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O que fazer no sabático

Comprei um caderno de capa verde, que me tomou muito tempo dentro da papelaria diante de tantas opções. Peguei uma etiqueta branca e colei no canto inferior direito da capa brilhosa. Com uma caneta bic, escrevi: “SABÁTICO”. Pensei: “Pronto, agora é só começar a escrever!” Já faz mais de um ano que tenho esse caderno. Até hoje ele está completamente em branco.

Quando decidi pedir aposentadoria no ano passado, em um contexto completamente singular de vida, que envolvia luto e questionamento de propósito de viver, eu me deparei com a oportunidade de mudar radicalmente a direção da minha existência. Eu pensei: “É hora de tomar outra direção, de me transformar e procurar coisas totalmente novas. É hora de me repensar como ser humano. Será que isso é o que chamam de sabático?” E, como bom engenheiro que sou, pensei: “Preciso me planejar para isso”.

Minha primeira ação foi atualizar o LinkedIn. Registrei que meu ciclo atual de emprego havia encerrado e escrevi: “Em período sabático, planejando os meus próximos 30 anos”. Até hoje o LinkedIn está assim. E saí para comprar o tal caderno que citei no começo do texto.

Estar diante de um caderno totalmente em branco pode ser muito torturante, especialmente para pessoas como eu, que gostam de cadernos organizados, com letra bonita, sem riscos ou rascunhos, com datas e anotações claras e bem ordenadas. A questão é que um período sabático pede exatamente o contrário. Ele pede desorganização, subversão, aleatoriedade, transgressão, idas e vindas, incômodo e, talvez, até desconforto. Ou seja, folhas rasuradas e amassadas.

Quando informei para amigos e colegas que estava saindo do trabalho, e entrando em um período sabático, eu recebi uma chuva de mensagens me desejando tudo de bom e que eu aproveitasse bastante. Eu estava um pouco perdido porque não saberia viver sem trabalho, desamarrado e liberto. Algo me martelava na cabeça recorrentemente: “o que fazer para esse período sabático realmente valer a pena? Como agir para ele ser transformador, para me desenvolver como ser humano e fazer surgir um novo Mauro? Como encontrar um Mauro mais feliz, mais pleno, me permitindo descobrir novos potenciais e talentos, com maior sentido de realização e propósito?”

Floripa – SC

Enquanto eu convivia com esses pensamentos no meio da pandemia, ainda lidando com lutos simultâneos que me faziam viajar ao passado, eu continuava recebendo mensagens de amigos, familiares e colegas querendo notícias minhas, perguntando o que eu estava pensando e fazendo, quais eram as novidades e planos. Eu me encontrava no confinamento social exigido pela pandemia, com as mensagens pulando no meu smartfone, tendo na minha frente o caderno etiquetado e em branco.

Comecei a receber convites e oportunidades de cursos, trabalhos e projetos em comunicação e marketing, bem como de mentorias e consultorias em gestão empresarial. Todas as áreas conectadas com minha experiência e antiga área de atuação profissional.

A cada convite ou sondagem recebida, minha cabeça fervilhava, havia um lobo dentro de minha mente que falava: “Olha que oportunidade legal! Você não vai perder essa, vai? Você adora isso! Vai te fazer bem!”. Porém, outro lobo surgia e cochichava no meu ouvido: “Você vai fazer mais do mesmo? Você quer mesmo se redescobrir ou esse papo é de mentirinha? Se aceitar isso você vai se afundar mais ainda na lama do que você já sabe fazer.”

Surpreendentemente, no meio da pandemia e da recente aposentadoria, eu recebi algumas poucas sondagens de propostas de emprego para voltar a atuar como CMO de grandes empresas. Isso disparou um filme na minha cabeça: reuniões intermináveis, discussões de budget, viagens, milhares de emails, noites mal dormidas, cortes de pessoal, gestão de equipes, chefes difíceis e outras coisas. Enfim, stress! Mas também surgiram coisas legais: salário, desafios, projetos inovadores, conquistas, fazer a diferença, colaborar para melhorar organizações, desenvolver pessoas, etc.

Pedra da Macela – Cunha – RJ

Havia uma frase bem conhecida, atribuída a Shunryu Suzuki, que rondava a minha cabeça: “Há muitas possibilidades na mente do principiante, mas poucas na do perito”. Essa frase me alertava que era necessário pensar e agir como um principiante. E, para isso, eu precisava abandonar a minha área de experiência passada (marketing e comunicação) para me abrir para outras coisas. Continuar na minha área antiga parecia limitar tremendamente o surgimento de oportunidades e possibilidades realmente novas, mantendo bolas de ferro nas minhas pernas e não me permitindo voar para novos horizontes. “Mente de principiante, mente de principiante, mente de principiante!” Eu vivia repetindo isso para mim. Mas como fazer?

