movimentado, um raio luminoso de lucidez vindo do universo me iluminou.


A falta de empatia pela minha mãe, o preconceito com a feira, a minha teimosia interna em não aceitar o programa, tudo isso misturado transformou aquele momento em uma espécie de tortura. Por que isso?


Nos últimos anos tenho buscado viver o presente, aproveitar os momentos que a vida me oferece e tirar o melhor de cada acontecimento. A minha felicidade e bem-estar estão dentro de mim, a partir de como reajo a cada fato ou acontecimento, sem me indispor ou exagerar negativamente. Este tem sido um mantra que entoo para mim constantemente.


Aquela ida à feira era um programa de valor para minha mãe.


Aceitar os seus movimentos limitados e lentos é parte do programa. Em vez de reagir às suas limitações, eu deveria vibrar e me entusiasmar pelo seu esforço evidente em enfrentar suas dores e superar suas dificuldades.

Voltei no tempo e lembrei de várias situações que agi da mesma forma, de forma rabugenta, não empática, sem usufruir do momento e reclamando das coisas. Parte delas era por não aceitação, outra era por me achar superior às coisas e aos fatos. Que petulância!


Ainda no cruzamento, com todos estes pensamentos inundando a minha cabeça em poucos segundos, eu entendi que deveria agir diferente com a minha mãe. Ela tem 93 anos. Eu tenho 65 anos. Se o universo for legal comigo eu vou chegar lá, o que significa viver, pelo menos, mais 30 anos.


Quando chegar lá, eu também terei limitações, talvez com características similares às de minha mãe e, obviamente, outras diferentes. Vou desejar que as pessoas a minha volta compreendam, tenham paciência e me ajudem com as minhas dificuldades. Quem sabe podem me levar à feira?



O ritual pós-feira: whatsApp e geladeira superlotada


Naquele mesmo domingo, quando chegamos da feira, na casa dela, ela tratou de entulhar a geladeira com aquela quantidade imensa de legumes, frutas, verduras e hortaliças. Ela gosta muito dessa atividade. A ciência não explica como ela consegue colocar tanta coisa lá dentro, armazenando comida para um armagedon prestes a acontecer.


Depois ela vai para sala e pega o seu smartphone. Ela não sabe usar o aparelho, não sabe fazer ligação móvel e nem digitar os números e realizar operações básicas.


Instalei um aplicativo que inibe toda as funções do aparelho deixando somente duas ou três funções, sendo uma delas o whatsapp. Esse aplicativo cria uma tela inicial limitando tremendamente o uso do celular, porém facilitando sobremaneira a operação por pessoas idosas e ou pessoas com deficiência.

Minha mãe abre o whatsapp e começa a se divertir com os emojis, mensagens ilustradas de “bom dia” e vídeos de paz e amor. Ela recebe isso de alguns poucos amigos e amigas. Ela vem até mim e faz questão de ler cada mensagem, interpretando e achando tudo genial.


Minha reação, mais uma vez, é inadequada, de uma pessoa impaciente por não querer perder tempo com tais baboseiras. Ela lê a primeira mensagem. Eu finjo que escuto, mas continuo com a minha cara enfiada no notebook. Ela ri sozinha, esperando a minha cumplicidade na diversão.


Minha mãe, então, fala de um outro vídeo recebido. Vê o vídeo, acha engraçadinho e fala alguma coisa comigo. Ela quer ver de novo, mas não sabe como fazer. Olho com desdém, como algo desimportante.


Ela insiste e, de repente, "a minha ficha cai". Estou agindo, mas uma vez, como agi no cruzamento. Me penalizo. O que estou fazendo? Estou perdendo a chance de curtir tudo aquilo, de aproveitar aquele momento de descontração genuína da minha mãe, de embarcar na onda e me divertir. Me sinto idiota, insensível e ingrato.


Eu falo tanto sobre viver o presente, e aqui estou eu fugindo dele. Sinto vergonha de mim mesmo e dou atenção total à minha mãe.


Tentamos ver o mundo com os nossos olhos e nosso prisma, e não aceitamos bem outras visões.


Jogando conversa fora e gastando tempo no WhastApp
Dona Fernanda se divertindo com o Whatsapp


A experiência que me fez enxergar além dos olhos


Certa vez, na empresa onde eu trabalhava, ocorreu um programa de consciência de acessibilidade. Na entrada do restaurante da empresa, no horário do almoço, os meus olhos foram vendados e, então, vivenciei uma experiência impactante ao longo de uma hora inteirinha.


