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A incurável dor da saudade



Dias atrás, ao caminhar no condomínio onde vivo, no final de tarde, eu vi uma mulher também caminhando. Eu estava atrás dela uns cinquenta metros. Ela estava de costas. Ela era incrivelmente muito parecida com a Regina: mesmo corpo, mesmo cabelo, mesmo rabo de cavalo, mesmas roupas, mesmo tênis, mesmo jeito e velocidade ao caminhar… só tinha uma diferença: ela tinha um smartphone na mão e fones nos ouvidos. A Regina nunca caminhou com fones no ouvido.

De forma inapropriada, sinto até vergonha de contar isso, eu a segui por alguns longos minutos. Depois tomei uma direção diferente e nos separamos. Porém, vinte minutos depois, em outra curva do imenso condomínio, nos alinhamos de novo e algo me disse que os céus estavam me avisando para segui-la. Dessa vez observei melhor, sempre de costas, e vi que ela era toda a Regina. Achava incrível tudo aquilo. E, mais uma vez, com receio de ser visto e preocupado em manter a distância, eu fui me afastando até perdê-la de vista. Não queria parecer um psicopata.


Cheguei em casa, abri o caderno da Regina e escrevi para ela uma carta contando tudo que vi, dizendo que eu estava feliz e agradecido por aquela luz e euforia que senti. Foi muito bom mesmo, uma espécie de descarga de adrenalina.


Conversei com meus filhos sobre isso. Um deles me contou que teve uma sensação muito parecida no supermercado há pouco tempo. Ele disse: “Vi uma mulher no fim do corredor igual à mãe”.


Será que isso acontece com as pessoas que vivem o luto da perda de um ente querido? Será que, inconsciente, vemos as pessoas amadas que partiram travestidas em outras pessoas? Será que isso é resultado de uma saudade que só cresce?


A minha amada Regina partiu em 28 de fevereiro de 2020. Desde então vivo um luto de várias fases, que se misturam. Essa foi a primeira vez que tive a sensação acima. Obviamente que o que eu vivi foi somente a imagem de alguém caminhando de costas, que é muito diferente da visão integral de um ser humano. Mas a situação descrita me despertou para algo intrigante, que é uma possível inconsciência da procura de características da Regina em outras pessoas. Eu já havia falado sobre isso em post anterior. Será que passarei por algo desse tipo outras vezes? Eu não gostaria disso, não me parece fazer sentido. Porém o que ocorreu comigo foi algo imprevisível e intenso.

Foi inevitável a lembrança do famoso TED de Nora McInerny, onde ela conta a experiência dela com o luto, da perda de seu primeiro companheiro de vida, da sua ressureição com um novo companheiro e como ela vem vivendo sentimentos conflitantes ao longo dessas duas fases de vida. Se você não assistiu, recomendo muito assistir esse vídeo de 15 minutos, com legendas em português, chamado “Nós não deixamos a dor para trás. Seguimos em frente com ela”. Acho impactante e repleto de reflexões importantes.



Como Nora conta, desde que o seu primeiro marido partiu, ela fala sobre ele no tempo presente, até hoje. É como se ele ainda estivesse entre nós. O mesmo ocorre comigo, quase sempre. Me refiro à minha amada Regina no presente, como se ela estivesse ainda aqui, de alguma forma. Isso me faz tão bem! Muitas vezes me pego confuso ao usar o tempo dos verbos, mas deixo o coração dominar o que vou falar.


Cabe dizer que eu não falo sobre a Regina no presente porque estou em negação ou porque não reconheço que ela partiu, mas é porque ela continua muito viva dentro de mim. Ela está presente nos nossos filhos, nas pequenas escolhas do meu cotidiano diário, no meu jeito de ser, na minha forma de pensar e na minha essência como ser humano.


A Regina está presente porque as minhas crenças, valores e experiências de vida, inclusive a experiência que vivi com a sua morte, foram forjadas com ela, em comunhão de espírito e amor. Portanto a Regina não é uma página virada de um livro, que está na minha cabeceira para ser aberto quando eu desejar. A Regina não foi deixada para trás, ela está caminhando comigo, todos os dias, porque eu sou fruto de tudo que vivi com ela. Na verdade, ela está mais presente do que nunca, porque acredito que eu e ela nos tornamos um só.

Essas são as razões por que não me vejo procurando pessoas com características da minha amada. Eu não preciso. O que eu preciso eu já tenho, que é ela dentro de mim. Mas tê-la dentro de mim, em vez do meu lado, mudou completamente o meu contexto de vida.

Muitas pessoas falam de forma constrangida sobre a morte. Recebo conselhos como: “Leve a vida”, “siga em frente”, “o tempo vai cuidar disso”, “a dor vai passar”, ou variações dessas frases. As pessoas são carinhosas comigo, querem ajudar, me fazem bem, eu agradeço muito por isso, mas o contexto é mais complexo.


Como levar a vida? De que vida estamos falando? A vida que eu tinha eu não tenho mais. Agora tenho um novo contexto de vida. Portanto não é levar a vida. É aprender a viver uma nova configuração de vida, que eu não pedi, que eu não desejei e muito menos planejei. Isso não deveria ser um problema e nem razão para eu reclamar do destino, porque todos nós vivemos situações indesejadas e inesperadas em nossas vidas. Eu não sou vítima da humanidade, sou apenas mais um com minha história pessoal de superação e aprendizado. Viver é isso.



Coloquei na cabeça que preciso estabelecer um novo contrato para a minha existência (que eu preciso assinar comigo mesmo) e aprender a conviver com algo que carregarei para sempre, dia após dia: a saudade.

A saudade é como uma praia. Ela pode ter ondas leves e brisa suave, céu azul… é uma saudade boa, serena, que dá prazer e refresca. Mas, em outros dias, essa mesma praia pode estar com o mar agitado, ondas fortes, arrebentação e até tempestade. Aí é uma saudade que incomoda, que machuca, que dá medo e angústia. O fato é que a saudade de uma pessoa querida, que partiu, nunca cessa, tal como as ondas e o vento numa praia. Depois de uma onda, vem outra onda, e depois vem outra e outra, sem cessar. E, por mais que eu tente pensar diferente, essas ondas intermináveis de saudade causam uma dor latente, como as águas que batem nas pedras e vão moldando-as.


Parafraseando a Nora: a dor da morte da minha amada é algo incurável. Algo que carregarei para o resto da vida. É uma cicatriz… uma cicatriz dentro de mim. É algo que não pode ser corrigido ou consertado. É uma ferida sem cura, que colocarei band-aids, um atrás do outro, mas nunca será sanada. O meu luto é o aprendizado do viver com essa eterna dor irremediável da perda.


Viver o luto não significa ficar triste, pelo menos para sempre. Na verdade, confesso, estou vivendo o luto alternando momentos tristes e felizes, com sorrisos e lágrimas, saudade, amor, afeto, ansiedade, mas também paz, tudo junto e ao mesmo tempo. Porque é assim o ser humano. Meus dias estão cada vez melhores, mais iluminados. Estou de bem com a vida, sorrindo e me divertindo, com a Regina sorrindo dentro de mim… e, as vezes, andando no condomínio.


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