Com a cabeça ainda desconfiada, concluí que voltar a trabalhar com marketing e comunicação, ou ser dirigente em uma empresa, não traria para mim o desafio que eu precisava, e nem me levaria para um outro estágio de minha existência. Seria, até, me perpetuar em uma zona de conforto conhecida e protegida… ou, dizendo de outra forma, continuar no meu cercadinho.

Muitos amigos diziam: “Vai viajar. Aproveita o sabático para conhecer lugares diferentes”. Outros falavam: “Vai fazer um curso diferente. Vai estudar algo que sempre quis e nunca conseguiu”. E outros: “Vai aprender a tocar um instrumento musical”. Enfim, não faltaram conselhos para que eu buscasse realizar atividades de lazer, viagens, novos aprendizados e habilidades.

Um grande amigo me ligou e filosofamos sobre o que é um sabático. Ele disse: “Quero ajudá-lo! Quais são os seus interesses?”. Eu respondi: “Os interesses eu não sei, mas servem desinteresses?” A conversa foi curta.

Rodeio – SC

Para alguém como eu, com quarenta anos contínuos de trabalho na carteira, não ter obrigações e cobranças me provocava uma sensação de incômodo, de improdutividade e vagabundagem. No início o impacto foi pequeno, porque rolou uma sensação de férias e paz, mas depois a minha mente começou a não entender muito bem. Pensamentos como “E aí? Quando voltamos ao trabalho?” começaram a pular em minha cabeça.

Eu estava consciente e racional para não ser dominado por pensamentos e conceitos sabotadores. No fundo da minha mente o desafio era outro: Eu fazia o paralelo de comparar a minha vida a uma corrida, onde o ponto de partida era o momento que eu estava vivendo naquele instante. A largada foi dada e eu ainda me sentia parado na linha de partida. Ao mesmo tempo, eu tentava me desvincular da minha vida passada para evitar vieses e tendências em minha nova vida. A tal “mente de principiante”, sabe? Havia uma pergunta recorrente dentro de minha cabeça: Para onde eu queria levar a minha vida? Eu me mostrava obsessivamente preocupado com a linha de chegada.

Serra das Araras – RJ

Importantes “insights” surgiram quando li o livro “A marca da vitória”, cujo autor é Phil Knight. Eu adoro biografias. Essa obra é uma autobiografia do criador da Nike. Esse livro é super elogiado e optei por lê-lo com o intuito apenas de ler um excelente livro. Eu mal sabia que esse livro ajudaria na organização dos meus pensamentos e, mais ainda, me daria poderosos “insights” para futuras decisões. Selecionei dois parágrafos do livro que me foram muito marcantes e que reproduzo a seguir.

Capítulo 1962
“Poucas ideias são tão malucas quanto a minha atividade favorita: correr. É difícil. É doloroso. É arriscado. As recompensas são poucas e nunca são garantidas. Quando você corre em uma pista oval ou em uma estrada vazia não tem um destino verdadeiro. Pelo menos não um que justifique todo o esforço. O ato em si se torna o destino. Não é apenas por não haver uma linha de chegada; é porque é você quem define a linha de chegada. Os prazeres ou ganhos que podem ser obtidos por meio do ato de correr, sejam quais forem, precisam ser encontrados dentro de si. Tudo depende de como você encara a corrida, de como a negocia consigo mesmo. Todo corredor sabe disso. Você corre, quilômetro após quilômetro, e nunca sabe exatamente por quê. Diz a si mesmo que está correndo em direção a um objetivo, que persegue algum ímpeto, mas, na verdade, você corre porque a alternativa, que é parar, o faz tremer de medo.”

Capítulo 1964
“Pensei na minha carreira de corredor no Oregon. Eu havia competido com, e contra, homens muito melhores do que eu, mais rápidos, de compleição física muito melhor que a minha. Vários se tornariam atletas olímpicos. E, ainda assim, eu conseguira me treinar para esquecer esse fato infeliz. As pessoas presumem que a concorrência é sempre algo bom, que sempre traz à tona o melhor do ser humano, mas isso só serve para quem consegue se esquecer da competição. Eu havia aprendido nas corridas que a arte de competir era a arte de esquecer e, agora, estava me lembrando disso. Você deve esquecer os seus limites. Deve esquecer as dúvidas, a dor, o passado. Você deve esquecer aquela voz interior que grita e implora: “Não dê nem mais um passo!” E, quando é impossível esquecê-la, você precisa negociar com ela. Pensei em todas as corridas nas quais a minha mente queria uma coisa e o meu corpo, outra, naquelas voltas em que tive que dizer ao meu corpo: “Você tem excelentes argumentos, mas vamos continuar mesmo assim…”