Foi bem difícil caminhar dentro do restaurante, me servir de comida nas bandejas self-service, encontrar uma mesa e cadeira disponíveis e, principalmente, me alimentar, sem ver o prato na minha frente. A experiência foi bem intensa e me vi completamente dependente.


A experiência me permitiu compreender melhor os desafios enfrentados por pessoas com deficiência visual e, obviamente, aumentou muito o meu entendimento e conscientização sobre acessibilidade.


Tente fazer isso sozinho(a) em sua casa. Já será bem interessante.



O caos aprendizado no supermercado


Eu e minha mãe vamos para um dos programas que ela mais gosta: o supermercado.


Chegamos no Guanabara, um grande supermercado em Vila Isabel, Rio. Ela pega o carrinho e sai aleatoriamente pelo mercado. Vai no fundo a direita, pega 1 kg de arroz e joga no carrinho. Em seguida, lembrando que precisa comprar café, sai em disparada para o lado oposto do recinto, onde pega um pacote de 500g de café.


Aí, de repente, ela lembra que precisa de 1 kg de açúcar, e atravessa o mercado de volta ao local do lado do arroz, onde fica o açúcar. E assim segue o processo, andando aleatoriamente pelo mercado, sem direção, ordem e coerência. O carrinho se enche de mantimentos e comida, de forma desorganizada.


O rascunho de uma suposta lista de compras está dentro da bolsa, amassada e esquecida. Para que pegar a lista se ela lembra de tudo?



A beleza escondida na desordem


Assim passamos 1 hora e 50 minutos dentro do supermercado. Andamos mais de 2,5 km, em uma rotina caótica de ida e volta pelos corredores. Tudo isso marcado no meu smartwatch.


Ela conversa com todas as pessoas desconhecidas na busca da melhor marca de queijo e para reclamar dos preços. A maioria responde, mesmo que às vezes seja um grunhido de pouco caso por conta daquela idosa intrometida.

Eu juro que já tentei ajudá-la muitas vezes na confecção da lista de compras, de levá-la a caminhar ordenadamente pelos corredores do mercado e manter o carrinho de compras arrumado para facilitar a passagem no caixa. Mas nada disso funcionou.


Então, mais uma vez, me vem o pensamento: viva o momento, curta a bagunça e a desordem deliciosa e caótica de sua mãe. No futuro, eu vou me lembrar disso com saudade e muitas risadas genuínas.


Um lobo dentro de mim cochicha no meu ouvido: “Não tente consertar o ‘inconsertável’ porque eu posso estar perdendo ‘o melhor’ da minha mãe.”

Compras aleatórias no supermercado
O zig zag sem fim no supermercado

O cachorro do vizinho e as duas faces da minha mãe


Eu já estava há vários dias no Rio, na casa de minha mãe. Todos os dias ela reclamava do cachorro do vizinho atrás de sua casa, que late muito e incomoda em horários de silêncio. É verdade, tem momentos que o cachorro late muito mesmo, mas isso faz parte da natureza do animal.


O vizinho fica no segundo andar do pequeno prédio atrás da casa de minha mãe. É comum vermos o lindo cachorro com as duas patinhas apoiadas no parapeito da pequena varanda, olhando para a casa de minha mãe, à espreita do movimento.


Ontem, eu peguei a minha mãe no “flagra”. Ela estava em casa, na porta que dá para o quintal dos fundos, olhando diretamente para o cachorro, ao longe, brincando com ele, fazendo sinais e movimentos de braços e mãos para chamar atenção do cão.


O cachorro estava quietinho e claramente minha mãe estava tentando fazê-lo ficar agitado, despertá-lo da calmaria e fazê-lo latir. Ela conseguiu!


Aprendi algumas coisas com aquilo.


A minha mãe tem culpa nisso tudo porque é evidente que, em várias situações, é ela própria que agita o cachorro, faz ele latir, para depois reclamar que o cão é barulhento.


Descobri que a minha mãe tem capacidade de se divertir com algo que a incomoda. Isso foi uma bela descoberta. De alguma forma isso pode ser interpretado como uma aceitação do desconforto e viver o momento. Ela mostrou que é possível se adequar as circunstâncias e até se divertir.


Ao ver a minha mãe provocando o cachorro, eu vi ali uma criança de 93 anos.


Brincando com o cão do vizinho
Brincando com o cão do vizinho


Slow living: quando não fazer nada vira sabedoria


Naqueles mesmos dias com a minha mãe, pensando a respeito de meu comportamento, surgiu na tela do computador um artigo da BBC News Brasil chamado “'Slow living': por que 'não fazer nada' é bom para a saúde".


Parece que o universo resolveu me enviar uma mensagem. A matéria é muito boa, repleta de referências e boas citações. Separei algumas poucas a seguir.


Jenny Odell, no livro “Resista: Não Faça Nada: A Batalha pela Economia da Atenção”, cita que vivemos em um mundo em que o nosso valor é determinado pela nossa produtividade, em que cada hora e cada minuto do nosso tempo devem ser aproveitados, se não no trabalho, em alguma forma de auto melhoramento.


Eu me encontrei no final da afirmação acima. Passei os últimos anos colocando foco no meu desenvolvimento pessoal, de forma exageradamente obsessiva. Desde o ano passado que eu puxei o freio e estou recalibrando as coisas.


Essa minha recalibragem está mais sintonizada com o que diz Oliver Burkeman no livro "Quatro Mil Semanas: Gestão de Tempo para Mortais". No livro, ele nos relembra que a vida é breve e que nunca conseguiremos cumprir todos os itens da nossa lista de coisas a fazer. Portanto, em vez de procurarmos ser cada vez mais eficientes, o autor defende que devemos nos concentrar no que realmente importa, rejeitando o perfeccionismo e o completismo para vivermos mais plenamente no presente.


A grande questão é que o contexto atual do mundo nos leva para outra direção. A onipresença das redes sociais parece nos incentivar a documentar cada centímetro das nossas vidas, buscar conteúdo nelas e fortalecer nossa própria marca individual.


E não é só isso. O crescimento dos aplicativos de monitoramento também transforma as atividades de lazer, os exercícios e até as necessidades mais básicas da vida, como comer e dormir, em dados que podem ser comparados e aprimorados. É possível monitorar o sono, registrar o café da manhã, cronometrar as caminhadas diárias, catalogar os filmes assistidos e acompanhar a frequência cardíaca ao longo do dia. Eu tenho um excelente smartwatch e sei muito bem o que é isso. Queremos ser sempre melhores, em um loop sem fim.


Será que isso tudo vale a pena mesmo? Será que realmente precisamos disso tudo para viver uma vida melhor? Qual é o ganho real no final de tudo? Isso parece roubar o nosso tempo, presente que recebemos todos os dias e que deixamos escorrer como areia fina de praia em nossas mãos.


Penso na minha mãe, que mal sabe usar o smartphone e gasta tempo perturbando o cachorro do vizinho.



A revolução silenciosa de viver o presente


"Viver o presente" parece uma frase de retórica. Confesso que pensei dessa forma durante muito tempo. Porém, muitas coisas aconteceram em minha vida nesta década, que balançaram crenças e conceitos que, até então, estavam enraizados na minha cabeça. Todos os conceitos relativos ao tempo mudaram dentro minha mente.


Hoje, eu não vejo mais o "viver o presente" como uma simples frase de autoajuda. É mais do que isso, é uma escolha diária, especialmente quando se trata de quem amamos.


Eu ainda vivo o processo de reconfiguração de minha consciência sobre o mundo à minha volta e o meu interior. Entretanto, às vezes, eu escorrego, como frequentemente acontece quando estou com minha mãe. Mas continuo firme no meu propósito de desacelerar e curtir uma “vida mais lenta e confortável”.


Emma Gannon, autora do livro “A Year of Nothing” ("Um ano de nada", em tradução literal), afirma que os seres humanos foram projetados para tirar cochilos, caminhar no parque, nadar e olhar para o céu. Mas o melhor mesmo é quando ela diz que “as melhores coisas da vida são de graça”.


Minha mãe, com sua rabugice e cabeça dura, me ensinou que a beleza e a leveza da vida estão nos detalhes mais imprevisíveis: na lentidão despreocupada dos seus passos, na boba paixão pelas mensagens inúteis no WhatsApp, no caos alegre das compras no supermercado e até na sua curiosa relação de amor e ódio com o cachorro do vizinho. Esses detalhes representam “viver o presente” e... são de graça!

São esses momentos contraditórios, aparentemente insignificantes, "gastadores" de tempo, que carregam o "viver verdadeiro".


Um dia, essas cenas cotidianas com minha mãe vão virar saudade. E pensar que eu quase troquei essas oportunidades de vida por minutos vazios de "racionalidade" e "produtividade".


Dona Fernanda, minha mãe, 93 anos, linda, autônoma e apaixonada pela vida
Dona Fernanda, minha mãe, 93 anos, linda, autônoma e apaixonada pela vida

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating

Assine o blog

Obrigado(a)!

bottom of page