Eu li e reli esses parágrafos várias vezes, e fazia um paralelo com o meu atual estágio de vida. Ali estava um indício de resposta para as minhas inquietudes e incertezas. Eu não deveria me preocupar com a linha de chegada, porque naquele momento o importante para mim não era o destino, e sim o ato de correr. Eu havia iniciado a corrida da minha nova vida e não podia parar. O que precisava era ir em frente, o mais rápido possível. E por caminhos diferentes daqueles que eu já havia trilhado, para fomentar a mente de principiante. Eu precisava esquecer as dúvidas, a dor e o passado, que me impunham limites. Eu precisava silenciar o lobo interior que dizia: “faça o que te dá segurança, faça o que sabe fazer, não se aventure nessa idade, não é hora de procurar algo de novo, e sim de sossegar, de ficar na zona de conforto”. E, se não fosse possível silenciar esse lobo, eu precisaria negociar com ele para mantê-lo afastado a maior parte do tempo. Nessa corrida da vida, a linha de chegada era coisa para pensar depois, até porque sou eu que defino esta linha, quando e quantas vezes desejar. Chega de ser o executivo ansioso e planejado, com alvo definido e planilha estruturada de atividades!!!

Tupaciguara – GO

As coisas começaram a mudar ainda de forma mais acelerada a partir de conversas que tive com Helena Tundisi, que iniciou como minha “Life Coaching” e virou minha amiga. Ela entortou minha cabeça com algumas perguntas e reflexões básicas, que foram crescendo, criando conexões, abrindo portas, apresentando possibilidades e caminhos… enfim, fichas foram caindo. O bacana da experiência com a Helena foi que ela foi responsável pelas perguntas, mas deixou as respostas comigo. E muitas das respostas só se desenharam na minha frente ao longo do tempo. Aprendi que fazer as perguntas certas pode ser mais importante do que as respostas. As respostas podem esperar, as perguntas não.

Pessoas me perguntam até hoje sobre o que fazer na aposentadoria. Não tenho conselhos, mas tenho uma visão própria. Vejo que amigos queridos, que se aposentaram, têm enorme dificuldade para parar ou mudar de trabalho, seja por necessidade financeira, necessidade psicológica ou outras razões. Na minha avaliação, parte dos amigos continuam a trabalhar em suas áreas de especialização porque realmente gostam do que fazem e se sentem realizados. Isso é bem legal e admiro essa turma. No entanto, existe uma outra grande parte que continua pela inércia, que não veem outra alternativa, não se conhecem e não sabem como fazer para mudar o curso de suas vidas. Enfim, se sentem aprisionados dentro deles mesmos.

Um ponto que muitas pessoas não se atentam, é que o momento da aposentadoria gera um sentimento semelhante ao luto. Ao se aposentar, a pessoa parece perder a identidade, a fonte de reconhecimento, o ambiente de acolhimento e de aceitação. Viver o início da aposentadoria é viver um sentimento de perda… é viver um momento de vazio, de reflexão, de incertezas, de transformação… parece que se abre uma janela sombria de transição em nossas vidas ou que o solo se abre. Ou seja, existe uma relação evidente entre aposentadoria e o processo de luto. Uma pessoa recém aposentada é uma pessoa de luto.

Muitas pessoas sonham a vida toda com a chegada da aposentadoria, idealizam sonhos, fazem planos, mas quando esse momento chega parece que as pessoas entram em um túnel desconhecido. Ganham a liberdade tão almejada, mas não sabem o que fazer com ela. É aqui que entra o conceito do período sabático, que pode ser usado para descanso ou diversão, como uma espécie de férias, ou pode ser usado para a realização de uma viagem interior de descobertas e possibilidades, abrindo as nuvens espessas dentro de nossas mentes. Uma pessoa ao se aposentar, ganha uma linda oportunidade para viver um período sabático que pode levá-la para um novo estágio de vida.

Vassouras – RJ

A minha história não é uma história típica. O que provocou a minha aposentadoria antecipada foi o limiar do luto pela partida de uma pessoa amada. Se isso não ocorresse, eu provavelmente ainda estaria trabalhando no meu último emprego. Essa história está contada no meu blog, em detalhes, com flashes das diversas fases de minha jornada. As vezes penso nisso tudo, tentando conectar as coisas e dar razão aos movimentos que tenho feito desde o ano passado.

Dias atrás, eu assisti uma entrevista de Edith Eva Eger com Pedro Bial, que me foi esclarecedora, que colocou ordem nos meus devaneios sobre aposentadoria, sabático, liberdade e luto. Além disso, as lições de Edith explicam um pouco do que vivi e estou vivendo. Mas, antes, cabe explicar quem é Edith.

Edith é filha de pais judeus. Ela foi bailarina e ginasta até aos 16 anos, sonhava em participar das Olimpíadas, porém seu sonho e vida foram interrompidas quando Edith e sua família foram enviados para Auschwitz, em pleno holocausto. Seus pais foram assassinados na câmara de gás. Ela e sua irmã sobreviveram. Edith foi encontrada por soldados americanos em uma pilha de corpos, já em estado avançado de inanição. A dor e a história por trás dessa experiência foram mantidas em segredo por décadas, enquanto Edith recomeçava a vida nos Estados Unidos, onde se formou em psicologia e se especializou em atendimento a militares com stress pós-traumático. Ao longo do tempo, Edith foi criando coragem para encarar o passado e ressignificar tudo que viveu. Esse renascer resultou no livro best-seller “A Bailarina de Auschwitz”, publicada por ela em 2017, aos 90 anos de idade. Ou seja, ela levou décadas e décadas para colocar para fora tudo que estava guardado há tanto tempo. Já comprei o livro e iniciei a leitura. Enfim, Edith é uma das últimas testemunhas vivas do terror do holocausto.

Edith conta que quando os prisioneiros foram libertados dos campos de extermínio, muitos estavam desnutridos e doentes. Eles saíram caminhando pelas estradas ao redor dos campos de concentração, mas depois uma parte deles voltava para os mesmos campos porque não sabiam o que fazer com a liberdade. Eis a declaração dela.

“Acho que nos acostumamos a sermos prisioneiros. Quando fomos soltos, as pessoas atravessaram os portões. Não consegui andar, fiquei apenas observando. Em pouco tempo elas voltavam, porque não sabíamos o que fazer com a liberdade.”

Edith Eva Eger

Edith diz que tudo na vida é uma oportunidade de descoberta e não de recuperação, de descobrir nossos recursos internos e não depender dos outros para nos libertarmos. É uma oportunidade para ver como respondemos, em vez de reagirmos. É preciso tomar as rédeas do que pensamos, porque criamos o que pensamos.

Ela fala que o luto não é uma doença. E que não podemos curar o que não sentimos. Portanto, se você está diante de um luto, você precisa vivê-lo intensamente e integralmente, como uma jornada… deve viver o luto, o sentimento e a cura. Nesta ordem! Você somente alcançará a cura se passar pelos estágios anteriores. Essa é uma jornada que ocorre dentro da sua própria mente… é um processo de libertação da sua prisão interior. Só você pode fazer esse movimento. Você entra dentro de você e trabalha a sua evolução. E ela finaliza: “Sofra, tenha raiva. Não domestique seus sentimentos e nem faça da dor algo crônico. O luto é uma extraordinária oportunidade de evolução.”

Os aprendizados de Edith são valiosos e impactantes, mas duas frases ficaram gravadas na minha cabeça:
• Não sabemos o que fazer com a liberdade
• Nos acostumamos a sermos prisioneiros de nós mesmos

As histórias e vida de Edith têm forte conexão com a minha vida recente e iluminaram meus pensamentos. Foi isso que vivi no início do meu período sabático: eu me sentia aprisionado, sem saber o que fazer com a liberdade que eu havia recebido a partir dos lutos que estava vivendo. Quando me dei conta da prisão em que me encontrava, eu radicalizei e comecei um processo acelerado de desapego e novas escolhas, que já contei no meu blog em posts anteriores e que não vou repetir aqui.

Depois de quase quinze meses de período sabático, eu aprendi algumas coisas sobre o que é um sabático de verdade. Uma delas é não dar muitos ouvidos aos conselhos de amigos e colegas. Viajar é maravilhoso. Conhecer lugares novos é sensacional. Comer coisas diferentes é prazeroso. Mas a real viagem sabática, aquela que vale a pena, é aquela que acontece dentro de nós. É quando pulamos fundo dentro da gente para descobrirmos quem realmente somos, o que nós desejamos viver e realizar na vida terrena que temos. E dessa forma que saímos da nossa prisão interna. Esse é o melhor sabático! É o sabático que nos transforma e que nos liberta.

Na minha jornada, eu defini a essência do meu sabático: me descobrir por completo. Descobrir quem sou eu e o que quero para minha existência. E agir!

A vida não é o que está lá fora. A vida é o que está dentro de mim. É o que penso, é o que sinto… ou, o que eu quero sentir. Tudo que a vida me oferece são oportunidades, mesmo nas circunstâncias aparentemente mais difíceis. O que vou fazer com as situações da vida é uma escolha exclusivamente minha. Posso vê-las como crises ou como oportunidades. Eu vejo apenas oportunidades… incríveis oportunidades.

Obrigado Edith, Helena e Phil!

Pedra da Macumba – Rio